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Lembranças de Dona Zita: Experimentando o método de história de vida. (Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama) Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama



Lembranças de Dona Zita:
Experimentando o método de história de vida.
                                                                       Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[1].





[1] Professor Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz.



          O presente ensaio tem um caráter meramente didático analítico, em que se objetiva, tão somente, a partir de um estudo de caso, a percepção das potencialidades da aplicação de princípios do método de história de vida enquanto ferramenta poderosa para a investigação social. 
         A análise de histórias de vida, cujo método “(...) deve revelar as relações entre um indivíduo e seu meio ambiente” (CUIN & GRESLE, 1944, p.193), tem como contexto as investigações de campo fartamente realizadas nos Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial, principalmente pela Universidade de Chicago.
         A chamada Escola de Chicago desenvolveu uma tradição de sociologia urbana e, de um modo mais amplo, de pesquisa sobre as ações recíprocas dos indivíduos e de seu meio ambiente, que ficaram conhecidas como ecologia humana.
         A maior parte dos trabalhos de ecologia humana, segundo o método de análise de histórias de vida, é amplamente descritiva. Nesta modalidade de pesquisa, as declarações do pesquisado são checadas para a verificação da fidedignidade dos dados, com o pesquisador analisando as categorias sociológicas mais relevantes.
         A importância da análise de histórias de vida é que os resultados desse método, se não podem ser generalizados para propor teorias, podem ser utilizados para avaliá-las e rejeitá-las. Outra potencialidade demonstrada refere-se ao necessário contato direto do pesquisador com o sujeito pesquisado, que pode abrir outras áreas de investigação tangentes ao assunto principal pesquisado.
         A psicologia social desviou a análise de histórias de vida para o campo da psicologia. Não é esse o nosso métieur. Como afirma Malinowski,

Como sociólogos, não nos interessa aquilo que A e B sentem como indivíduos, no curso acidental de suas próprias experiências pessoais - interessa-nos apenas aquilo que sentem e pensam como membros de uma dada comunidade. E enquanto membros de uma comunidade, seus estados mentais recebem uma determinada marca, tornam-se estereotipados pelas instituições em que vivem, pela influência da tradição e do folclore, pelo próprio veículo do pensamento, quer dizer, pela linguagem. O ambiente sociocultural em que vivem acaba por forçá-los a pensar e a sentir de um modo definido (MALINOWSKI, 1986, p.46).

            A análise da história de vida de Dona Zita, 69 anos[1], dona de casa, é um ensaio de compreensão de categorias sociológicas percebidas nas descrições que realiza.

1.   Lembranças da Dona Zita.

         Nasci no dia 06 de fevereiro de 1928, na antiga capital do estado de Goiás. Nasci na casa da minha avó paterna, era uma casa muito grande, com muitos quartos, uma sala muito grande. Minha avó tinha dez filhos, uma quantidade enorme de netos. Eu era a quarta neta. Lembro bem da casa, tinha um quintal enorme no fundo, tinham muitas plantações, a gente tinha medo até de ir até o final do quintal. Da janela da cozinha da casa da minha avó, a gente ficava vendo a minha sombra lá dentro do poço e, por incrível que pareça, nunca aconteceu um acidente, que um neto caísse dentro do poço. Adorava a minha avó. O meu avô eu também gostava muito dele.
         Depois quando eu fiquei maior, meus pais moravam na fazenda e era uma vida muito difícil.
Meu pai no começo de vida casou muito novo, com 20 anos, minha mãe com 17. Meu pai era um homem muito trabalhador; trabalhou muito em plantação de cana e cuidou muito da agricultura. A casa era uma casa simples, mas a minha mãe era uma pessoa muito cuidadosa: a casa sempre limpinha. Ela gostava de fazer muitas coisas, muitos doces, eu passava o ano todo comendo os doces que ela fazia. O meu pai, como eu disse, cultivava cana. Ele mesmo fazia as rapaduras, fazia o açúcar mascavo. Depois ele mesmo botava dentro do carro de boi e levava para vender na cidade. Eu era muito pequena, mas me recordo bem disso. Meu pai depois viu que o preço era muito baixo, não estava compensando o trabalho que dava e resolveu partir para a pecuária. Aí que ele começou a melhorar a vida, quando começou a comprar e vender bois. Meu pai era de pouco estudo, mas muito inteligente tudo que ele fazia ele não perdia, sempre lucrava.
         Meu pai era um homem muito valente, gostava muito de brigar. Naquele tempo a lei era a lei do revólver 38. Andava com revólver na cintura. Sempre tinha os invasores de terra. O Estado vendia terras para outras pessoas; a terra pertencia a ele, então estas pessoas, que apoderavam das terras dele, ele lutava muito tempo na justiça para botar para fora. Lembro bem. Quando eu era pequena, meu pai botou os invasores para correr com revolver em punho. Minha mãe ficava muito preocupada com isso, com medo de acontecer alguma coisa com ele.
         Eu tinha vários bichos na fazenda: cachorro, gato... Meu pai gostava muito de gato, não gostava de cachorro. A minha mãe era o contrário, ela gostava mais do cachorro. Tinha um cachorro pintado, chamava-se Brak, era um cachorro caçador. Eu saía de tarde com ele caçando no campo, ele ia junto. Quando ele via uma codorna, ele saía doido perseguindo o bicho, a ave. Passei uma infância feliz na fazenda de meu pai.
Quando eu tinha oito para nove anos meus pais me levaram, com minha irmã, para estudar interna num colégio lá em Goiás Velho, o Colégio Santana, das irmãs dominicanas.
Eu gostava muito do colégio. Era um colégio que tinha certa liberdade... A gente brincava muito, estudava também. Era um colégio enorme. Lembro que tinha um parreiral enorme: a gente passava debaixo dele, as uvas todas verdes. A gente roubava uvas, as irmãs não gostavam, às vezes botavam a gente de castigo. No internato tinham várias pessoas, principalmente da cidade vizinha, que era Itaberaí, a sete quilômetros da cidade da onde eu estava. A gente gostava muito das freiras. Tinha uma irmã Celeste que tomava conta do refeitório na hora do almoço; a gente era obrigada a comer até as coisas que não gostava.
O que mais me marcou neste colégio foi uma onda de piolhos. Todas as vezes que a minha mãe ou a minha tia ia nos visitar, passava o dia todo no hotel fazendo limpeza nas nossas cabeças. Mas isso não adiantava nada, porque todas as vezes que a gente voltava para o colégio começava tudo de novo.
Sei que aos domingos – a gente era pequena, eu e a minha irmã - tinha uma freira já de idade que nos levava para a chácara. Nós partíamos primeiro, na frente com ela, porque ela era uma pessoa idosa (andava mais devagar). Passávamos o dia todo lá, e lá a gente almoçava. De manhã ia tomar banho no rio Bagagem, um rio enorme que na época da seca formava aqueles poços... Então foi aí que eu aprendi a nadar. Eu sei que era divertido. Retornava para o colégio à tardinha.
Também me marcou muito quando meu pai ia nos visitar. A gente ficava apreensiva com medo de chegar as férias e ele não ir lá nos buscar. Meu pai fazia um sacrifício danado. No começo ele era pobre e ia a cavalo nos visitar. Lembro que a gente estava estudando e a freira chegava à porta e dizia o meu nome; chamava dizendo que meu pai estava a nossa espera. A gente saía toda contente para ir lá ver onde ele estava esperando a gente. Depois de ele nos levar para o hotel, para o cinema, para tomar sorvete, almoçar com ele, dormíamos no hotel com ele. Sei que ele fazia um sacrifício danado para a gente estudar.
Depois certa época o colégio baixou uma regra que a gente não podia mais dormir fora do colégio, nem com os pais. Meu pai não sabia. Chegou lá, nos levou para o hotel e a freira disse para ele que não podíamos dormir no hotel. Meu pai ficou fulo da vida: não deu confiança para a freira e nos levou para o hotel. Dormimos com ele lá. No outro dia, que ele foi nos levar, ela disse que nós estávamos suspensas do colégio por uma semana. Aí meu pai nos levou para a fazenda.
         Antes disso, me lembro das vezes em que a gente estava no hotel com ele e ia ao cinema, passava aqueles filmes... A gente gostava de ver os filmes, era em preto e branco, a tela era pequena, quadradinha. A gente se divertia, mas não me lembro do nome de nenhum filme dessa época.
Sei que quando chegamos à fazenda - papai chegou ao meio do ano com a gente - minha mãe ficou muito chateada da gente perder uma semana de aula. Mas depois que nós voltamos para o colégio à gente só completou o resto do ano: meu pai ficou muito chateado e nos tirou do colégio.
Fomos estudar depois no colégio em Campinas, no bairro perto da nova capital. Nessa época a nova capital de Goiás estava sendo construída, por volta do ano de 1940, 1941, por ai... Nós ficamos internas neste colégio, Santa Clara.
Ali já era diferente. As irmãs eram de outra ordem, mais rigorosas, descendentes de alemãs, muito rígidas. Lembro-me bem o que me marcou: eu adoeci, fiquei muito doente no colégio. Meu pai ficou sem saber de nada, nem minha mãe. Uma prima minha é que mandou o recado escondido, avisando a minha vó que eu estava doente. Meu pai foi lá, invadiu o colégio na marra e me tirou de lá, da enfermaria onde eu me encontrava. Mesmo assim continuei lá estudando.
Nessa época a gente ainda morava na fazenda, quando Goiânia começou a ser construída. Nessa época, 1939, estourou a guerra e essas irmãs - as que eram de origem alemã - foram muito perseguidas pela polícia do Brasil. Achavam que lá no colégio elas tinham rádio que comunicava com a Alemanha. A gente teve que sair do colégio e foi quase um ano perdido por causa disso.
         Quando eu tinha assim uns 10 anos, nós fomos morar na cidade, quando Goiânia estava começando a ser construída. Não tinha nada quando nós chegamos lá. Só tinha um cinema, as ruas só tinham o seu traçado... Nós ficamos morando no bairro de Campinas, que era uma cidadezinha antiga. Ficamos morando lá, e de lá a gente acompanhou a construção da cidade de Goiânia.
         Neste período perdi meu avô por parte de meu pai. Ele era um homem muito rico. Ele tinha dez filhos e doze fazendas. Cada filho herdou uma fazenda e meu pai herdou a fazenda que ele cuidava desde rapaz, quando ele se casou.
         Quando meu avô morreu eu tinha 12 anos, lembro-me bem. Eu gostava muito dele, tinha os olhos azuis, era descendente de austríaco, mas a minha avó não. Ele era muito claro, aloirado, gostava muito dele. A minha avó eu não me lembro bem. Gostava muito da minha avó. Ela se casou aos 13 anos. Contava para gente as peripécias... Ela gostava de brincar de boneca mesmo depois de casada; quando ela ouvia o barulho de meu avô chegando, ela escondia as bonecas. Teve 10 filhos. Quando ela teve o quarto filho, ela teve sozinha em casa; ela mesma que cortou o umbigo do menino.
         Da família da minha mãe eu não tive muito contato. Não conheci os meus avós maternos e de poucos tios me recordo. Recordo-me bem de um, que marcou a minha infância. Era o irmão mais velho da minha mãe, que bebia muito. Ele era viciado na bebida... A minha mãe contava que quando ela tinha 15 anos, a minha avó tinha posses, a minha vó materna. Esse tio irmão dela bebia tanto que deixou a minha avó pobre, quase que na miséria. Ela disse que a minha avó tinha um cinto grande, que ela botava em volta da cintura, porque quando ele chegava ele obrigava a minha avó a destrancar uma gaveta ou o cofre para pegar dinheiro, para dar para ele custear a bebida dele. Assim foi indo, foi indo, até que a minha avó faleceu no interior de Minas Gerais. Dizem que foi enterrada ate em cova rasa, isso que ela, a minha mãe, contou.
         Voltando ao assunto da família do meu pai, essa que eu tive mais contato. Eles eram uma família muito grande, de 10 irmãos. Então a gente tinha muitos primos, muita primas. Então eu levei uma meninice muito agradável. Lembro-me que a gente ia passear na fazenda do meu avô, que era próximo da fazenda do meu pai. Lembro-me do meu avô descascando laranja para todo mundo, para os netos, todos sentados assim numa varanda grande, lá na cozinha. Descascava laranja e dava para todo mundo, para todos os netos chupar. Eram mais ou menos 30 para 40 netos e a essa infância foi muito agradável. Lembro bem disso, a gente andar a cavalo, ir para o curral.
         Quando meu pai já era pecuarista, já estava bem de vida na fazenda. Tinha feito uma casa boa. A casa tinha acho que cinco quartos, uma sala grande... Naquela época não tinha televisão, nem rádio na fazenda, nem luz elétrica, nem muito menos telefone. A gente viveu quase que isolada no tempo. Só fui mesmo entender, como saber de radio, quando tinha uns 12 anos de idade, quando começou a Segunda Grande Guerra.
         Marcou-me muito também quando a gente morava em Campinas. Tinha um senhor que não era um senhor não: ele vivia vestido de mulher, com um turbante na cabeça, e saía vendendo bolo de arroz. Isso durante a Segunda Guerra mundial. Depois a polícia descobriu que ele era um nazista, que era um espião que estava espionando, que não vendia bolo de arroz coisa nenhuma. Ele estava era espionando a costa do Brasil, os navios que foram afundados aqui na costa do Brasil...
E nessa época Goiânia estava sendo construída. Lembro bem de movimento de carro cheio de areia, tijolo, aquele movimento todo. Mas não me lembro da inauguração da cidade; acho que eu estava na fazenda. La não tinha rádio, naquela época, nem telefone. Eu sei que depois nós mudamos para Goiânia, em 1943.
         A vida na fazenda era uma vida muito boa, muito tranquila. Só que a gente trabalhava muito. A minha mãe inventava coisa para a gente fazer. Tudo era feito em casa mesmo: o arroz era beneficiado na fazenda, tinha o monjolo... Depois a gente mesmo preparava o arroz, abanava o arroz, catava os marinheiros do arroz e minha mãe fazia. Refinava o açúcar e enchia os vidros enormes de açúcar todo refinado e peneirado. A gente mesmo que moía o café no moinho manual; ela gostava de encher latas e latas do café torrado e moído em casa. Quem torrava o café era eu, a mais velha. Ficava quase que o dia inteiro só torrando o café. Nessa época já não gostava mais da fazenda por causa dessa trabalheira toda.
         Chovia muito nessa época. As estradas não tinham asfalto. Meu pai tinha um carro, um fordinho 1929. O carro para pegar a gente tinha que tocar a manivela e na subida tinha que empurrar o carro. Sei que a gente ficava doida de vontade de ir embora para cidade, mas cadê estrada? Não tinha estrada, a estrada todo cheia de buraco e lama e isso eu era bem menina, lembro-me bem.
         Voltando ao assunto do colégio em Goiás Velho. Muitas vezes meu pai ia a cavalo nos buscar e voltava a cavalo. Uma vez, lembro-me que a gente era bem pequena, meu pai pediu pouso, uma pousada, e a dona lá da fazenda nos arrumou uma cama dentro de uma tulha de arroz. Meu pai forrou com um lençol e eu sei que de noite ninguém dormiu. O arroz saía e ficava por cima do lençol, ficava uma confusão dos quarenta.
Depois, a terceira vez que meu pai voltou no colégio para nos visitar, ele já chegou num fordinho 29, em Goiás, e nós ficamos todas exibidas. Ele parou o carro na porta do colégio e eu e minha irmã queríamos que a as nossas colegas vissem o carro dele, que ele tinha chegado de carro muito importante. Sei que meu pai nunca entrou numa autoescola. Acho que nem tinha autoescola nesta época. Ele encheu o carro da família com a minha mãe, três filhas, e fomos nós estrada afora. Nem asfalto tinha, era buraco só. Lembro-me bem que o pneu furou no meio do caminho; ele queria encher o pneu (não a câmara de ar) de folha de mangueira. Eu lembro que numa subida ele engatou o carro de primeira e lá fomos nós. Chegou lá em cima o carro apaga, e o carro desceu que desceu doido para trás, de marcha ré, e minha mãe a gritar por todos os santos. Nunca ele entrou numa autoescola. Ele quando faleceu tinha 85 anos, mas nunca ele tinha ido numa autoescola; dirigiu o carro dele até 15 dias antes de morrer.
         Voltando ao assunto do outro colégio onde eu estudava, o colégio lá de Campinas, o colégio Santa Clara. As irmãs foram perseguidas durante a guerra, mas depois o colégio voltou a funcionar. Mudou a direção, as freiras alemãs não eram mais diretoras do colégio, eram simplesmente professoras. Depois a polícia chegou à conclusão que não tinha nenhuma espionagem lá dentro do colégio e nós continuamos a estudar lá. Por sinal era um colégio muito bom: fiz os meus quatro anos primários, mais dois anos complementares. Os quatro anos normais eu fiz numa escola Normal, depois, em Goiânia. Mas o colégio era um colégio muito bom. Tinha dois pavimentos, tinha aula de música. Meu pai nos botou pra aprender a tocar violino, mas só que a minha professora era alemã e parece que não tinha muita paciência, me esfregava lá na parede com violino e tudo e eu nunca aprendi a tocar violino. Acho que eu tinha nessa época oito anos.
         Nós ficamos na fazenda até completar o resto do ano. Aí que nós ficamos na cidade novamente. Meu pai alugou casa, naquele bairro de Campinas. Foi em 1943 quando nós fomos morar lá quando o meu quarto irmão nasceu. Foi uma alegria muito grande, porque o meu pai já tinha tido cinco filhas e quando veio este menino ele ficou todo babão, todo orgulhoso.
         Os trabalhadores na fazenda era regime, como se fala, militar não, escravidão. Meu pai era rigorosíssimo. Eles tinham que chegar clareando o dia. Se chegasse depois que o sol tivesse nascido, ele não recebia o empregado, mandava embora. Eles moravam em casa de empregados, eram agregados e tinham que trabalhar de sol a sol. Quando escurecia, começava a escurecer, era hora de ir embora para casa. Mas era assim, eles tinham boa alimentação, eles comiam três refeições fartas por dia. A primeira refeição era às oito e meia da manhã. Era um almoço completo, minha mãe fazia com arroz, feijão, carne-seca com mandioca, bastante carne. Meu pai levava dentro de uma bacia grande essa comida com os pratos na quantia dos empregados que tinha lá; ele levava de cavalo. Almoçavam, mas não tinha esse negócio de uma hora para o almoço coisa nenhuma; acabava de almoçar começava a trabalhar novamente. Acho que sempre teve uma exploração do homem, nunca tinham nada, trabalhavam feito um danado e ficavam devendo. Meu pai tinha um caderninho que ia anotando as despesas deles. Compravam fiado, depois eles iam pagando sabe Deus como, alimento, quilo disso, quilo daquilo, de arroz.
         Agora, eles podiam plantar roças, mas a metade era do meu pai: era meio a meio esse trabalho que eles faziam. Quando era época de roçar pastos eles trabalhavam para o meu pai; quando passava, e era época de plantar, eles plantavam as roças deles: o arroz, o feijão, café, milho. Aí a metade era deles e a metade era do meu pai.
         Lembro bem que meu pai gostava de matar boi para ter carne em casa. Papai dividia com eles a carne e aí papai não cobrava a carne não. Dava pra eles uma quantidade grande, assim... Eu lembro até que eles saíam com uma parte do boi nas costas e levavam, para as casas.
         Era cobrado o querosene, eles não tinham dinheiro para comprar na cidade. Era o toucinho, às vezes o porco - eles não criavam porco, né? Às vezes o mantimento deles não dava até a outra safra e eles iam lá à fazenda comprar. Compravam café, compravam farinha... Às vezes encomendavam com meu pai para ir à cidade comprar as coisas para eles, que precisavam, por exemplo, remédios, calçados, roupas, essas coisas todas... Meu pai tinha um caderno que ia anotando aquilo, né? Não me lembro se eles recebiam dinheiro no final do mês. Não sei nem se papai pagava salário. Eu era muito pequena nesta época, não me lembro não, só lembro disso: que eles trabalhavam desde de manhã, desde a hora que chegavam. Eu via muitas vezes o empregado voltar para traz porque ele não aceitava que tinha chegado atrasado, estava tarde, o sol já tinha aparecido...
         Papai nunca brigava com os empregados. Brigava com esses invasores da terra dele lá, né? Ele era o dono das terras e o Estado vendia o pedaço das terras dele para outros. O Estado não tinha aquele controle de quem era dono da terra, né? Ele tinha a escritura da terra, mas os outros também tinham. Aí que dava briga. Meu pai sempre teve encrencas com gente que o Estado vendia terras dele. As pessoas se apoderam das terras dele com escritura e tudo. Então meu pai tinha que provar na justiça que ele que tinha comprado primeiro, que ele que era o dono, que era herança do meu avô, que também tinha escritura. Então como era tudo muito lento, a justiça, como sempre até hoje, então aquilo ali ele tinha quase que expulsar tudo na marra.
         Eu lembro bem que um invasor fez uma cerca de arame, cercou lá com arame dele. Chegaram lá na fazenda do meu pai contando que a fazenda do homem, chamava seu Conserva (era um alto, assim moreno, quase preto, alto), tinha cercado a fazenda. Meu pai não teve conversa. Botou um revólver na cintura, chamou os empregados, os peões, levou uma junta de bois atrelados para lá. Meu pai em cima do cavalo, com revólver na mão, mandou o empregado atrelar a junta de bois no arame, tocou o boi e foi arrancando o arame a Deus por canto, e foi arrancando tudo. Enquanto isso, lá vem o senhor Conserva. Papai, de cá de longe, grita: “Alto lá, se andar mais um passo morre”.
         Passaram muitos anos, e eu contava isso paro meu neto pequeno. Ele achava uma maravilha, uma distração enorme, todo dia mandava contar: “vó, conta a estória do Conserva?” Eu sei que foi assim que meu pai conseguiu reaver as terras dele, até que o cara encheu e o governo deu outras terras para ele noutro lugar.
         Lembro bem que ele tinha um vizinho lá na fazenda que ele gostava muito, chamava senhor Ferreira. Saíram os dois pela mata adentro, acho que para procurar gado que tinha virado fera, que não estava mais domesticado, que estava muito tempo dentro do mato, e meu pai foi com ele. Naqueles tempos ainda tinha mata; hoje não tem mais, está tudo devastado. Meu pai se perdeu lá dentro com o homem, seu Ferreira. Isso eu me lembro bem: minha mãe aflita, chegou de tardinha, cadê meu pai? Nada. Ele se perdeu, não conseguia sair de dentro da mata de jeito nenhum. O amigo dele ainda falava: “Ah, o caminho é por aqui”, e nada, eles completamente perdidos lá dentro. Aí, meu pai disse: “Sabe de uma coisa? Vamos deixar por conta do cavalo, vamos soltar as rédeas, deixa que o cavalo é que vai nos tirar daqui”, disse. Assim o cavalo foi passando debaixo daqueles cipós, espinhos e tudo. Sei que o cavalo é que conseguiu sair; papai deixou por conta do cavalo, e o cavalo saiu. Sei que quando meu pai chegou a casa, chegou com a roupa toda rasgada, todo arranhado. Para onde ia andando o espinho pegava na roupa dele. Foi assim que ele chegou a casa, deixou por conta do cavalo.
         Naquela época ainda tinha muita anta, muita inhuma (que hoje não existe mais), muito veado, caititu, capivara. Hoje não tem mais nada. Onça pintada eu lembro bem, eu via os caçadores passando. Meu pai deixava passar os caçadores porque não era como é hoje. Na volta eles vinham carregando a capivara ou a anta amarrada assim num pedaço de pau, nas costas, e aí foi acabando tudo. Eu acho que não tem mais nenhuma lá.
         Na minha infância trabalhei muito na fazenda, ajudando a minha mãe. Na beira do córrego tinham muitos pés de goiaba. O empregado ia lá e pegava latas e latas de goiaba: nós íamos fazer doce de goiaba. Era uma dificuldade danada, que aquilo espirra feito o danado. Enchia as caixetas de goiabada que ela fazia muito bem e dava para a gente comer o ano inteiro. Doce de requeijão, queijo, doce de leite em grande quantidade, era muita fartura aqueles tempos. Minha mãe no fogão de lenha; era muito divertido.
         Muitos anos depois, já estava morando aqui em Brasília, meus meninos eram pequenos, e toda vez que eu falava que a gente ia lá para a fazenda eles nem dormiam. Acordavam tudo de madrugada para ir lá pra fazenda do meu pai, bons tempos aqueles.
         Eu fui criada na religião católica, minha mãe era católica, meu pai... Meu pai não era de frequentar igreja, mas ele tinha muita fé em Deus. Eu me lembro que ele chegava muito cansado. Meu pai que trabalhou muito na fazenda era um homem destemido, pegava na enxada, pegava na foice, ele tinha as pernas tortas de tanto andar em cima do cavalo. Quando ele chegava de tarde, suado, tirava o chapéu da cabeça e dizia: “Louvado seja Deus”, e agradecia a Deus. Minha mãe também não era muita de igreja, não. Ela ficou mais religiosa depois de mais velha, quando sempre às seis horas da tarde ela gostava de ouvir (aí nessa época já tinha rádio, quando ela tinha mais idade) a oração da Ave Maria. Sempre às seis horas da tarde, quando ela ligava o rádio para ouvir as orações. E por incrível que pareça, ela morreu às seis horas da tarde...
         Ah, tinha festa religiosa na fazenda. Na festa do Divino Espírito Santo chegava aqueles do festejo, tudo montado a cavalo, tudo enfeitado com papel vermelho e amarelo. Chegava à porta da casa da fazenda e pedia a meu pai licença para entrar. Aí entrava, eu não lembro se rezava não. Mas dançava uma catira, que era a música regional de Goiás, né? Aí minha mãe servia doces para eles, café, umas trinta ou quarenta pessoas a cavalo, tudo com bandeirinha vermelha, assim... Era até animado, bonito, e aí o dono da casa tinha que dar uma oferenda. Meu pai sempre dava dinheiro para eles. Eu não sei o que eles faziam com dinheiro, não, mas meu pai sempre dava. Eles chegam assim por volta de manhã cedo. Não dormiam lá não, e depois seguiam em frente.
         Ah, outra coisa que me marcou muito na fazenda foi à festa de São João. Meu pai fazia fogueira enorme de madeira, madeira velha e tudo... Fazia fogueira, minha mãe preparava doce, pé-de-moleque, assava batata doce. Por incrível que pareça tinha um senhor lá, chamado seu Vicente (até meu compadre, eu batizei uma filha dele), mas se eu contar ninguém vai acreditar. Depois que a fogueira acabava depois que a madeira queimava todinha, que ficava aquele braseiro todinho, ele arregaçava as calças até a altura do joelho, tirava o sapato e atravessava até o final. Ia e voltava em cima das brasas. A gente ouvia os chiados das brasas no pé dele e não queimava o pé, era impressionante. Depois que ele voltava, a gente falava: “Vamos ver os pés dele”: sem um queimado. Aí a gente perguntava por que não queimava. Ele falava: “Eu ergo meu pensamento a Deus e peço a São João, porque São João morreu assado na fogueira, dizendo que na hora em que já estava assado de um lado, ele pedia: ‘pode assar do outro lado que este já está assado’, então com fé...” Pode perguntar as minhas irmãs que todas são testemunhas, e ele ainda tá vivo, lá em Anicuns.
         Ah, o meu pai tinha um empregado lá na fazenda, isso eu era bem pequena, tinha uns oito para dez anos, chamava-se seu Antônio. Um tio, irmão do meu pai, que chegou lá, era muito brincalhão, falava com ele: “Oh Antônio, você quer ganhar um mil reis? Dou-lhe um mil reis pra você comer este prato de comida aí tampadinho de pimenta malagueta”. Ele ia lá ao pé, você olhava o prato dele assim, grande, um cucuruco cheio, tampadinho de pimenta malagueta. Ele comia tudinho, mas também quando ele terminava de comer ele estava soluçando. Dava soluço nele com o tanto de pimenta, mas ele ganhava o um mil reis. Ele era baiano.
         Meu pai não gostava de ter empregado baiano lá na fazenda dele não, porque ele falava que baiano comia muito, dava prejuízo. Na hora em que os empregados estavam jantando, meu pai ficava lá na cozinha, conversando com eles. Gostava de conversar com eles, dialogar com eles. Meu pai sentava num banquinho e ficava prestando a atenção no prato que eles faziam. E ele dizia que o baiano pegava esse prato branco, esmaltado, botava comida e acalcava, acalcava, acalcava, depois botava mais, acalcava, acalcava, acalcava até mesmo, e ia acalvando com a colher e depois até ficar um prato enorme. Então ele dizia “Baiano, aqui na minha fazenda, nunca mais, vá comer assim no inferno!” Era baiano que aparecia lá procurando serviço, mas, os empregados, não sei não, acho que era tudo de lá da redondeza.
         Lembro de um dia, eu estava na fazenda e meu pai tinha saído. Meu pai muito brigão, com esse negócio de terra... Passou um jagunço procurando pelo meu pai. Aí minha mãe disse: “Ele não está” e ficou toda assim, ficou toda pálida. E ele disse, “Hum, por que a senhora ficou tão pálida, tão pálida...” Mamãe falou assim: “não, não tô pálida não”. Acho que ela ficou preocupada por causa do meu pai, que não tinha chegado. E ele saiu, esse homem, e ficou esperando o meu pai desde muito distante. Amarrou o cavalo num arbusto e ficou lá, esperando o meu pai. Mas o meu pai sempre ele não voltava pelo mesmo caminho que ele tinha ido, ele voltava por outro. Sei que no outro dia ele voltou lá no mesmo caminho e achou ponta de cigarro do homem jogada, o galho da árvore toda raspada pela rédea do cavalo que ficou esperando ele, e ele não apareceu. E assim foi, e assim...
         Quando o meu pai era bem moço ainda, ele tinha uns vinte e dois anos de idade, ele estava numa fazenda com meu avô e outro irmão dele tinha brigado lá na fazenda. Essa pessoa atirou no meu pai pensando que fosse o irmão dele, não atirou com intenção de ferir o papai não, mas o outro. O papai levou dois tiros. Meu pai estava num cavalo: o tiro entrou numa perna, o cavalo caiu morto e meu pai recebeu um tiro no peito. Foi briga lá por causa de boi, de gado, não tinha nada haver com terra. Eu seu que meu pai depois (naqueles tempos a medicina ainda estava muito atrasada) ele veio aqui para tal de Bonfim. Eu não sei onde fica isso. Aqui por perto, né? Foi internado, quase que morreu e teve que tirar costelas, quebrou várias costelas. Eu tinha um ano e pouco. Sei disso por que ele que contava. Ele tinha uma marca, uma cicatriz enorme, abriu de um lado, para tirar as costelas quebradas.
         Aí que mais que tem na fazenda? Meu pai sempre trabalhou na fazenda, depois ele foi progredindo na vida, ficou bem de vida. Meu avô morreu, ele herdou a fazenda, mais terra... Depois a mãe dele faleceu também, ele herdou mais terra da minha avó. Sempre foi um homem muito trabalhador, ponderado, não gastava com nada. Sei que anos depois ele estava bem de vida, fez casa nova na fazenda, já tinha luz elétrica, já tinha geladeira, isso foi no ano de 1964, 1966...
         Quando eu tinha já uns quinze anos nós fomos morar em Goiânia, que já era uma cidade, já tinha sido inaugurado como a nova capital de Goiás, né? Nos fomos morar numa casa perto do Ateneu Dom Bosco, mas não era casa do meu pai não, era uma casa alugada, uma casa pequena. A gente ficava lá estudando, e nessa época estava no auge da guerra e a gente acompanhava tudo pelo rádio, não tinha televisão. De maneira que a gente acompanhava tudo então, eu era mocinha, tinha uns 15 anos, 16 anos, e sabia todos os pontos da guerra: a batalha de Stalingrado; quando os americanos, os ingleses, os franceses, invadiram Berlim, a capital da Alemanha...
         Quando a guerra terminou... Eu sei que eu acompanhei bem quando eles afundaram os nossos navios aqui na costa brasileira. Acho que foram mais de cinco navios, nem sei quantos, foram vários navios torpedeados aqui na costa do Brasil. Ah, eu me lembro de quando Getúlio, depois que os navios foram afundados na costa do Brasil (o presidente era o Getúlio Vargas), declarou guerra ao Eixo, aos nazistas. Aí, os pracinhas foram convocados para ir lutar lá na Itália. A gente ficava acompanhando tudo: as lutas lá na Itália, onde morreram tantos brasileiros; a tomada de Monte Castelo e outras cidades. Quando eles voltaram para cá, para o Brasil, a chegada deles lá na cidade de Goiânia (tinham ido muitos goianos), eles desfilaram pelas avenidas, o povo todo aplaudiu a chegada deles. Tinha até o irmão de uma colega minha que perdeu a perna lá na tomada de Monte Castelo, e tinha ficado na Flórida pra fazer uma perna mecânica. Sei que no dia que terminou a guerra, foi em 1945, ah, mas foi muito bonito! A gente acompanhando pelo radio, os sinos de todo o mundo tocando... Goiânia mesmo, os sinos de todas as igrejas repicaram, o povo saiu para rua gritando alegria, ficou todo mundo feliz porque tinha terminado a guerra.
         Nessa época, antes de terminar a guerra, a gente ia muito ao cinema e os filmes todos era relacionados com a guerra. Eram uns filmes de romance, mas tudo relacionado com a guerra: sobre aviação, bombardeio... E a gente acompanhava tudo, vários filmes, em quase todos os enredos dos filmes eram sobre a guerra. Eram filmes ótimos, muito bons, melhores que os de hoje.
         Nessa época, quando a guerra acabou eu tinha dezessete anos quando eu tive o meu primeiro namorado. Era um moço lá de Goiânia mesmo, mas meu pai era muito severo, muito brabo, muito antiquado, não deixava a gente sair de casa para namorar. A gente namorava tudo na base do escondido. Ele ficava me esperando na esquina do colégio da Escola Normal, onde eu estava fazendo o curso Normal, e assim foram-se uns dois anos. Depois a gente terminou o namoro porque ele foi embora para Belo horizonte estudar engenharia, porque em Goiânia naquela época só tinha faculdade de Direito e a Escola Normal, mais nada, não tinha faculdade nem universidade, nada. Mas o meu pai era muito brabo, muito severo, a gente não tinha liberdade de conversar em casa a respeito de namoro, nós não podíamos ir à festa, não fomos a um baile de carnaval, nada, ele não deixava.
         Eu lembro bem que na nossa festa de formatura, os vestidos mais caros que tinham eram o meu e da minha irmã. Tudo muito chique, de organdi suíço, muito bonito, nós fomos para o Jóquei Clube pra dançar a valsa. O meu padrinho da valsa era um tio casado e o da minha irmã outro tio, por sinal velho. As outras todas estavam com namorados e só nós duas que eram com tio e velho, ainda por cima. Dançamos a valsa, acabamos de dançar a valsa, meu pai: “Para casa!”. Eu sentada no banco traseiro do carro com aquela roupa enorme de organdi suíço, tudo muito chique, com uma raiva danada. O namorado lá em pé, olhando a gente sem poder fazer nada, nem dançamos nem nada. Meu pai era fogo, viu?
         Bom, isso foi quando eu tinha uns 18 anos, época da minha formatura. E sempre ele muito severo, muito brabo, a gente pensava que nem fosse casar, que ia ficar tudo solteirona, as três lá, solteironas. Os vizinhos da casa do meu pai tinham três solteironas do lado e três em frente, nós ficávamos de noite conversando falando assim: “Nós somos mais três candidatas...”.
         Eu sei que quando eu tinha 21 anos conheci o meu marido, que era do Rio de Janeiro. Chegou lá a serviço do DASP, era uma antiga repartição que hoje não tem mais, ligado ao Ministério da Fazenda. Chegou lá para realizar um concurso, que até eu estava inscrita, mas não fiz as provas porque não tinha estudado. Nesses dias tinha nascido a minha irmã caçula, ela estava com 13 dias de nascida quando conheci o meu marido, ele nem acreditou que eu tivesse uma irmãzinha recém-nascida.
         E foi um drama dos quarenta porque meu pai brabo demais, a gente ia ao cinema escondido, meu irmão ia com a gente porque ele era meninote, uns 8 ou 10 anos. A gente dava balinha para ele e ele acompanhava a gente. Mas ele sentava lá na ponta dum banco bem na frente e deixava a gente lá atrás com o namorado e nunca dedurou ninguém, ele, o meu irmão. E meu marido hoje a gente saía do cinema e ele ficava lá na esquina muito longe, uns três quarteirões, não podia descer a nossa rua, que era a Rua 9.           Lembro bem que um dia, eu na janela, ele passava de bicicleta na porta da nossa casa e encontrou com a minha mãe que ia subindo visitar a minha avó, ele ficou rodeando a minha mãe de bicicleta, achando a minha mãe muito parecida comigo. Ele disse assim, “Essa aqui só pode ser a mãe da Zita”. E ficou rodeando minha mãe de bicicleta e eu da janela olhando. Minha mãe chegou à casa fera da vida, disse que um tarado estava rodeando ela e quase que atropelou ela. E eu fiquei bem quieta. Sabia muito bem quem era que estava rodeando ela... Ai, meu Deus do céu...
         Bom, ele ficou um mês lá em Goiânia realizando o concurso, foi embora para o Rio de Janeiro, eu namorei, noivei, tudo de longe. Foram um ano e três meses. Ele apareceu lá depois só umas duas ou três vezes.
         No dia em que ele apareceu lá em Goiânia para pedir o casamento, ele marcou que nove horas ele estaria lá. Meu pai botou o terninho dele e tal, minha mãe fez doce e ficou esperando. Quando foram nove horas em ponto, ele bateu o pé lá no alpendre da minha casa. Minha mãe olhou para ele e disse: “Esse forasteiro, tem cara de casado, lá no Rio de Janeiro, que ninguém conhece.” Aí ele tirou tudo que foi documento que ele tinha de dentro de uma maleta preta e foi mostrar para o meu pai, desde as fotografias da mãe dele, do pai, certidão de nascimento, carteira de trabalho, aonde trabalhava... Meu pai com os óculos na ponta do nariz examinou tudo. Mesmo assim meu pai, não satisfeito, mandou um mensageiro no Rio de Janeiro, na repartição aonde ele trabalhava, para saber quem ele era, quem era o dito cujo. Assim, são 47 anos de vida em comum.
         O casamento foi uma celebração muito bonita. Meu pai já era um homem rico, já tinha dinheiro, isso foi em 1951, quando me casei. Ele fez um enxoval para a gente muito bonito; nós éramos três moças, foram três casamentos seguidos. A primeira fui eu.
         A cerimônia religiosa foi muito bonita, lá no Dom Bosco. Naquele tempo usava alugar os táxis todos da cidade para levar os convidados para casa. Meu pai alugou todos os táxis, os táxis ficavam todos na porta da igreja à disposição dos convidados. Aí a família do meu marido que era do Rio de Janeiro - foi a minha sogra, o meu cunhado, e um casal de tios dele, ficaram admirados de ver a festa muito bonita, tudo preparado com o esmero, os doces todos enfeitados com aquele camafeu, coisa antiga, tudo muito bonito. E me casei, fui morar no Rio de Janeiro.
         Meu pai e minha mãe ficaram apaixonados, ficou muito tempo sem botar comida na mesa por causa do meu lugar que tinha ficado vago. Comia todo mundo na cozinha, ninguém botava mesa, para não ver o meu lugar vago.
         Fui morar no Rio de Janeiro, achei péssimo o Rio de Janeiro. Sentia muita falta da minha mãe, da minha família. Fui morar em um apartamento em Ipanema, um apartamento de fundo... E eu que estava acostumada lá com a minha casa, que era uma casa grande lá em Goiânia, com minha família muito grande, muito numerosa, a casa muito cheia, tudo movimentado, de repente me vi dentro de um apartamento de fundo lá em Ipanema, com o meu marido, que saía cedo para trabalhar e só chegava muito tarde da noite. Chorava até. Até que um dia ele cansou de me ver tanto chorar e pediu uma requisição e a gente foi morar em Goiânia. Isso foi no ano de 1952, quando nasceu a minha primeira filha. Em Goiânia eu tive três filhos, morei em Goiânia depois oito anos.
         Depois, quando surgiu Brasília... Meu marido estava lá em Goiânia requisitado, todo ano ele tinha que ir ao Rio de Janeiro renovar a requisição, senão a gente tinha que voltar para o Rio e eu não queria saber do Rio de Janeiro de maneira alguma.
         Aí quando surgiu Brasília eu achei bom porque era perto de Goiânia, e ficava fácil para eu ver a minha mãe, a minha família. Foi em 1961, eu vim para Brasília, a minha filha mais velha tinha nove anos, meu segundo sete, meu terceiro três e ai a ultima nasceu aqui em 1962 no Hospital de Base.
         Brasília, naquele tempo ainda estava no começo, eu fui morar na Asa Norte. A rua que eu morava nem era calçada nem nada. Hoje, onde é o Hospital Presidente Médici, tinha uma casinha ali que vendia frango. A gente atravessava e ia comprar frango. Não tinha asfalto, o supermercado era debaixo dos pilotis do bloco 3, não era nem letra, era um bloco bem lá na ponta. A gente não tinha carro, era uma dificuldade danada, a gente fazia as compras debaixo desse prédio que era um supermercado. Mas eu gostava.
         Foram os anos mais felizes que passei aqui em Brasília, depois de casada, morando ali na Asa Norte. Meus filhos eram pequenos, meu marido era novo, e trabalhava muito, era funcionário do DASP. Eu lembro bem que meu terceiro filho estava brincando lá na frente do prédio e tinha surgido à bola de futebol Drible, passou um homem e tomou a bola dele. Ele chegou a casa chorando que um homem tinha passado e carregado à bola.
         Bom, voltando a Goiânia, antes de me casar eu era professora, do grupo escolar modelo. Não que eu precisasse...
         Em 1962, quem estava no governo era o Jânio Quadros. E, eu sei que aquela mania... Parece que ele era meio louco, queria implantar uniforme para os funcionários públicos, parecia um uniforme de safari: bermudão de jeans e casaco abotoado na frente. Meu marido ficou apreensivo com medo de ter de abandonar o terninho dele para ter de usar este uniforme para ir trabalhar, não aceitava a ideia. E o lema de Jânio, acho que é lema mesmo, era uma vassoura. Que era para varrer a sujeira de todo o mundo aí. Quando ele fazia discurso na televisão aparecia todo mundo com vassoura na mão nos comícios e depois, quando não dava certo, era vassourada para todo lado, era uma coisa de doido.
         Bom, sei que Jânio Quadros, quando cheguei aqui, ficou seis meses no governo, aí quem tomou posse foi o João Goulart. Aí parece que o João Goulart também ficou pouco tempo, ele foi deposto eu acho, e...
         Bem, me deixa falar antes da fundação de Brasília, o Juscelino né? O Juscelino Kubistchek eu acho que para mim ele foi o melhor presidente que o Brasil teve. Porque ele mudou a capital pra cá, para o planalto central, que era tudo muito abandonado, um lugar ermo, o Brasil só tinha progresso no litoral. Depois, com a mudança da capital para cá, parece que teve mais progresso. Ele trouxe a indústria automobilística, para cá para o Brasil; ele abriu as estradas, estradas para todo lado... Eu sei que naquele tempo todo mundo viajava era a cavalo, porque ninguém tinha carro. Trouxe a indústria automobilística, teve a coragem de mudar a capital para cá, para um lugar completamente ermo. Instalou-se aqui, foi morar no Palácio do Catetinho, até que Brasília tivesse condições de construir os prédios e repartições públicas e os palácios e tudo. Sei que foi um tempo de grande desenvolvimento naquela época dele, do Juscelino.
         Depois dele o João Goulart foi deposto, e tomou posse aí a junta militar que ficou quase vinte anos, governando aí, trazendo o povo tudo debaixo do chicote. Ninguém podia falar nada, ninguém tinha liberdade de expressar, todo mundo ficava morrendo de medo, foi uma perseguição total, foram banidos vários brasileiros para fora. Ainda bem que naquela época o meu filho era pequeno, senão ele estava envolvido, teria sido banido, e até hoje ainda estava para lá.
         Mesmo assim ele ainda pegou o restinho da ditadura. Eu lembro bem que uma vez ele estava lá na UnB, aquele secretário americano, o Kissinger, estava lá com o Leitão de Abreu, não sei que foi fazer lá, palestra, uma reunião não sei o quê, e jogaram ovo em cima do homem lá, na careca do homem, em cima do Kissinger... Eu sei que foi uma confusão danada, a polícia chegou, fotografou todo mundo, e o meu filho já estava rapaz... Eu sei que aqui em casa umas três ou quatro vezes vinha oficial de justiça aqui trazendo intimação, mas eu nunca cheguei a... Eu assinava a intimação com outro nome, nunca botei o meu nome, e falava que ele não estava, foi um tempo difícil.
         Mas, quando em vim para cá Brasília não tinha nada, as ruas não eram asfaltadas, levantava aquela poeira em forma de redemoinho, que tomou o nome de “lacerdinha”, porque o Lacerda, eu acho que era governador lá do Rio de Janeiro, não sei o que ele fez lá de errado, e puseram o nome desse redemoinho de poeira de “lacerdinha”. Sei que esse “lacerdinha” chegava e sujava a casa da gente tudinho, trazia as coisas tudo pra dentro de casa.
         Morei lá na Asa Norte quatro anos e meio, não tinha nada, quando a minha filha nasceu, a caçula, nem supermercado não tinha nada lá. Quando ela estava com uns 3 anos, eu tinha muita vontade de sair de lá e vir morar na Asa Sul.
         Lá no DASP tinha a caixinha onde todos os funcionários contribuíam uma determinada importância, que a hora que um precisava de dinheiro recorria à caixinha. E um colega do meu marido recorreu à caixinha e ficava com o dinheiro, foi aumentando a dívida e ele nunca conseguiu repor o dinheiro. Então para ele ficar livre, para ele sair bem, ele precisou passar o apartamento dele para frente. Procuraram meu marido, se queria trocar o apartamento desse colega da Asa Sul pelo nosso, da Asa Norte. Mas tinha uma espécie de um ágio, duzentos e tantos cruzeiros, não sei mais, uma importância grande.
         Como meu marido também era funcionário público e não tinha dinheiro (como não tem até hoje), eu fui a Goiânia pedir meu pai dinheiro para dar para o homem. E meu pai me deu a importância, eu vim para cá para Brasília e o meu marido trocou com o colega essa importância, deu para ele esse dinheiro, mas deu o dinheiro, mas, e ele ainda lá no apartamento, e a gente aqui na Asa Norte, sem um documento, sem um recibo, sem nada.
         Passaram 15 dias e o homem nada de sair, nada de trocar o apartamento... Meu marido contratou um caminhão de mudança, levamos a mudança, cheguei ao apartamento, ele estava dormindo, tinha bebido, estava deitado, eu toquei a campainha e falei: “Olha, a nossa mudança taí.”. “Ah, eu não tenho dinheiro pra mudar”. Eu disse: “Não, o caminhão que trouxe a minha mudança leva a do senhor, tá lá”. E foi assim, senão não saía, já tinha recebido o dinheiro, estava no bem bom, já tinha liquidado lá o desfalque que ele tinha dado né? Assim eu vim para esse apartamento que já tem 35 anos que eu moro aqui.
         E Brasília naquele tempo era assim mais calmo, não tinha esse movimento que tinha, meu marido comprou aqui o seu primeiro carro em 1962, era uma Vemaguete e fiz vários passeios aqui nas redondezas, com os meninos, os filhos eram pequenos, a gente ia lá para o Lago Norte pegar pequi, e era tranquila a cidade naquela época, não tinha tanto movimento de carro nem nada como tem hoje.
         Agora hoje eu já estou com 69 anos, meu marido com 77, não está bem de saúde, mas estamos levando. Eu tive 4 filhos, já casei dois, tenho seis netos, o mais velho com 22 anos, os dois últimos, gêmeos, com seis anos, e tenho um neto que sempre está mais comigo, o Pedro, que gostava que eu contasse estórias do meu pai lá na fazenda.
         Hoje eu tenho um carro zero quilômetro que eu comprei. Meu marido não dirige mais que está doente, mas eu ainda dirijo. Estamos todos bem, graças a Deus, vamos levando, apesar de o meu marido estar doente, a gente tem que aceitar, né? Já tá com idade, tem que ter um pouco de paciência, que tudo se resolve...
         Há, eu tenho uma filha mais velha que é médica, o segundo é sociólogo, a terceira tem o curso de contabilidade, mas trabalha num tribunal desses aí. Está tudo tranquilo, está tudo em paz, graças a Deus. Tenho uma nora, tenho um genro, e é só.
         O que eu espero da vida agora? Eu espero da vida é passear, eu estou com ideia de reformar esses armários que estão muito feios, fazer uma estante aqui, na sala, e pintar o apartamento que está sujo. Neste ano que vem se Deus quiser vou pintar o apartamento, aproveitar que a minha nora está lá para o Rio fazendo um curso, e vou ficar lá no apartamento do meu filho, até pintar aqui, uma semana ou mais. Se Deus quiser ainda pretendo, se eu arranjar uma pessoa para ficar aqui com meu marido, no ano que vem fazer um passeio, sempre quando a minha filha tiver que ir.
         Eu não espero muita coisa da vida agora não. Eu só queria passear, eu gosto de passear, fazer uma viagem, e ver todo mundo bem de saúde, feliz, trabalhando, só isso, se Deus quiser e levar a vida em frente.

2. Análise das categorias sociológicas

         A principal categoria sociológica identificada na história de vida de Dona Zita é a instituição família. Tendo sua origem no meio rural, a figura do avô e principalmente do pai é marcante em sua descrição. O conceito de família patriarcal pode ser bem empregado para a conformação dos significados expressos pela entrevistada.
         A instituição família patriarcal assentasse sobre uma estrutura agrícola de produção e, enquanto núcleo da sociedade rural é geralmente numerosa, estabelecendo laços de solidariedade, respeito e fidelidade entre seus membros. A divisão de trabalho entre os gêneros é precisa, cabendo às mulheres a organização da economia doméstica, que cumpre papel fundamental para o desempenho das atividades de trabalho dos homens. Enquanto cabem a estes a segurança e a manutenção do núcleo familiar, desenvolvendo as atividades laboriosas no mundo exterior desafiante, no mundo-vida das relações sociais de trabalho entre atores diversos e distintos, cabe às mulheres, o mundo do lar, rotineiro, circunscrito. Por isso mesmo, o pai é a autoridade máxima, que os membros da família devem respeito, obediência e cultivam devoção.
         A família patriarcal é conservadora na manutenção dos valores, tradições e instituições. O casamento tem especial significado, ocorrendo, geralmente, muito cedo para os jovens. Este foi o caso dos avós paternos da Dona Zita e, de certa maneira, de seus pais. As investigações e desconfianças que precederam seu próprio casamento revelam um alto significado atribuído a esta instituição. Comumente, as famílias patriarcais, sendo de base rural e detentora de posses e propriedades no campo, percebem no casamento um vínculo duradouro entre o casal na garantia da legitimidade da descendência e na acumulação e transferência de patrimônio por meio da instituição herança, própria de um sistema social que tem por base a propriedade privada dos meios de produção. A história de vida da Dona Zita corrobora este significado, ao descrever as mudanças ocasionadas pelo falecimento dos avós na situação de vida de sua família.
         Mas os pais de Dona Zita revelaram serem portadores de algumas mudanças com relação às tradições. De especial significância revela-se a postura do seu pai com relação à educação formal das filhas. Sendo homem de poucas letras, mas de espírito empreendedor, que busca acompanhar em alguns aspectos novas oportunidades e tendências, não mediu esforços para que as filhas recebessem uma educação formal de qualidade, em colégios internos de tradição, mesmo vivendo e trabalhando na fazenda, longe da cidade. Assim, a educação, enquanto categoria sociológica de análise, ganha destaque no depoimento da entrevistada. Interessante notar a dubiedade de seu depoimento com relação à atmosfera dos colégios em que esteve interna afastada de seus pais. Ao mesmo tempo em que se refere às freiras com certa afeição, descreve a instituição escola da época de sua infância como rígida e severa, ainda que não mencione castigos físicos.
         A continuidade dos estudos em Goiânia, no curso Normal de formação de professoras, atende a distinção tradicional de formação diferenciada de gêneros. A mulher, mesmo preparando-se para o desenvolvimento de uma atividade de trabalho fora do lar, tem um horizonte prelimitado e afeto a funções que lhe seriam “inerentes” segundo a moral patriarcal dominante, qual seja a de educar jovens e crianças. Nesta perspectiva, compreende-se o fato de na Goiânia da época apenas existir essa opção de formação para as mulheres, e somente o curso de Direito para os homens. Por sinal, esse fato é revelador do caráter bacharelesco da educação masculina das elites rurais brasileiras, cujo título representava uma distinção social no horizonte de uma sociedade que, se já se encontra em processo de urbanização - a construção da nova capital do estado assim o indica -, apresenta-se ainda predominante rural em suas atividades econômicas e na mentalidade da vida social.
         A postura do pai da depoente é extremamente interessante no revelar do seu perfil enquanto representante da elite rural goiana, segmento social ainda pouco estudado e que se ressente de uma conceituação mais precisa e adequada em termos sociológicos, uma vez que afirmamos a tese que o conceito de coronelismo aqui não se aplica de modo cabal, ainda que guarde semelhanças em alguns aspectos.
         O termo “coronel do sertão” é identificado na historiografia brasileira como um título concedido a oligarquias nordestinas - cuja origem remonta aos senhores de engenho do período colonial - que, no período do Império e da República Velha arregimentavam seus trabalhadores como forças-tarefas para empreendimentos de caráter militar, atendendo aos pedidos e ao mútuo interesse político com o governo central. Normalmente, ajudavam no combate a rebeliões de caráter popular, como o combate ao cangaço. O coronel era o sinônimo do grande latifundiário improdutivo, cuja renda e poder era proporcional à quantidade de trabalhadores que viviam em suas propriedades como agregados, meeiros e parceiros, cujo trabalho era apropriado e a produção de subsistência. O caráter de servidão das relações sociais desenvolvidas chegou a levar alguns sociólogos, como Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré, a considerá-las como indicativos da ocorrência de um modo de produção feudal em terras brasileiras.
         Não nos estenderemos nesta temática, pois o método da história de vida não generaliza nem propõe teorias. No nosso caso, nossa intenção é tão somente rejeitar a aplicação de um conceito, o coronelismo, pois significaria uma inadequada transposição mecânica para a análise das elites rurais de Goiás, ou mais especificamente, do perfil sociológico revelado pelo pai de dona Zita.
         Como fazendeiro, que trabalhou arduamente, inclusive no trabalho braçal, o ator, no retrato revelado por sua filha, revela contradições e dubiedades em sua postura. Em primeiro lugar, cumpre novamente ressaltar o seu espírito empreendedor, indicado na descrição no momento em que troca a atividade com o açúcar para o trato com a pecuária. Esta, ainda que praticada de forma extensiva, como sugere a descrição, somada a herança de terras, constituiu-se no principal fator de enriquecimento da família de dona Zita, ao que parece, desde os seus avós. A engorda de bois, em um momento de incremento das atividades urbanas - a depoente foi testemunha da construção de duas capitais, Goiânia e Brasília - vai se constituindo cada vez mais em um empreendimento altamente lucrativo, haja vista o crescimento do mercado consumidor na região. Tal apontamento parece ser uma das explicações da luta pelo domínio da propriedade da terra e o vigor com que o pai de dona Zita se dispôs a empreender. A narrativa também é indicativa do quadro caótico em termos de regularização fundiária no interior de Goiás e da incompetência do Estado.
         A semelhança com o coronelismo nordestino fica por conta do trato com os trabalhadores rurais. A exploração de classe e a apropriação do trabalho marcam as descrições, que revelam a dureza do regime e da jornada de trabalho. A própria depoente faz esta constatação, até certo ponto contraditória pelo fato de ser filha e herdeira de seu pai, a quem a todo o momento descreve com grande admiração. Em suma, não foi apenas o trabalho do fazendeiro e as heranças recebidas que fizeram a sua fortuna; esta, repousa também na crueldade das relações de trabalho impostas como proprietário àqueles que nada tinham e a que tudo se submetiam, marca característica da formação social brasileira.
         Também se assemelha às oligarquias nordestinas o caráter de relacionamento cordial com os trabalhadores, nos momentos festivos e religiosos. Esta dubiedade, na verdade, é uma característica das oligarquias brasileiras, que se expressam principalmente nas relações de compadrio que se estabelecem entre senhores e despossuídos, fato inclusive identificado no depoimento de Dona Zita. Nestes momentos, fora da relação de trabalho, é que os trabalhadores são percebidos como semelhantes pelos patrões, estabelecendo laços afetivos que, em última instância, terão o sentido de buscar uma maior lealdade dos trabalhadores para com os proprietários, lealdade esta que será posta à prova, principalmente, nos momentos de conflitos armados por disputas de terras com outros fazendeiros, como assinalam as situações descritas pela entrevistada.
Diversas categorias sociológicas podem ainda ser identificadas nas descrições da depoente, dentre elas religião, cultura, política e fatos históricos.

Considerações finais.

         Temos a pretensão de termos atingido o objetivo do presente ensaio, que era o de tão somente, por meio da análise de dados colhidos em uma pesquisa de apenas uma entrevista, inferir as potencialidades do método de história de vida na análise de referências empíricas de conceitos sociológicos, afirmando-os e/ou negando-os em sua capacidade de explicações generalistas sobre o real.
         A Escola de Chicago, ponto de partida e principal referência da sociologia norte-americana, em oposição à tradição europeia das grandes teorias, como que inaugura as microssociologias.
         A partir do depoimento de Dona Zita e de sua análise, percebe-se as limitações do método, mas também as suas potencialidades, que o transcendem. A memória social, o processo de construção da identidade, elementos de história oral, traços das raízes da cultura popular, até então não registrados ou analisados vêm à tona e se tornam parte do presente, se constituem em legado e fio condutor para a análise das atuais e próximas gerações de cientistas sociais.

Referências

CUIN, Charles-Henry & GRESLE, François. História da Sociologia. São Paulo, Ensaio, 1944.

MALINOWSKI, Bronislaw. Introdução: o assunto, o método e o objetivo desta investigação. In DURHAM, E.R. (org.) e FERNANDES, F. (coord.). Malinowiski: Antropologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 55. São Paulo, Editora Ática, 1986.




[1] As entrevistas foram realizadas em outubro de 1997.

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