Lembranças de Dona Zita:
Experimentando o método de história de
vida.
Hélio
Fernando Lôbo Nogueira da Gama[1].
O presente ensaio tem um caráter meramente didático
analítico, em que se objetiva, tão somente, a partir de um estudo de caso, a
percepção das potencialidades da aplicação de princípios do método de história
de vida enquanto ferramenta poderosa para a investigação social.
A
análise de histórias de vida, cujo método “(...) deve revelar as relações entre
um indivíduo e seu meio ambiente” (CUIN & GRESLE, 1944, p.193), tem como
contexto as investigações de campo fartamente realizadas nos Estados Unidos após
a Primeira Guerra Mundial, principalmente pela Universidade de Chicago.
A
chamada Escola de Chicago desenvolveu uma tradição de sociologia urbana e, de
um modo mais amplo, de pesquisa sobre as ações recíprocas dos indivíduos e de
seu meio ambiente, que ficaram conhecidas como ecologia humana.
A
maior parte dos trabalhos de ecologia humana, segundo o método de análise de
histórias de vida, é amplamente descritiva. Nesta modalidade de pesquisa, as
declarações do pesquisado são checadas para a verificação da fidedignidade dos
dados, com o pesquisador analisando as categorias sociológicas mais relevantes.
A
importância da análise de histórias de vida é que os resultados desse método,
se não podem ser generalizados para propor teorias, podem ser utilizados para
avaliá-las e rejeitá-las. Outra potencialidade demonstrada refere-se ao
necessário contato direto do pesquisador com o sujeito pesquisado, que pode
abrir outras áreas de investigação tangentes ao assunto principal pesquisado.
A
psicologia social desviou a análise de histórias de vida para o campo da
psicologia. Não é esse o nosso métieur.
Como afirma Malinowski,
Como sociólogos, não nos interessa aquilo que A e B
sentem como indivíduos, no curso acidental de suas próprias experiências
pessoais - interessa-nos apenas aquilo que sentem e pensam como membros de uma
dada comunidade. E enquanto membros de uma comunidade, seus estados mentais
recebem uma determinada marca, tornam-se estereotipados pelas instituições em
que vivem, pela influência da tradição e do folclore, pelo próprio veículo do pensamento,
quer dizer, pela linguagem. O ambiente sociocultural em que vivem acaba por
forçá-los a pensar e a sentir de um modo definido (MALINOWSKI, 1986, p.46).
A análise da história de vida de Dona
Zita, 69 anos[1], dona de
casa, é um ensaio de compreensão de categorias sociológicas percebidas nas
descrições que realiza.
1.
Lembranças da Dona Zita.
Nasci
no dia 06 de fevereiro de 1928, na antiga capital do estado de Goiás. Nasci na
casa da minha avó paterna, era uma casa muito grande, com muitos quartos, uma
sala muito grande. Minha avó tinha dez filhos, uma quantidade enorme de netos.
Eu era a quarta neta. Lembro bem da casa, tinha um quintal enorme no fundo,
tinham muitas plantações, a gente tinha medo até de ir até o final do quintal.
Da janela da cozinha da casa da minha avó, a gente ficava vendo a minha sombra
lá dentro do poço e, por incrível que pareça, nunca aconteceu um acidente, que
um neto caísse dentro do poço. Adorava a minha avó. O meu avô eu também gostava
muito dele.
Depois
quando eu fiquei maior, meus pais moravam na fazenda e era uma vida muito
difícil.
Meu pai no começo de vida
casou muito novo, com 20 anos, minha mãe com 17. Meu pai era um homem muito
trabalhador; trabalhou muito em plantação de cana e cuidou muito da
agricultura. A casa era uma casa simples, mas a minha mãe era uma pessoa muito
cuidadosa: a casa sempre limpinha. Ela gostava de fazer muitas coisas, muitos
doces, eu passava o ano todo comendo os doces que ela fazia. O meu pai, como eu
disse, cultivava cana. Ele mesmo fazia as rapaduras, fazia o açúcar mascavo.
Depois ele mesmo botava dentro do carro de boi e levava para vender na cidade.
Eu era muito pequena, mas me recordo bem disso. Meu pai depois viu que o preço era
muito baixo, não estava compensando o trabalho que dava e resolveu partir para
a pecuária. Aí que ele começou a melhorar a vida, quando começou a comprar e
vender bois. Meu pai era de pouco estudo, mas muito inteligente tudo que ele
fazia ele não perdia, sempre lucrava.
Meu
pai era um homem muito valente, gostava muito de brigar. Naquele tempo a lei
era a lei do revólver 38. Andava com revólver na cintura. Sempre tinha os
invasores de terra. O Estado vendia terras para outras pessoas; a terra
pertencia a ele, então estas pessoas, que apoderavam das terras dele, ele
lutava muito tempo na justiça para botar para fora. Lembro bem. Quando eu era
pequena, meu pai botou os invasores para correr com revolver em punho. Minha
mãe ficava muito preocupada com isso, com medo de acontecer alguma coisa com
ele.
Eu
tinha vários bichos na fazenda: cachorro, gato... Meu pai gostava muito de
gato, não gostava de cachorro. A minha mãe era o contrário, ela gostava mais do
cachorro. Tinha um cachorro pintado, chamava-se Brak, era um cachorro caçador.
Eu saía de tarde com ele caçando no campo, ele ia junto. Quando ele via uma
codorna, ele saía doido perseguindo o bicho, a ave. Passei uma infância feliz
na fazenda de meu pai.
Quando eu tinha oito para
nove anos meus pais me levaram, com minha irmã, para estudar interna num
colégio lá em Goiás Velho, o Colégio Santana, das irmãs dominicanas.
Eu gostava muito do
colégio. Era um colégio que tinha certa liberdade... A gente brincava muito,
estudava também. Era um colégio enorme. Lembro que tinha um parreiral enorme: a
gente passava debaixo dele, as uvas todas verdes. A gente roubava uvas, as
irmãs não gostavam, às vezes botavam a gente de castigo. No internato tinham várias
pessoas, principalmente da cidade vizinha, que era Itaberaí, a sete quilômetros
da cidade da onde eu estava. A gente gostava muito das freiras. Tinha uma irmã
Celeste que tomava conta do refeitório na hora do almoço; a gente era obrigada
a comer até as coisas que não gostava.
O que mais me marcou
neste colégio foi uma onda de piolhos. Todas as vezes que a minha mãe ou a
minha tia ia nos visitar, passava o dia todo no hotel fazendo limpeza nas
nossas cabeças. Mas isso não adiantava nada, porque todas as vezes que a gente
voltava para o colégio começava tudo de novo.
Sei que aos domingos – a gente
era pequena, eu e a minha irmã - tinha uma freira já de idade que nos levava
para a chácara. Nós partíamos primeiro, na frente com ela, porque ela era uma
pessoa idosa (andava mais devagar). Passávamos o dia todo lá, e lá a gente
almoçava. De manhã ia tomar banho no rio Bagagem, um rio enorme que na época da
seca formava aqueles poços... Então foi aí que eu aprendi a nadar. Eu sei que
era divertido. Retornava para o colégio à tardinha.
Também me marcou muito
quando meu pai ia nos visitar. A gente ficava apreensiva com medo de chegar as
férias e ele não ir lá nos buscar. Meu pai fazia um sacrifício danado. No
começo ele era pobre e ia a cavalo nos visitar. Lembro que a gente estava
estudando e a freira chegava à porta e dizia o meu nome; chamava dizendo que
meu pai estava a nossa espera. A gente saía toda contente para ir lá ver onde
ele estava esperando a gente. Depois de ele nos levar para o hotel, para o
cinema, para tomar sorvete, almoçar com ele, dormíamos no hotel com ele. Sei
que ele fazia um sacrifício danado para a gente estudar.
Depois certa época o
colégio baixou uma regra que a gente não podia mais dormir fora do colégio, nem
com os pais. Meu pai não sabia. Chegou lá, nos levou para o hotel e a freira
disse para ele que não podíamos dormir no hotel. Meu pai ficou fulo da vida:
não deu confiança para a freira e nos levou para o hotel. Dormimos com ele lá.
No outro dia, que ele foi nos levar, ela disse que nós estávamos suspensas do
colégio por uma semana. Aí meu pai nos levou para a fazenda.
Antes
disso, me lembro das vezes em que a gente estava no hotel com ele e ia ao
cinema, passava aqueles filmes... A gente gostava de ver os filmes, era em
preto e branco, a tela era pequena, quadradinha. A gente se divertia, mas não
me lembro do nome de nenhum filme dessa época.
Sei que quando chegamos à
fazenda - papai chegou ao meio do ano com a gente - minha mãe ficou muito
chateada da gente perder uma semana de aula. Mas depois que nós voltamos para o
colégio à gente só completou o resto do ano: meu pai ficou muito chateado e nos
tirou do colégio.
Fomos estudar depois no
colégio em Campinas, no bairro perto da nova capital. Nessa época a nova
capital de Goiás estava sendo construída, por volta do ano de 1940, 1941, por
ai... Nós ficamos internas neste colégio, Santa Clara.
Ali já era diferente. As
irmãs eram de outra ordem, mais rigorosas, descendentes de alemãs, muito
rígidas. Lembro-me bem o que me marcou: eu adoeci, fiquei muito doente no colégio.
Meu pai ficou sem saber de nada, nem minha mãe. Uma prima minha é que mandou o
recado escondido, avisando a minha vó que eu estava doente. Meu pai foi lá,
invadiu o colégio na marra e me tirou de lá, da enfermaria onde eu me
encontrava. Mesmo assim continuei lá estudando.
Nessa época a gente ainda
morava na fazenda, quando Goiânia começou a ser construída. Nessa época, 1939, estourou
a guerra e essas irmãs - as que eram de origem alemã - foram muito perseguidas
pela polícia do Brasil. Achavam que lá no colégio elas tinham rádio que
comunicava com a Alemanha. A gente teve que sair do colégio e foi quase um ano
perdido por causa disso.
Quando
eu tinha assim uns 10 anos, nós fomos morar na cidade, quando Goiânia estava
começando a ser construída. Não tinha nada quando nós chegamos lá. Só tinha um
cinema, as ruas só tinham o seu traçado... Nós ficamos morando no bairro de
Campinas, que era uma cidadezinha antiga. Ficamos morando lá, e de lá a gente
acompanhou a construção da cidade de Goiânia.
Neste
período perdi meu avô por parte de meu pai. Ele era um homem muito rico. Ele
tinha dez filhos e doze fazendas. Cada filho herdou uma fazenda e meu pai
herdou a fazenda que ele cuidava desde rapaz, quando ele se casou.
Quando
meu avô morreu eu tinha 12 anos, lembro-me bem. Eu gostava muito dele, tinha os
olhos azuis, era descendente de austríaco, mas a minha avó não. Ele era muito
claro, aloirado, gostava muito dele. A minha avó eu não me lembro bem. Gostava
muito da minha avó. Ela se casou aos 13 anos. Contava para gente as
peripécias... Ela gostava de brincar de boneca mesmo depois de casada; quando
ela ouvia o barulho de meu avô chegando, ela escondia as bonecas. Teve 10
filhos. Quando ela teve o quarto filho, ela teve sozinha em casa; ela mesma que
cortou o umbigo do menino.
Da
família da minha mãe eu não tive muito contato. Não conheci os meus avós
maternos e de poucos tios me recordo. Recordo-me bem de um, que marcou a minha
infância. Era o irmão mais velho da minha mãe, que bebia muito. Ele era viciado
na bebida... A minha mãe contava que quando ela tinha 15 anos, a minha avó
tinha posses, a minha vó materna. Esse tio irmão dela bebia tanto que deixou a
minha avó pobre, quase que na miséria. Ela disse que a minha avó tinha um cinto
grande, que ela botava em volta da cintura, porque quando ele chegava ele obrigava
a minha avó a destrancar uma gaveta ou o cofre para pegar dinheiro, para dar
para ele custear a bebida dele. Assim foi indo, foi indo, até que a minha avó
faleceu no interior de Minas Gerais. Dizem que foi enterrada ate em cova rasa,
isso que ela, a minha mãe, contou.
Voltando
ao assunto da família do meu pai, essa que eu tive mais contato. Eles eram uma
família muito grande, de 10 irmãos. Então a gente tinha muitos primos, muita
primas. Então eu levei uma meninice muito agradável. Lembro-me que a gente ia
passear na fazenda do meu avô, que era próximo da fazenda do meu pai. Lembro-me
do meu avô descascando laranja para todo mundo, para os netos, todos sentados
assim numa varanda grande, lá na cozinha. Descascava laranja e dava para todo
mundo, para todos os netos chupar. Eram mais ou menos 30 para 40 netos e a essa
infância foi muito agradável. Lembro bem disso, a gente andar a cavalo, ir para
o curral.
Quando
meu pai já era pecuarista, já estava bem de vida na fazenda. Tinha feito uma
casa boa. A casa tinha acho que cinco quartos, uma sala grande... Naquela época
não tinha televisão, nem rádio na fazenda, nem luz elétrica, nem muito menos
telefone. A gente viveu quase que isolada no tempo. Só fui mesmo entender, como
saber de radio, quando tinha uns 12 anos de idade, quando começou a Segunda
Grande Guerra.
Marcou-me
muito também quando a gente morava em Campinas. Tinha um senhor que não era um
senhor não: ele vivia vestido de mulher, com um turbante na cabeça, e saía
vendendo bolo de arroz. Isso durante a Segunda Guerra mundial. Depois a polícia
descobriu que ele era um nazista, que era um espião que estava espionando, que
não vendia bolo de arroz coisa nenhuma. Ele estava era espionando a costa do
Brasil, os navios que foram afundados aqui na costa do Brasil...
E nessa época Goiânia
estava sendo construída. Lembro bem de movimento de carro cheio de areia,
tijolo, aquele movimento todo. Mas não me lembro da inauguração da cidade; acho
que eu estava na fazenda. La não tinha rádio, naquela época, nem telefone. Eu
sei que depois nós mudamos para Goiânia, em 1943.
A
vida na fazenda era uma vida muito boa, muito tranquila. Só que a gente
trabalhava muito. A minha mãe inventava coisa para a gente fazer. Tudo era
feito em casa mesmo: o arroz era beneficiado na fazenda, tinha o monjolo...
Depois a gente mesmo preparava o arroz, abanava o arroz, catava os marinheiros
do arroz e minha mãe fazia. Refinava o açúcar e enchia os vidros enormes de
açúcar todo refinado e peneirado. A gente mesmo que moía o café no moinho
manual; ela gostava de encher latas e latas do café torrado e moído em casa.
Quem torrava o café era eu, a mais velha. Ficava quase que o dia inteiro só
torrando o café. Nessa época já não gostava mais da fazenda por causa dessa
trabalheira toda.
Chovia
muito nessa época. As estradas não tinham asfalto. Meu pai tinha um carro, um
fordinho 1929. O carro para pegar a gente tinha que tocar a manivela e na
subida tinha que empurrar o carro. Sei que a gente ficava doida de vontade de
ir embora para cidade, mas cadê estrada? Não tinha estrada, a estrada todo
cheia de buraco e lama e isso eu era bem menina, lembro-me bem.
Voltando
ao assunto do colégio em Goiás Velho. Muitas vezes meu pai ia a cavalo nos
buscar e voltava a cavalo. Uma vez, lembro-me que a gente era bem pequena, meu
pai pediu pouso, uma pousada, e a dona lá da fazenda nos arrumou uma cama
dentro de uma tulha de arroz. Meu pai forrou com um lençol e eu sei que de
noite ninguém dormiu. O arroz saía e ficava por cima do lençol, ficava uma
confusão dos quarenta.
Depois, a terceira vez
que meu pai voltou no colégio para nos visitar, ele já chegou num fordinho 29,
em Goiás, e nós ficamos todas exibidas. Ele parou o carro na porta do colégio e
eu e minha irmã queríamos que a as nossas colegas vissem o carro dele, que ele
tinha chegado de carro muito importante. Sei que meu pai nunca entrou numa autoescola.
Acho que nem tinha autoescola nesta época. Ele encheu o carro da família com a
minha mãe, três filhas, e fomos nós estrada afora. Nem asfalto tinha, era
buraco só. Lembro-me bem que o pneu furou no meio do caminho; ele queria encher
o pneu (não a câmara de ar) de folha de mangueira. Eu lembro que numa subida
ele engatou o carro de primeira e lá fomos nós. Chegou lá em cima o carro
apaga, e o carro desceu que desceu doido para trás, de marcha ré, e minha mãe a
gritar por todos os santos. Nunca ele entrou numa autoescola. Ele quando
faleceu tinha 85 anos, mas nunca ele tinha ido numa autoescola; dirigiu o carro
dele até 15 dias antes de morrer.
Voltando
ao assunto do outro colégio onde eu estudava, o colégio lá de Campinas, o
colégio Santa Clara. As irmãs foram perseguidas durante a guerra, mas depois o
colégio voltou a funcionar. Mudou a direção, as freiras alemãs não eram mais
diretoras do colégio, eram simplesmente professoras. Depois a polícia chegou à
conclusão que não tinha nenhuma espionagem lá dentro do colégio e nós
continuamos a estudar lá. Por sinal era um colégio muito bom: fiz os meus
quatro anos primários, mais dois anos complementares. Os quatro anos normais eu
fiz numa escola Normal, depois, em Goiânia. Mas o colégio era um colégio muito
bom. Tinha dois pavimentos, tinha aula de música. Meu pai nos botou pra
aprender a tocar violino, mas só que a minha professora era alemã e parece que
não tinha muita paciência, me esfregava lá na parede com violino e tudo e eu
nunca aprendi a tocar violino. Acho que eu tinha nessa época oito anos.
Nós
ficamos na fazenda até completar o resto do ano. Aí que nós ficamos na cidade
novamente. Meu pai alugou casa, naquele bairro de Campinas. Foi em 1943 quando
nós fomos morar lá quando o meu quarto irmão nasceu. Foi uma alegria muito
grande, porque o meu pai já tinha tido cinco filhas e quando veio este menino
ele ficou todo babão, todo orgulhoso.
Os
trabalhadores na fazenda era regime, como se fala, militar não, escravidão. Meu
pai era rigorosíssimo. Eles tinham que chegar clareando o dia. Se chegasse
depois que o sol tivesse nascido, ele não recebia o empregado, mandava embora.
Eles moravam em casa de empregados, eram agregados e tinham que trabalhar de
sol a sol. Quando escurecia, começava a escurecer, era hora de ir embora para
casa. Mas era assim, eles tinham boa alimentação, eles comiam três refeições
fartas por dia. A primeira refeição era às oito e meia da manhã. Era um almoço
completo, minha mãe fazia com arroz, feijão, carne-seca com mandioca, bastante
carne. Meu pai levava dentro de uma bacia grande essa comida com os pratos na
quantia dos empregados que tinha lá; ele levava de cavalo. Almoçavam, mas não
tinha esse negócio de uma hora para o almoço coisa nenhuma; acabava de almoçar
começava a trabalhar novamente. Acho que sempre teve uma exploração do homem,
nunca tinham nada, trabalhavam feito um danado e ficavam devendo. Meu pai tinha
um caderninho que ia anotando as despesas deles. Compravam fiado, depois eles iam
pagando sabe Deus como, alimento, quilo disso, quilo daquilo, de arroz.
Agora,
eles podiam plantar roças, mas a metade era do meu pai: era meio a meio esse
trabalho que eles faziam. Quando era época de roçar pastos eles trabalhavam
para o meu pai; quando passava, e era época de plantar, eles plantavam as roças
deles: o arroz, o feijão, café, milho. Aí a metade era deles e a metade era do
meu pai.
Lembro
bem que meu pai gostava de matar boi para ter carne em casa. Papai dividia com
eles a carne e aí papai não cobrava a carne não. Dava pra eles uma quantidade
grande, assim... Eu lembro até que eles saíam com uma parte do boi nas costas e
levavam, para as casas.
Era
cobrado o querosene, eles não tinham dinheiro para comprar na cidade. Era o
toucinho, às vezes o porco - eles não criavam porco, né? Às vezes o mantimento
deles não dava até a outra safra e eles iam lá à fazenda comprar. Compravam
café, compravam farinha... Às vezes encomendavam com meu pai para ir à cidade
comprar as coisas para eles, que precisavam, por exemplo, remédios, calçados,
roupas, essas coisas todas... Meu pai tinha um caderno que ia anotando aquilo,
né? Não me lembro se eles recebiam dinheiro no final do mês. Não sei nem se
papai pagava salário. Eu era muito pequena nesta época, não me lembro não, só
lembro disso: que eles trabalhavam desde de manhã, desde a hora que chegavam.
Eu via muitas vezes o empregado voltar para traz porque ele não aceitava que
tinha chegado atrasado, estava tarde, o sol já tinha aparecido...
Papai
nunca brigava com os empregados. Brigava com esses invasores da terra dele lá,
né? Ele era o dono das terras e o Estado vendia o pedaço das terras dele para
outros. O Estado não tinha aquele controle de quem era dono da terra, né? Ele
tinha a escritura da terra, mas os outros também tinham. Aí que dava briga. Meu
pai sempre teve encrencas com gente que o Estado vendia terras dele. As pessoas
se apoderam das terras dele com escritura e tudo. Então meu pai tinha que
provar na justiça que ele que tinha comprado primeiro, que ele que era o dono, que
era herança do meu avô, que também tinha escritura. Então como era tudo muito
lento, a justiça, como sempre até hoje, então aquilo ali ele tinha quase que
expulsar tudo na marra.
Eu
lembro bem que um invasor fez uma cerca de arame, cercou lá com arame dele.
Chegaram lá na fazenda do meu pai contando que a fazenda do homem, chamava seu
Conserva (era um alto, assim moreno, quase preto, alto), tinha cercado a
fazenda. Meu pai não teve conversa. Botou um revólver na cintura, chamou os
empregados, os peões, levou uma junta de bois atrelados para lá. Meu pai em
cima do cavalo, com revólver na mão, mandou o empregado atrelar a junta de bois
no arame, tocou o boi e foi arrancando o arame a Deus por canto, e foi
arrancando tudo. Enquanto isso, lá vem o senhor Conserva. Papai, de cá de
longe, grita: “Alto lá, se andar mais um passo morre”.
Passaram
muitos anos, e eu contava isso paro meu neto pequeno. Ele achava uma maravilha,
uma distração enorme, todo dia mandava contar: “vó, conta a estória do
Conserva?” Eu sei que foi assim que meu pai conseguiu reaver as terras dele,
até que o cara encheu e o governo deu outras terras para ele noutro lugar.
Lembro
bem que ele tinha um vizinho lá na fazenda que ele gostava muito, chamava
senhor Ferreira. Saíram os dois pela mata adentro, acho que para procurar gado
que tinha virado fera, que não estava mais domesticado, que estava muito tempo
dentro do mato, e meu pai foi com ele. Naqueles tempos ainda tinha mata; hoje
não tem mais, está tudo devastado. Meu pai se perdeu lá dentro com o homem, seu
Ferreira. Isso eu me lembro bem: minha mãe aflita, chegou de tardinha, cadê meu
pai? Nada. Ele se perdeu, não conseguia sair de dentro da mata de jeito nenhum.
O amigo dele ainda falava: “Ah, o caminho é por aqui”, e nada, eles
completamente perdidos lá dentro. Aí, meu pai disse: “Sabe de uma coisa? Vamos
deixar por conta do cavalo, vamos soltar as rédeas, deixa que o cavalo é que
vai nos tirar daqui”, disse. Assim o cavalo foi passando debaixo daqueles
cipós, espinhos e tudo. Sei que o cavalo é que conseguiu sair; papai deixou por
conta do cavalo, e o cavalo saiu. Sei que quando meu pai chegou a casa, chegou
com a roupa toda rasgada, todo arranhado. Para onde ia andando o espinho pegava
na roupa dele. Foi assim que ele chegou a casa, deixou por conta do cavalo.
Naquela
época ainda tinha muita anta, muita inhuma (que hoje não existe mais), muito
veado, caititu, capivara. Hoje não tem mais nada. Onça pintada eu lembro bem,
eu via os caçadores passando. Meu pai deixava passar os caçadores porque não
era como é hoje. Na volta eles vinham carregando a capivara ou a anta amarrada
assim num pedaço de pau, nas costas, e aí foi acabando tudo. Eu acho que não
tem mais nenhuma lá.
Na
minha infância trabalhei muito na fazenda, ajudando a minha mãe. Na beira do
córrego tinham muitos pés de goiaba. O empregado ia lá e pegava latas e latas
de goiaba: nós íamos fazer doce de goiaba. Era uma dificuldade danada, que
aquilo espirra feito o danado. Enchia as caixetas de goiabada que ela fazia
muito bem e dava para a gente comer o ano inteiro. Doce de requeijão, queijo,
doce de leite em grande quantidade, era muita fartura aqueles tempos. Minha mãe
no fogão de lenha; era muito divertido.
Muitos
anos depois, já estava morando aqui em Brasília, meus meninos eram pequenos, e
toda vez que eu falava que a gente ia lá para a fazenda eles nem dormiam.
Acordavam tudo de madrugada para ir lá pra fazenda do meu pai, bons tempos
aqueles.
Eu
fui criada na religião católica, minha mãe era católica, meu pai... Meu pai não
era de frequentar igreja, mas ele tinha muita fé em Deus. Eu me lembro que ele
chegava muito cansado. Meu pai que trabalhou muito na fazenda era um homem
destemido, pegava na enxada, pegava na foice, ele tinha as pernas tortas de
tanto andar em cima do cavalo. Quando ele chegava de tarde, suado, tirava o
chapéu da cabeça e dizia: “Louvado seja Deus”, e agradecia a Deus. Minha mãe
também não era muita de igreja, não. Ela ficou mais religiosa depois de mais
velha, quando sempre às seis horas da tarde ela gostava de ouvir (aí nessa
época já tinha rádio, quando ela tinha mais idade) a oração da Ave Maria.
Sempre às seis horas da tarde, quando ela ligava o rádio para ouvir as orações.
E por incrível que pareça, ela morreu às seis horas da tarde...
Ah,
tinha festa religiosa na fazenda. Na festa do Divino Espírito Santo chegava
aqueles do festejo, tudo montado a cavalo, tudo enfeitado com papel vermelho e
amarelo. Chegava à porta da casa da fazenda e pedia a meu pai licença para
entrar. Aí entrava, eu não lembro se rezava não. Mas dançava uma catira, que
era a música regional de Goiás, né? Aí minha mãe servia doces para eles, café,
umas trinta ou quarenta pessoas a cavalo, tudo com bandeirinha vermelha,
assim... Era até animado, bonito, e aí o dono da casa tinha que dar uma
oferenda. Meu pai sempre dava dinheiro para eles. Eu não sei o que eles faziam
com dinheiro, não, mas meu pai sempre dava. Eles chegam assim por volta de manhã
cedo. Não dormiam lá não, e depois seguiam em frente.
Ah,
outra coisa que me marcou muito na fazenda foi à festa de São João. Meu pai
fazia fogueira enorme de madeira, madeira velha e tudo... Fazia fogueira, minha
mãe preparava doce, pé-de-moleque, assava batata doce. Por incrível que pareça
tinha um senhor lá, chamado seu Vicente (até meu compadre, eu batizei uma filha
dele), mas se eu contar ninguém vai acreditar. Depois que a fogueira acabava
depois que a madeira queimava todinha, que ficava aquele braseiro todinho, ele
arregaçava as calças até a altura do joelho, tirava o sapato e atravessava até
o final. Ia e voltava em cima das brasas. A gente ouvia os chiados das brasas
no pé dele e não queimava o pé, era impressionante. Depois que ele voltava, a
gente falava: “Vamos ver os pés dele”: sem um queimado. Aí a gente perguntava
por que não queimava. Ele falava: “Eu ergo meu pensamento a Deus e peço a São
João, porque São João morreu assado na fogueira, dizendo que na hora em que já
estava assado de um lado, ele pedia: ‘pode assar do outro lado que este já está
assado’, então com fé...” Pode perguntar as minhas irmãs que todas são
testemunhas, e ele ainda tá vivo, lá em Anicuns.
Ah,
o meu pai tinha um empregado lá na fazenda, isso eu era bem pequena, tinha uns
oito para dez anos, chamava-se seu Antônio. Um tio, irmão do meu pai, que
chegou lá, era muito brincalhão, falava com ele: “Oh Antônio, você quer ganhar
um mil reis? Dou-lhe um mil reis pra você comer este prato de comida aí
tampadinho de pimenta malagueta”. Ele ia lá ao pé, você olhava o prato dele
assim, grande, um cucuruco cheio, tampadinho de pimenta malagueta. Ele comia
tudinho, mas também quando ele terminava de comer ele estava soluçando. Dava
soluço nele com o tanto de pimenta, mas ele ganhava o um mil reis. Ele era
baiano.
Meu
pai não gostava de ter empregado baiano lá na fazenda dele não, porque ele
falava que baiano comia muito, dava prejuízo. Na hora em que os empregados
estavam jantando, meu pai ficava lá na cozinha, conversando com eles. Gostava
de conversar com eles, dialogar com eles. Meu pai sentava num banquinho e
ficava prestando a atenção no prato que eles faziam. E ele dizia que o baiano
pegava esse prato branco, esmaltado, botava comida e acalcava, acalcava, acalcava,
depois botava mais, acalcava, acalcava, acalcava até mesmo, e ia acalvando com
a colher e depois até ficar um prato enorme. Então ele dizia “Baiano, aqui na
minha fazenda, nunca mais, vá comer assim no inferno!” Era baiano que aparecia
lá procurando serviço, mas, os empregados, não sei não, acho que era tudo de lá
da redondeza.
Lembro
de um dia, eu estava na fazenda e meu pai tinha saído. Meu pai muito brigão,
com esse negócio de terra... Passou um jagunço procurando pelo meu pai. Aí
minha mãe disse: “Ele não está” e ficou toda assim, ficou toda pálida. E ele
disse, “Hum, por que a senhora ficou tão pálida, tão pálida...” Mamãe falou
assim: “não, não tô pálida não”. Acho que ela ficou preocupada por causa do meu
pai, que não tinha chegado. E ele saiu, esse homem, e ficou esperando o meu pai
desde muito distante. Amarrou o cavalo num arbusto e ficou lá, esperando o meu
pai. Mas o meu pai sempre ele não voltava pelo mesmo caminho que ele tinha ido,
ele voltava por outro. Sei que no outro dia ele voltou lá no mesmo caminho e
achou ponta de cigarro do homem jogada, o galho da árvore toda raspada pela
rédea do cavalo que ficou esperando ele, e ele não apareceu. E assim foi, e
assim...
Quando
o meu pai era bem moço ainda, ele tinha uns vinte e dois anos de idade, ele estava
numa fazenda com meu avô e outro irmão dele tinha brigado lá na fazenda. Essa
pessoa atirou no meu pai pensando que fosse o irmão dele, não atirou com
intenção de ferir o papai não, mas o outro. O papai levou dois tiros. Meu pai estava
num cavalo: o tiro entrou numa perna, o cavalo caiu morto e meu pai recebeu um
tiro no peito. Foi briga lá por causa de boi, de gado, não tinha nada haver com
terra. Eu seu que meu pai depois (naqueles tempos a medicina ainda estava muito
atrasada) ele veio aqui para tal de Bonfim. Eu não sei onde fica isso. Aqui por
perto, né? Foi internado, quase que morreu e teve que tirar costelas, quebrou
várias costelas. Eu tinha um ano e pouco. Sei disso por que ele que contava.
Ele tinha uma marca, uma cicatriz enorme, abriu de um lado, para tirar as
costelas quebradas.
Aí
que mais que tem na fazenda? Meu pai sempre trabalhou na fazenda, depois ele
foi progredindo na vida, ficou bem de vida. Meu avô morreu, ele herdou a
fazenda, mais terra... Depois a mãe dele faleceu também, ele herdou mais terra
da minha avó. Sempre foi um homem muito trabalhador, ponderado, não gastava com
nada. Sei que anos depois ele estava bem de vida, fez casa nova na fazenda, já
tinha luz elétrica, já tinha geladeira, isso foi no ano de 1964, 1966...
Quando
eu tinha já uns quinze anos nós fomos morar em Goiânia, que já era uma cidade,
já tinha sido inaugurado como a nova capital de Goiás, né? Nos fomos morar numa
casa perto do Ateneu Dom Bosco, mas não era casa do meu pai não, era uma casa
alugada, uma casa pequena. A gente ficava lá estudando, e nessa época estava no
auge da guerra e a gente acompanhava tudo pelo rádio, não tinha televisão. De
maneira que a gente acompanhava tudo então, eu era mocinha, tinha uns 15 anos,
16 anos, e sabia todos os pontos da guerra: a batalha de Stalingrado; quando os
americanos, os ingleses, os franceses, invadiram Berlim, a capital da Alemanha...
Quando
a guerra terminou... Eu sei que eu acompanhei bem quando eles afundaram os
nossos navios aqui na costa brasileira. Acho que foram mais de cinco navios,
nem sei quantos, foram vários navios torpedeados aqui na costa do Brasil. Ah,
eu me lembro de quando Getúlio, depois que os navios foram afundados na costa
do Brasil (o presidente era o Getúlio Vargas), declarou guerra ao Eixo, aos
nazistas. Aí, os pracinhas foram convocados para ir lutar lá na Itália. A gente
ficava acompanhando tudo: as lutas lá na Itália, onde morreram tantos
brasileiros; a tomada de Monte Castelo e outras cidades. Quando eles voltaram para
cá, para o Brasil, a chegada deles lá na cidade de Goiânia (tinham ido muitos
goianos), eles desfilaram pelas avenidas, o povo todo aplaudiu a chegada deles.
Tinha até o irmão de uma colega minha que perdeu a perna lá na tomada de Monte
Castelo, e tinha ficado na Flórida pra fazer uma perna mecânica. Sei que no dia
que terminou a guerra, foi em 1945, ah, mas foi muito bonito! A gente
acompanhando pelo radio, os sinos de todo o mundo tocando... Goiânia mesmo, os
sinos de todas as igrejas repicaram, o povo saiu para rua gritando alegria,
ficou todo mundo feliz porque tinha terminado a guerra.
Nessa
época, antes de terminar a guerra, a gente ia muito ao cinema e os filmes todos
era relacionados com a guerra. Eram uns filmes de romance, mas tudo relacionado
com a guerra: sobre aviação, bombardeio... E a gente acompanhava tudo, vários filmes,
em quase todos os enredos dos filmes eram sobre a guerra. Eram filmes ótimos,
muito bons, melhores que os de hoje.
Nessa
época, quando a guerra acabou eu tinha dezessete anos quando eu tive o meu
primeiro namorado. Era um moço lá de Goiânia mesmo, mas meu pai era muito
severo, muito brabo, muito antiquado, não deixava a gente sair de casa para
namorar. A gente namorava tudo na base do escondido. Ele ficava me esperando na
esquina do colégio da Escola Normal, onde eu estava fazendo o curso Normal, e
assim foram-se uns dois anos. Depois a gente terminou o namoro porque ele foi
embora para Belo horizonte estudar engenharia, porque em Goiânia naquela época
só tinha faculdade de Direito e a Escola Normal, mais nada, não tinha faculdade
nem universidade, nada. Mas o meu pai era muito brabo, muito severo, a gente
não tinha liberdade de conversar em casa a respeito de namoro, nós não podíamos
ir à festa, não fomos a um baile de carnaval, nada, ele não deixava.
Eu
lembro bem que na nossa festa de formatura, os vestidos mais caros que tinham
eram o meu e da minha irmã. Tudo muito chique, de organdi suíço, muito bonito,
nós fomos para o Jóquei Clube pra dançar a valsa. O meu padrinho da valsa era
um tio casado e o da minha irmã outro tio, por sinal velho. As outras todas
estavam com namorados e só nós duas que eram com tio e velho, ainda por cima.
Dançamos a valsa, acabamos de dançar a valsa, meu pai: “Para casa!”. Eu sentada
no banco traseiro do carro com aquela roupa enorme de organdi suíço, tudo muito
chique, com uma raiva danada. O namorado lá em pé, olhando a gente sem poder
fazer nada, nem dançamos nem nada. Meu pai era fogo, viu?
Bom,
isso foi quando eu tinha uns 18 anos, época da minha formatura. E sempre ele
muito severo, muito brabo, a gente pensava que nem fosse casar, que ia ficar tudo
solteirona, as três lá, solteironas. Os vizinhos da casa do meu pai tinham três
solteironas do lado e três em frente, nós ficávamos de noite conversando
falando assim: “Nós somos mais três candidatas...”.
Eu
sei que quando eu tinha 21 anos conheci o meu marido, que era do Rio de
Janeiro. Chegou lá a serviço do DASP, era uma antiga repartição que hoje não
tem mais, ligado ao Ministério da Fazenda. Chegou lá para realizar um concurso,
que até eu estava inscrita, mas não fiz as provas porque não tinha estudado.
Nesses dias tinha nascido a minha irmã caçula, ela estava com 13 dias de
nascida quando conheci o meu marido, ele nem acreditou que eu tivesse uma
irmãzinha recém-nascida.
E
foi um drama dos quarenta porque meu pai brabo demais, a gente ia ao cinema
escondido, meu irmão ia com a gente porque ele era meninote, uns 8 ou 10 anos.
A gente dava balinha para ele e ele acompanhava a gente. Mas ele sentava lá na
ponta dum banco bem na frente e deixava a gente lá atrás com o namorado e nunca
dedurou ninguém, ele, o meu irmão. E meu marido hoje a gente saía do cinema e
ele ficava lá na esquina muito longe, uns três quarteirões, não podia descer a
nossa rua, que era a Rua 9. Lembro
bem que um dia, eu na janela, ele passava de bicicleta na porta da nossa casa e
encontrou com a minha mãe que ia subindo visitar a minha avó, ele ficou
rodeando a minha mãe de bicicleta, achando a minha mãe muito parecida comigo.
Ele disse assim, “Essa aqui só pode ser a mãe da Zita”. E ficou rodeando minha
mãe de bicicleta e eu da janela olhando. Minha mãe chegou à casa fera da vida,
disse que um tarado estava rodeando ela e quase que atropelou ela. E eu fiquei
bem quieta. Sabia muito bem quem era que estava rodeando ela... Ai, meu Deus do
céu...
Bom,
ele ficou um mês lá em Goiânia realizando o concurso, foi embora para o Rio de
Janeiro, eu namorei, noivei, tudo de longe. Foram um ano e três meses. Ele
apareceu lá depois só umas duas ou três vezes.
No
dia em que ele apareceu lá em Goiânia para pedir o casamento, ele marcou que
nove horas ele estaria lá. Meu pai botou o terninho dele e tal, minha mãe fez doce
e ficou esperando. Quando foram nove horas em ponto, ele bateu o pé lá no
alpendre da minha casa. Minha mãe olhou para ele e disse: “Esse forasteiro, tem
cara de casado, lá no Rio de Janeiro, que ninguém conhece.” Aí ele tirou tudo
que foi documento que ele tinha de dentro de uma maleta preta e foi mostrar
para o meu pai, desde as fotografias da mãe dele, do pai, certidão de
nascimento, carteira de trabalho, aonde trabalhava... Meu pai com os óculos na
ponta do nariz examinou tudo. Mesmo assim meu pai, não satisfeito, mandou um
mensageiro no Rio de Janeiro, na repartição aonde ele trabalhava, para saber
quem ele era, quem era o dito cujo. Assim, são 47 anos de vida em comum.
O
casamento foi uma celebração muito bonita. Meu pai já era um homem rico, já
tinha dinheiro, isso foi em 1951, quando me casei. Ele fez um enxoval para a
gente muito bonito; nós éramos três moças, foram três casamentos seguidos. A
primeira fui eu.
A
cerimônia religiosa foi muito bonita, lá no Dom Bosco. Naquele tempo usava
alugar os táxis todos da cidade para levar os convidados para casa. Meu pai
alugou todos os táxis, os táxis ficavam todos na porta da igreja à disposição
dos convidados. Aí a família do meu marido que era do Rio de Janeiro - foi a
minha sogra, o meu cunhado, e um casal de tios dele, ficaram admirados de ver a
festa muito bonita, tudo preparado com o esmero, os doces todos enfeitados com
aquele camafeu, coisa antiga, tudo muito bonito. E me casei, fui morar no Rio
de Janeiro.
Meu
pai e minha mãe ficaram apaixonados, ficou muito tempo sem botar comida na mesa
por causa do meu lugar que tinha ficado vago. Comia todo mundo na cozinha,
ninguém botava mesa, para não ver o meu lugar vago.
Fui
morar no Rio de Janeiro, achei péssimo o Rio de Janeiro. Sentia muita falta da
minha mãe, da minha família. Fui morar em um apartamento em Ipanema, um
apartamento de fundo... E eu que estava acostumada lá com a minha casa, que era
uma casa grande lá em Goiânia, com minha família muito grande, muito numerosa,
a casa muito cheia, tudo movimentado, de repente me vi dentro de um apartamento
de fundo lá em Ipanema, com o meu marido, que saía cedo para trabalhar e só
chegava muito tarde da noite. Chorava até. Até que um dia ele cansou de me ver
tanto chorar e pediu uma requisição e a gente foi morar em Goiânia. Isso foi no
ano de 1952, quando nasceu a minha primeira filha. Em Goiânia eu tive três
filhos, morei em Goiânia depois oito anos.
Depois,
quando surgiu Brasília... Meu marido estava lá em Goiânia requisitado, todo ano
ele tinha que ir ao Rio de Janeiro renovar a requisição, senão a gente tinha
que voltar para o Rio e eu não queria saber do Rio de Janeiro de maneira
alguma.
Aí
quando surgiu Brasília eu achei bom porque era perto de Goiânia, e ficava fácil
para eu ver a minha mãe, a minha família. Foi em 1961, eu vim para Brasília, a
minha filha mais velha tinha nove anos, meu segundo sete, meu terceiro três e
ai a ultima nasceu aqui em 1962 no Hospital de Base.
Brasília,
naquele tempo ainda estava no começo, eu fui morar na Asa Norte. A rua que eu
morava nem era calçada nem nada. Hoje, onde é o Hospital Presidente Médici,
tinha uma casinha ali que vendia frango. A gente atravessava e ia comprar
frango. Não tinha asfalto, o supermercado era debaixo dos pilotis do bloco 3,
não era nem letra, era um bloco bem lá na ponta. A gente não tinha carro, era
uma dificuldade danada, a gente fazia as compras debaixo desse prédio que era
um supermercado. Mas eu gostava.
Foram
os anos mais felizes que passei aqui em Brasília, depois de casada, morando ali
na Asa Norte. Meus filhos eram pequenos, meu marido era novo, e trabalhava
muito, era funcionário do DASP. Eu lembro bem que meu terceiro filho estava
brincando lá na frente do prédio e tinha surgido à bola de futebol Drible,
passou um homem e tomou a bola dele. Ele chegou a casa chorando que um homem
tinha passado e carregado à bola.
Bom,
voltando a Goiânia, antes de me casar eu era professora, do grupo escolar
modelo. Não que eu precisasse...
Em
1962, quem estava no governo era o Jânio Quadros. E, eu sei que aquela mania...
Parece que ele era meio louco, queria implantar uniforme para os funcionários
públicos, parecia um uniforme de safari: bermudão de jeans e casaco abotoado na
frente. Meu marido ficou apreensivo com medo de ter de abandonar o terninho
dele para ter de usar este uniforme para ir trabalhar, não aceitava a ideia. E
o lema de Jânio, acho que é lema mesmo, era uma vassoura. Que era para varrer a
sujeira de todo o mundo aí. Quando ele fazia discurso na televisão aparecia
todo mundo com vassoura na mão nos comícios e depois, quando não dava certo,
era vassourada para todo lado, era uma coisa de doido.
Bom,
sei que Jânio Quadros, quando cheguei aqui, ficou seis meses no governo, aí
quem tomou posse foi o João Goulart. Aí parece que o João Goulart também ficou
pouco tempo, ele foi deposto eu acho, e...
Bem,
me deixa falar antes da fundação de Brasília, o Juscelino né? O Juscelino Kubistchek
eu acho que para mim ele foi o melhor presidente que o Brasil teve. Porque ele
mudou a capital pra cá, para o planalto central, que era tudo muito abandonado,
um lugar ermo, o Brasil só tinha progresso no litoral. Depois, com a mudança da
capital para cá, parece que teve mais progresso. Ele trouxe a indústria
automobilística, para cá para o Brasil; ele abriu as estradas, estradas para
todo lado... Eu sei que naquele tempo todo mundo viajava era a cavalo, porque
ninguém tinha carro. Trouxe a indústria automobilística, teve a coragem de
mudar a capital para cá, para um lugar completamente ermo. Instalou-se aqui,
foi morar no Palácio do Catetinho, até que Brasília tivesse condições de
construir os prédios e repartições públicas e os palácios e tudo. Sei que foi
um tempo de grande desenvolvimento naquela época dele, do Juscelino.
Depois
dele o João Goulart foi deposto, e tomou posse aí a junta militar que ficou
quase vinte anos, governando aí, trazendo o povo tudo debaixo do chicote.
Ninguém podia falar nada, ninguém tinha liberdade de expressar, todo mundo
ficava morrendo de medo, foi uma perseguição total, foram banidos vários
brasileiros para fora. Ainda bem que naquela época o meu filho era pequeno,
senão ele estava envolvido, teria sido banido, e até hoje ainda estava para lá.
Mesmo
assim ele ainda pegou o restinho da ditadura. Eu lembro bem que uma vez ele estava
lá na UnB, aquele secretário americano, o Kissinger, estava lá com o Leitão de
Abreu, não sei que foi fazer lá, palestra, uma reunião não sei o quê, e jogaram
ovo em cima do homem lá, na careca do homem, em cima do Kissinger... Eu sei que
foi uma confusão danada, a polícia chegou, fotografou todo mundo, e o meu filho
já estava rapaz... Eu sei que aqui em casa umas três ou quatro vezes vinha
oficial de justiça aqui trazendo intimação, mas eu nunca cheguei a... Eu
assinava a intimação com outro nome, nunca botei o meu nome, e falava que ele
não estava, foi um tempo difícil.
Mas,
quando em vim para cá Brasília não tinha nada, as ruas não eram asfaltadas,
levantava aquela poeira em forma de redemoinho, que tomou o nome de “lacerdinha”,
porque o Lacerda, eu acho que era governador lá do Rio de Janeiro, não sei o que
ele fez lá de errado, e puseram o nome desse redemoinho de poeira de “lacerdinha”.
Sei que esse “lacerdinha” chegava e sujava a casa da gente tudinho, trazia as
coisas tudo pra dentro de casa.
Morei
lá na Asa Norte quatro anos e meio, não tinha nada, quando a minha filha
nasceu, a caçula, nem supermercado não tinha nada lá. Quando ela estava com uns
3 anos, eu tinha muita vontade de sair de lá e vir morar na Asa Sul.
Lá
no DASP tinha a caixinha onde todos os funcionários contribuíam uma determinada
importância, que a hora que um precisava de dinheiro recorria à caixinha. E um
colega do meu marido recorreu à caixinha e ficava com o dinheiro, foi
aumentando a dívida e ele nunca conseguiu repor o dinheiro. Então para ele
ficar livre, para ele sair bem, ele precisou passar o apartamento dele para
frente. Procuraram meu marido, se queria trocar o apartamento desse colega da
Asa Sul pelo nosso, da Asa Norte. Mas tinha uma espécie de um ágio, duzentos e
tantos cruzeiros, não sei mais, uma importância grande.
Como
meu marido também era funcionário público e não tinha dinheiro (como não tem
até hoje), eu fui a Goiânia pedir meu pai dinheiro para dar para o homem. E meu
pai me deu a importância, eu vim para cá para Brasília e o meu marido trocou
com o colega essa importância, deu para ele esse dinheiro, mas deu o dinheiro,
mas, e ele ainda lá no apartamento, e a gente aqui na Asa Norte, sem um
documento, sem um recibo, sem nada.
Passaram
15 dias e o homem nada de sair, nada de trocar o apartamento... Meu marido
contratou um caminhão de mudança, levamos a mudança, cheguei ao apartamento,
ele estava dormindo, tinha bebido, estava deitado, eu toquei a campainha e
falei: “Olha, a nossa mudança taí.”. “Ah, eu não tenho dinheiro pra mudar”. Eu
disse: “Não, o caminhão que trouxe a minha mudança leva a do senhor, tá lá”. E
foi assim, senão não saía, já tinha recebido o dinheiro, estava no bem bom, já
tinha liquidado lá o desfalque que ele tinha dado né? Assim eu vim para esse
apartamento que já tem 35 anos que eu moro aqui.
E
Brasília naquele tempo era assim mais calmo, não tinha esse movimento que
tinha, meu marido comprou aqui o seu primeiro carro em 1962, era uma Vemaguete
e fiz vários passeios aqui nas redondezas, com os meninos, os filhos eram
pequenos, a gente ia lá para o Lago Norte pegar pequi, e era tranquila a cidade
naquela época, não tinha tanto movimento de carro nem nada como tem hoje.
Agora
hoje eu já estou com 69 anos, meu marido com 77, não está bem de saúde, mas
estamos levando. Eu tive 4 filhos, já casei dois, tenho seis netos, o mais
velho com 22 anos, os dois últimos, gêmeos, com seis anos, e tenho um neto que
sempre está mais comigo, o Pedro, que gostava que eu contasse estórias do meu
pai lá na fazenda.
Hoje
eu tenho um carro zero quilômetro que eu comprei. Meu marido não dirige mais
que está doente, mas eu ainda dirijo. Estamos todos bem, graças a Deus, vamos
levando, apesar de o meu marido estar doente, a gente tem que aceitar, né? Já
tá com idade, tem que ter um pouco de paciência, que tudo se resolve...
Há,
eu tenho uma filha mais velha que é médica, o segundo é sociólogo, a terceira
tem o curso de contabilidade, mas trabalha num tribunal desses aí. Está tudo
tranquilo, está tudo em paz, graças a Deus. Tenho uma nora, tenho um genro, e é
só.
O
que eu espero da vida agora? Eu espero da vida é passear, eu estou com ideia de
reformar esses armários que estão muito feios, fazer uma estante aqui, na sala,
e pintar o apartamento que está sujo. Neste ano que vem se Deus quiser vou
pintar o apartamento, aproveitar que a minha nora está lá para o Rio fazendo um
curso, e vou ficar lá no apartamento do meu filho, até pintar aqui, uma semana
ou mais. Se Deus quiser ainda pretendo, se eu arranjar uma pessoa para ficar
aqui com meu marido, no ano que vem fazer um passeio, sempre quando a minha
filha tiver que ir.
Eu
não espero muita coisa da vida agora não. Eu só queria passear, eu gosto de
passear, fazer uma viagem, e ver todo mundo bem de saúde, feliz, trabalhando,
só isso, se Deus quiser e levar a vida em frente.
2. Análise das categorias sociológicas
A principal categoria sociológica
identificada na história de vida de Dona Zita é a instituição família. Tendo
sua origem no meio rural, a figura do avô e principalmente do pai é marcante em
sua descrição. O conceito de família patriarcal pode ser bem empregado para a
conformação dos significados expressos pela entrevistada.
A
instituição família patriarcal assentasse sobre uma estrutura agrícola de
produção e, enquanto núcleo da sociedade rural é geralmente numerosa,
estabelecendo laços de solidariedade, respeito e fidelidade entre seus membros.
A divisão de trabalho entre os gêneros é precisa, cabendo às mulheres a
organização da economia doméstica, que cumpre papel fundamental para o
desempenho das atividades de trabalho dos homens. Enquanto cabem a estes a
segurança e a manutenção do núcleo familiar, desenvolvendo as atividades
laboriosas no mundo exterior desafiante, no mundo-vida das relações sociais de
trabalho entre atores diversos e distintos, cabe às mulheres, o mundo do lar,
rotineiro, circunscrito. Por isso mesmo, o pai é a autoridade máxima, que os
membros da família devem respeito, obediência e cultivam devoção.
A
família patriarcal é conservadora na manutenção dos valores, tradições e
instituições. O casamento tem especial significado, ocorrendo, geralmente,
muito cedo para os jovens. Este foi o caso dos avós paternos da Dona Zita e, de
certa maneira, de seus pais. As investigações e desconfianças que precederam
seu próprio casamento revelam um alto significado atribuído a esta instituição.
Comumente, as famílias patriarcais, sendo de base rural e detentora de posses e
propriedades no campo, percebem no casamento um vínculo duradouro entre o casal
na garantia da legitimidade da descendência e na acumulação e transferência de
patrimônio por meio da instituição herança, própria de um sistema social que
tem por base a propriedade privada dos meios de produção. A história de vida da
Dona Zita corrobora este significado, ao descrever as mudanças ocasionadas pelo
falecimento dos avós na situação de vida de sua família.
Mas
os pais de Dona Zita revelaram serem portadores de algumas mudanças com relação
às tradições. De especial significância revela-se a postura do seu pai com
relação à educação formal das filhas. Sendo homem de poucas letras, mas de
espírito empreendedor, que busca acompanhar em alguns aspectos novas
oportunidades e tendências, não mediu esforços para que as filhas recebessem
uma educação formal de qualidade, em colégios internos de tradição, mesmo
vivendo e trabalhando na fazenda, longe da cidade. Assim, a educação, enquanto
categoria sociológica de análise, ganha destaque no depoimento da entrevistada.
Interessante notar a dubiedade de seu depoimento com relação à atmosfera dos
colégios em que esteve interna afastada de seus pais. Ao mesmo tempo em que se
refere às freiras com certa afeição, descreve a instituição escola da época de
sua infância como rígida e severa, ainda que não mencione castigos físicos.
A
continuidade dos estudos em Goiânia, no curso Normal de formação de
professoras, atende a distinção tradicional de formação diferenciada de
gêneros. A mulher, mesmo preparando-se para o desenvolvimento de uma atividade
de trabalho fora do lar, tem um horizonte prelimitado e afeto a funções que lhe
seriam “inerentes” segundo a moral patriarcal dominante, qual seja a de educar
jovens e crianças. Nesta perspectiva, compreende-se o fato de na Goiânia da
época apenas existir essa opção de formação para as mulheres, e somente o curso
de Direito para os homens. Por sinal, esse fato é revelador do caráter
bacharelesco da educação masculina das elites rurais brasileiras, cujo título
representava uma distinção social no horizonte de uma sociedade que, se já se
encontra em processo de urbanização - a construção da nova capital do estado
assim o indica -, apresenta-se ainda predominante rural em suas atividades
econômicas e na mentalidade da vida social.
A
postura do pai da depoente é extremamente interessante no revelar do seu perfil
enquanto representante da elite rural goiana, segmento social ainda pouco
estudado e que se ressente de uma conceituação mais precisa e adequada em
termos sociológicos, uma vez que afirmamos a tese que o conceito de coronelismo
aqui não se aplica de modo cabal, ainda que guarde semelhanças em alguns
aspectos.
O
termo “coronel do sertão” é identificado na historiografia brasileira como um
título concedido a oligarquias nordestinas - cuja origem remonta aos senhores
de engenho do período colonial - que, no período do Império e da República
Velha arregimentavam seus trabalhadores como forças-tarefas para
empreendimentos de caráter militar, atendendo aos pedidos e ao mútuo interesse
político com o governo central. Normalmente, ajudavam no combate a rebeliões de
caráter popular, como o combate ao cangaço. O coronel era o sinônimo do grande
latifundiário improdutivo, cuja renda e poder era proporcional à quantidade de
trabalhadores que viviam em suas propriedades como agregados, meeiros e
parceiros, cujo trabalho era apropriado e a produção de subsistência. O caráter
de servidão das relações sociais desenvolvidas chegou a levar alguns
sociólogos, como Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré, a
considerá-las como indicativos da ocorrência de um modo de produção feudal em
terras brasileiras.
Não
nos estenderemos nesta temática, pois o método da história de vida não
generaliza nem propõe teorias. No nosso caso, nossa intenção é tão somente
rejeitar a aplicação de um conceito, o coronelismo, pois significaria uma
inadequada transposição mecânica para a análise das elites rurais de Goiás, ou
mais especificamente, do perfil sociológico revelado pelo pai de dona Zita.
Como
fazendeiro, que trabalhou arduamente, inclusive no trabalho braçal, o ator, no
retrato revelado por sua filha, revela contradições e dubiedades em sua
postura. Em primeiro lugar, cumpre novamente ressaltar o seu espírito
empreendedor, indicado na descrição no momento em que troca a atividade com o
açúcar para o trato com a pecuária. Esta, ainda que praticada de forma
extensiva, como sugere a descrição, somada a herança de terras, constituiu-se
no principal fator de enriquecimento da família de dona Zita, ao que parece,
desde os seus avós. A engorda de bois, em um momento de incremento das
atividades urbanas - a depoente foi testemunha da construção de duas capitais,
Goiânia e Brasília - vai se constituindo cada vez mais em um empreendimento
altamente lucrativo, haja vista o crescimento do mercado consumidor na região.
Tal apontamento parece ser uma das explicações da luta pelo domínio da
propriedade da terra e o vigor com que o pai de dona Zita se dispôs a
empreender. A narrativa também é indicativa do quadro caótico em termos de
regularização fundiária no interior de Goiás e da incompetência do Estado.
A
semelhança com o coronelismo nordestino fica por conta do trato com os
trabalhadores rurais. A exploração de classe e a apropriação do trabalho marcam
as descrições, que revelam a dureza do regime e da jornada de trabalho. A
própria depoente faz esta constatação, até certo ponto contraditória pelo fato
de ser filha e herdeira de seu pai, a quem a todo o momento descreve com grande
admiração. Em suma, não foi apenas o trabalho do fazendeiro e as heranças
recebidas que fizeram a sua fortuna; esta, repousa também na crueldade das
relações de trabalho impostas como proprietário àqueles que nada tinham e a que
tudo se submetiam, marca característica da formação social brasileira.
Também
se assemelha às oligarquias nordestinas o caráter de relacionamento cordial com
os trabalhadores, nos momentos festivos e religiosos. Esta dubiedade, na
verdade, é uma característica das oligarquias brasileiras, que se expressam
principalmente nas relações de compadrio que se estabelecem entre senhores e
despossuídos, fato inclusive identificado no depoimento de Dona Zita. Nestes momentos,
fora da relação de trabalho, é que os trabalhadores são percebidos como
semelhantes pelos patrões, estabelecendo laços afetivos que, em última
instância, terão o sentido de buscar uma maior lealdade dos trabalhadores para
com os proprietários, lealdade esta que será posta à prova, principalmente, nos
momentos de conflitos armados por disputas de terras com outros fazendeiros,
como assinalam as situações descritas pela entrevistada.
Diversas categorias
sociológicas podem ainda ser identificadas nas descrições da depoente, dentre
elas religião, cultura, política e fatos históricos.
Considerações finais.
Temos
a pretensão de termos atingido o objetivo do presente ensaio, que era o de tão
somente, por meio da análise de dados colhidos em uma pesquisa de apenas uma
entrevista, inferir as potencialidades do método de história de vida na análise
de referências empíricas de conceitos sociológicos, afirmando-os e/ou
negando-os em sua capacidade de explicações generalistas sobre o real.
A
Escola de Chicago, ponto de partida e principal referência da sociologia
norte-americana, em oposição à tradição europeia das grandes teorias, como que
inaugura as microssociologias.
A
partir do depoimento de Dona Zita e de sua análise, percebe-se as limitações do
método, mas também as suas potencialidades, que o transcendem. A memória
social, o processo de construção da identidade, elementos de história oral,
traços das raízes da cultura popular, até então não registrados ou analisados
vêm à tona e se tornam parte do presente, se constituem em legado e fio
condutor para a análise das atuais e próximas gerações de cientistas sociais.
Referências
CUIN, Charles-Henry &
GRESLE, François. História da
Sociologia. São Paulo, Ensaio, 1944.
MALINOWSKI, Bronislaw. Introdução:
o assunto, o método e o objetivo desta investigação. In DURHAM, E.R. (org.) e
FERNANDES, F. (coord.). Malinowiski:
Antropologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 55. São Paulo, Editora
Ática, 1986.