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" O DIÁLOGO. É O ELO QUE FALTA "

A disputa do positivismo e a dialética na Sociologia alemã: Algumas considerações.




A disputa do positivismo e a dialética na Sociologia alemã:
Algumas considerações.
Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[1].

            A polêmica que iremos introduzir de modo panorâmico para os objetivos do presente ensaio, dada a sua importância histórica e ao alto grau de subjetividade filosófica e sociológica, refere-se à controvérsia que teve lugar no Simpósio de Tübinger, em 1961, realizado pela Sociedade Alemã de Sociologia. Em suma, o confronto de duas concepções básicas de pensar o ser social que tiveram como oponentes Popper e Adorno, aos quais logo se acrescentariam Hans Albert e Habermas.
         Popper e Hans Albert, como racionalistas críticos, são considerados neopositivistas pela maneira de pensar o ser social que, ao fazer a reação contra a filosofia especulativa, propõe como que a conversão do pensamento científico social à lógica formal e ao empirismo. Qualquer teoria que não atendesse a estes princípios seria considerada como mitológica ou pura metafísica.
         A dialética, e seus defensores Adorno e Habermas, originários da Escola de Frankfurt, não aceita a transferência dos princípios da lógica formal para o plano ontológico, da totalidade do ser, pois implicaria em reducionismo, na fragmentação da realidade e na não percepção da práxis objetiva dos sujeitos históricos. A acusação de metafísica e ideologia é devolvida aos positivistas pelo pensamento dialético.
         Esta é a raiz de toda a controvérsia. A existência ou não de dois modos legítimos e distintos de pensar o ser social, suas implicações sociológicas, filosóficas, políticas e mesmo ideológicas.
         Em nosso ensaio não temos como objetivo abarcar e considerar toda a rede de argumentos e contra-argumentos utilizada pelos expositores a fim de municiarem as teses que defendem. Nosso intuito será o de apenas - e seguindo a ordem cronológica das exposições – identificar as premissas básicas que sustentam os principais argumentos das estruturas argumentativas utilizadas pelos contendores para defenderem suas teses e, ao mesmo, confrontarem as conclusões dos adversários, realizando uma análise da validade lógica formal. No entanto, ao final, teceremos algumas breves considerações acerca da verdade de algumas premissas utilizadas pelos autores, enunciando o nosso posicionamento diante da contenda.
        
1. Popper e “A Lógica das Ciências Sociais”.

            Popper refere-se à provisoriedade do conhecimento em ciências sociais que, como nas ciências naturais, tem como premissa a insolúvel tensão entre conhecimento e ignorância. Assim, o método da ciência seria o da "tentativa e erro", ou seja, "consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas" (POPPER, 1978, p. 16), onde a crítica lógica, ou seja, a procura de contradições lógicas como o critério de falseabilidade de teorias, teria um papel fundamental no sentido de dar objetividade à ciência, pois nela repousaria a própria a objetividade do método crítico.
         Popper destaca que a objetividade nas ciências sociais é mais difícil de ser atingida que nas ciências da natureza, dada a existência de juízos de valores dos quais o cientista social não consegue se desvencilhar completamente, o que poderia comprometer o caráter objetivo de sua produção científica. Essa concepção constitui-se em um avanço sobre o ideal weberiano de neutralidade e objetividade científica, ao afirmar que “É um erro admitir que a objetividade de uma ciência dependa da objetividade do cientista" (POPPER, 1978, p. 22), pois o cientista natural também não se apresenta imune ao partidarismo e aos juízos de valor. Desta feita, Popper apresenta uma "tradição crítica” científica, onde repousaria os critérios da objetividade científica.

A objetividade pode, somente, ser explicada em termos de ideias sociais como a competição (ao mesmo tempo de cientistas individuais e de várias escolas); tradição (principalmente a tradição crítica); a instituição social (por exemplo, a publicação em vários jornais concorrentes e através de várias editoras concorrentes; discursão em congressos); o poder do Estado (sua tolerância com o debate livre) (POPPER, 1978, p. 23).

            Popper propõe resolver a questão da isenção de valores de modo semelhante ao problema da objetividade, que crê ter resolvido. A seu ver, "embora seja impossível separar o trabalho científico de aplicações e avaliações, é uma das tarefas do criticismo e do debate científico lutar contra a confusão das escalas de valores e, em particular, separar avaliações extra científicas das questões de verdade” (POPPER, 1978, p. 25). Os interesses extra científicos seriam todos aqueles que não se remeteriam à órbita do que Popper concebe como "O puro interesse na verdade", como, por exemplo, "os problemas de bem estar humano". Em seu cientificismo, Popper afirma que "A pureza da ciência pura é um ideal presumidamente inalcançável, mas é um ideal para o qual estamos lutando constantemente - e devemos lutar - por intermédio da crítica" (POPPER, 1978, p. 25).
         A seguir, em sua argumentação, Popper chama o método crítico de o método da ciência que consiste em eleger problemas relevantes (e "científicos”) e "na crítica de nossas permanentes tentativas experimentais e provisórias para solucioná-las" (POPPER, 1978, p. 26). Esta é a sua tese central.
         Popper parte então a apresentar a lógica dedutiva como o pensamento que permite um rigoroso critério de verdade e falsidade das proposições.

Nas ciências, trabalhamos com teorias, isto é, com sistemas dedutivos. Há duas razões para isso. Em primeiro lugar, uma teoria ou sistema dedutivo é uma tentativa de explicação e, consequentemente, uma tentativa de solução para um problema científico - um problema de explicação. Em segundo lugar, uma teoria, um sistema dedutivo pode ser criticado racionalmente através de suas consequências. É, então, uma solução experimental, o objeto da crítica racional. Tanto quanto o sistema de crítica o é para a lógica formal (POPPER, 1978, p. 27).

            Após fazer a elucidação dos conceitos de "verdade" de uma proposição -"se ela corresponde aos fatos, ou se as coisas são como as descritas pela proposição''- e explicação causal - “consiste numa inferência dedutiva (lógica) cujas premissas consistem numa teoria e em algumas condições iniciais, e cuja conclusão é o ‘explicandum” - Popper, através de dois conceitos análogos àqueles, o de aproximação da verdade e o de conteúdo explicativo de uma teoria, vai tratar finalmente de uma ''lógica geral do conhecimento", explicitando a sua lógica situacional:

A investigação lógica da Economia culmina com um resultado que pode ser aplicado a todas as ciências sociais. Este resultado mostra que existe um Método puramente objetivo nas ciências sociais, que, bem pode ser chamado de método de compreensão objetiva, ou de lógica situacional. (...) Este método consiste em analisar suficientemente a situação social dos homens ativos para explicar a ação com a ajuda da situação, sem outra ajuda maior da psicologia. A compreensão objetiva consiste em considerar que a ação foi objetivamente apropriada à situação (POPPER, 1978, p. 31).

            Por fim, Popper tenta dar um exemplo da aplicação dos princípios da lógica ao plano ontológico - a "logica situacional” - ao admitir as instituições sociais como determinando "o peculiar caráter social de nosso meio social" e conclui: ”embora, não possamos justificar nossas teorias racionalmente e não possamos, nem mesmo, provar que são prováveis, podemos criticá-las racionalmente. E podemos, constantemente, distingui-las de teorias piores" (POPPER, 1978, p. 34).

2. A posição de Adorno.

            A resposta de Adorno a Popper em "Sobre Ia Lógica de las Ciencías Sociales" tem como tese central e ponto de ruptura para com este a constatação da inaplicabilidade dos princípios da lógica formal para o estudo do ser social, na medida em que:

El objeto mismo, Ia sociedad, no es unánime, ni essencillo, ni vieni entregado de maneira neutral al deseo o a la conveniencia de la formalizacion categorial, sino que es, por el contrario, bien diferente a lo que el sistema categorial de la lógica discursava espera antecipadamente, de seus objetos. La sociedad es contradictoria y, sin embargo, determinable; racional e irracional a un tiempo, es sistema y es ruptura, naturaleza ciega y mediación por la consciencia. A ello debe inclinarse el proceder todo de la sociologia. De lo contrario incurre, ilevada de un celo purista contra la contradición, en la más funesta de todas: en la contradición entre su estrutura y la de su objeto (VVAA, 1980, p. 122).

            Criticando Popper, Adorno introduz o conceito de totalidade como essencial a um método que se propõe a pensar o ser social, na medida em que uma observação particular da realidade nada diz em si mesma, isto é, deve ser pensada como parte constituinte de um todo social mais amplo, daí a possibilidade de sua explicação e função. Ao pensamento dialético cabe a percepção da inter-relação dinâmica parte/todo social, visto que a totalidade não mantém nenhuma vida própria exterior a seus componentes, mas se produz e reproduz em virtude de seus momentos particulares.
         Outra danosa consequência dos princípios da lógica formal quando aplicados à esfera do ser social refere-se ao princípio da não contradição. Segundo Adorno, a contradição não seria eliminável do mundo pelo simples aumento de conhecimento ou maior clareza das proposições; antes, em se tratando de uma sociedade capitalista que tem como suporte a exploração do trabalho, é parte constituinte da mesma. A tentativa popperiana de fazer uma separação radical entre os problemas imanentes à ciência e os "extra científicos" implica em uma autêntica fetichização da mesma.  Adorno formula a tese da racionalidade da contradição necessária, quando afirma que para a concepção do caráter contraditório da realidade social não sabotar o seu conhecimento nem o entregar ao azar, deve-se inclusive conceber a própria contradição como necessária, estendendo a ela a racionalidade de modo a possibilitar sua dinâmica e compreensão.
         A seguir, em sua argumentação, Adorno critica o método de tentativa-e-erro quando transplantado mecanicamente das ciências da natureza às ciências sociais:

En el clima en que ha surgido éste, la palabra ensayo es equívoca, evoca, de manera harto directa, associaciones científico-naturales y parece dirigir su aquijón contra la autonomia de cualquier pensamiento que no resulte susceptible de ser sometido a una contrastación muy precisa. (...). Si no se quiere confundir, en última instancia, la sociologia con los modelos de las ciencias de la natureza, el concepto de ensayo habrá de abarcar tambièn ese pensamiento que, saturado de experiência, apunta más allá de ella con el fin de comprenderla (VVAA, 1980, p. 129).

            Adorno faz uma crítica central ao método popperiano, que, em sua percepção, se levado às últimas consequências, implica em subordinação do objeto ao método. Em síntese, afirma que se se interpreta a dependência do método a respeito da coisa com o mesmo rigor como vem implícita em algumas determinações popperianas, como a da relevância ou o interesse como padrões de medida do conhecimento social, não seria possível ao trabalho crítico da sociologia limitar-se a autocrítica, a reflexão sobre seus enunciados, teoremas, métodos e aparatos conceituais.

Por muy instrumentalmente que sean definidos los momentos metodológicos, su adecuación al objeto viene exigida siempre, aun cuando a veces solo de manera velada. Los métodos solo son improductívos cuando les falta esta adecuacián. La cosa debe gravitar con todo su peso en el método, y ostentar en él su propria vigencia; de lo contrario, incluso el método más depurado resulta deficiente. (...) Cuando la crítica de las categorias sociológicas se reduce a la crítica del método y cuando la discrepancia entre concepto y cosa se produce a costa de la cosa, que no es lo que pretende ser, lo que decide és el contenido del teorema sujeto a critica (VVAA, 1980, p. 130).

Por fim, Adorna ataca o logicismo popperiano e a concepção de neutralidade por este defendida, concluindo por situar a teoria de Popper como ideológica, ainda que não de uma maneira explícita. No entanto, quando trata da investigação empírica em sociologia, a postura de Adorno ganha um tom mais contunde e melhor argumenta suas críticas conclusivas.
         Se o modo formal de pensar, ao reagir contra o caráter especulativo da filosofia tradicional como que propõe a sua conversão ao princípio da lógica formal e à investigação empírica, caracterizando o positivismo, Adorno, no ensaio "Sociologia e Investigacíón Empírica”, vai centrar suas críticas neste último aspecto do pensamento formal. Aqui a sua estrutura argumentativa sustenta a tese que a investigação empírica é uma ideologia necessária, com uma gênese histórica específica, o sustentáculo de todo um modo formal de pensar o ser social de maneira a fragmentá-lo, manipulá-lo, mistificando a própria essência da realidade como totalidade da qual é parte integrante.
      Em princípio Adorno caracteriza a sociologia formal, ou investigação social empírica, a partir do ideal positivista comteano de adoção dos métodos das ciências da natureza. Os argumentos utilizados em seu ataque ao logicismo popperiano voltam novamente a ser utilizados, não havendo muita diferenciação de conteúdo. Assim, afirma que as investigações singulares acerca da totalidade social conduzem, no máximo, a conceitos classificatórios de ordem superior, mas jamais conceitos que expressarem a própria estrutura da realidade, ao mesmo tempo em que esta fragmentação do real implica em uma subjacente concepção de realidade, como um todo funcional, orgânico, que procede pela simples soma de suas partes, seus “átomos”.
          Assim sintetiza sua tese central:

La investígación social empírica no puede evadirse del hecho que todos los estados de cosas que investiga, las condiciones subjetivas no menos  que las objetivas, están medidados por la sociedad. Lo dado, los hechos a que en virtude sus métodos aceede y sobre los que incide como algo último no son en sí nada último, sino algo condicionado. De ahí que no deba confundir su fundamento cognoscitivo – el estado de los hechos, pol el que se afana su método - com el fundamento real, com un ser-en-sí de los hechos, com su inmediatez, en fin, com su carácter fundamental (VVAA, 1980, p. 98).

            E as implicações de sua percepção:

La investigación social empírica se convierte ella misma, en ideología tan pronto como absolutiza la opinión pública. A ello conduce su concepto irreflexivamente nominalista de la verdad, que desliza la volonté de tous como verdade sin más, porque no hay manera de averiguar si existe outra (VVAA, 1980, p. 98).

3. O apoio de Habermas.

            Habermas, em seu ensaio “Teoria Analítica da Ciência e Dialética”, oferece uma contribuição à polêmica entre Popper e Adorno, principalmente ao que se refere à explicitação das categorias que a dialética utiliza para pensar o ser social.
         A tese que defende é que a raiz de toda a controvérsia refere-se ao fato de que os interlocutores partem de concepções acerca da realidade social bastante divergente. Enquanto que a observação a percebe como sistema em que “(...) o processo social é concebido como uma conexão funcional de regularidades empíricas” (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 268), Adorno a considera como totalidade em que “(...) o todo não é igual à soma de suas partes, não sendo o mesmo possível de uma interpretação orgânica; por sua vez, a totalidade não se constitui numa extensão lógica determinável mediante a agregação de seus componentes” (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 267). Desta feita, ultrapassando os limites da lógica formal, a dialética, em oposição à concepção linear da realidade, pressupõe a existência da sociedade como totalidade.
         O primeiro argumento apresentado na crítica à observação analítica formal refere-se à inadequação de seu método diante do objeto. Em oposição, Habermas explicita sua posição:

(...) só é possível uma revisão e nova reflexão sobre o âmbito da dialética, partindo de uma hermenêutica natural do mundo da existência social. A inter-relação hipotético-dedutiva dos enunciados cede lugar a explicação hermenêutica do sentido; emergem categorias previamente compreendidas que sucessiva e inequivocamente obtém sua própria determinação pelo valor de sua postura na totalidade desenvolvida, no lugar de uma correspondência biunívoca entre símbolos e significados; aí os conceitos de forma relacional são substituídos por outros que possam expressar ao mesmo tempo os conceitos de função e substância (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 269).

            A relação teoria e experiência, tal como proposta pelos métodos empírico-analíticos, é igualmente rechaçada. Segundo Habermas, a pertinência empírica das teorias como o fator de verdade ou falseabilidade das mesmas é uma tese incorreta, pois nem mesmo o conceito funcionalista de sistema pode ser empiricamente confirmado ou desmentido. Em oposição, formula o conceito de experiência pré-cientificamente acumulada ou experiência primeira da sociedade que “(...) enquanto totalidade é o elemento constituinte da teoria que, partindo de suas próprias construções, submetesse ao controle experimental" (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 270).
         No que se refere à relação teoria e história, o conceito dialético de totalidade mais uma vez é fundamental para a diferenciação com o empirismo em sua recusa em aceitar a peculiaridade das leis históricas, pois as compreende como análogas às leis universais do mundo natural.

A teoria dialética, por sua vez, rejeita o conceito restritivo da lei e estipula a dependência dos fenômenos particulares em relação à totalidade do social. (...) As leis do processo histórico procuram uma validade específica e, ao mesmo tempo, global. (...) o nível de validade das leis dialéticas é mais amplo na medida em que elas não englobam relações particulares de situações específicas e contextos isolados, porém, relações fundamentais de dependência, por cuja mediação o mundo social aparece determinado como totalidade, presente em todos os seus momentos (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 272).

            Assim como efetua uma nova concepção entre teoria e história, Habermas faz a crítica ao positivismo em que "Conhecimentos sem nenhum valor vital nem possibilidade de aplicação prática, situando-se no plano meramente retrospectivo, são decorrência de uma explicação causal no nível estritamente empírico-científico como modelo de explicação causal" (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 274) e acentua o papel da práxis na construção de uma ciência que tenha por meta atingir a essência, desvendar a estrutura da realidade social:

(...) uma teoria dialética da sociedade deve mostrar a existência da realização de um sentido, além do mundo da natureza por mediação de uma manipulação, da existência de relação coisificada, afetando a estrutura do contexto social na sua unidade, criando condições à sua emancipação, referindo-se também entre os desníveis existentes e perceptíveis entre as questões práticas e a realização dos projetos técnicos. É a totalidade do social que constitui o fundamento das contradições do real que, no seu movimento histórico permite a emergência relativa de interpretações que constituem núcleos de orientação das técnicas sociais ante objetivos escolhidos de forma presumivelmente livre. Só na medida em que os pontos de vista estruturais dessa "interpretação geral", liberalmente admitida por Popper, se libertem do arbítrio e possam legitimar-se no plano dialético a partir do contexto real, alcançando assim unicamente os fins práticos da análise da totalidade, podemos contar com uma orientação científica para nossa ação prática. Só é possível fazermos história na medida em que ela se nos apresenta como fática (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 275).

A relação ciência/práxis leva a Habermas o problema da "neutralidade axiológica” e à imperiosidade de uma tomada de posição diante deste; tal problemática será objeto de considerações durante todo o posterior desenvolvimento de seu ensaio. Não sendo nosso objetivo uma análise exaustiva que a questão enseja, não temos como evitar o risco de uma demasiada simplificação da mesma.
         Segundo Habermas, o postulado a “neutralidade axiológica” em Popper refere-se a um imanente dualismo existente entre fatos e decisões. Enquanto que nas ciências da natureza o estudo de seu objeto funda-se no conhecimento acerca deste, nas ciências sociais dadas a peculiaridade do "objeto" social, fundamenta-se no critério de decisão acerca de sua relevância e interesse científico. Como, no entanto, o critério de decisão não imuniza a ciência dos juízos de valor, Popper alude à existência de uma intersubjetividade acadêmica como possibilitando uma real objetividade da ciência, uma luta incessante pela "ciência pura" (POPPER, 1978, p. 25). Habermas reage a este postulado empírico-analítico no sentido em que ele desvincula a produção dita científica da divisão social do trabalho existente na sociedade, o que lhe confere um caráter ideológico.

As relações concretas entre os homens e dos homens com as coisas são violentamente separadas na medida em que as relações de troca dominam o processo de trabalho, tornando o modo de reprodução dependente do mercado. Tal processo de coisificação, o que as coisas e os homens significam para nós em determinada situação concreta, sofre (...) uma conversão num em-si, que é possível de uma vinculação a objetos aparentemente neutros, na forma de uma agregação qualitativa, em outros termos, de um "valor". Produtos deste processo de coisificação são os valores abstraídos de seu contexto vital, como também a neutralidade axiológica do científica e empiricamente objetivado. Da mesma forma como nos valores de troca desaparecem de um lado a força de trabalho materializada e o possível prazer dos consumidores, os objetos restantes despidos de qualidades axiológicas subjetivadas, desaparece de outro lado a diversidade das referências vitais de caráter social, como dos interesses determinantes do conhecimento. Isso facilita seu imbricamento inconsciente na área do interesse complementar ao processo de exploração, abrangendo o mundo natural e social no processo de trabalho e transformado em forças produtivas (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 285).

            Sintetizando e reafirmando o argumento da impossibilidade de uma dicotomia entre interesse e conhecimento, bem como à relação ciência e poder, Habermas acentua no último parágrafo de seu ensaio que:

Qualquer reflexão sobre esses interesses leva a uma análise dialética, entendendo-se dialética a concepção da análise como parte integrante do processo social analisado, como sua consciência crítica passível. Tal postura permite a consideração da inexistência desta relação causal e superficial havida entre os instrumentos e dados analíticos, que pode ser admitida em se tratando do poder técnico sobre processos objetivos e objetivados. É a única forma pela qual as ciências sociais podem denunciar a ilusão de amplas consequências sociais de que nas mais diversas áreas da sociedade cabem um nível de controle do científico idêntico ao mundo da natureza, isto é, um controle obtido com idênticos meios ao mundo natural, e, por esta via de poder técnico cristalizada pela ciência, considerado não só possível como desejável  (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 289).

4. A reação de Hans Albert.

            Hans Albert inicia seu ensaio "El Mito de la Razón Total” situando a problemática da relação teoria/práxis como vinculada a toda uma reflexão filosófica acerca da possibilidade da neutralidade axiológica e, por outro lado, provocando um debate acirrado sobre o significado de experimentação para as ciências sociais. Tais questões vão ser alvo de análise em sua crítica às pretensões dialéticas de uma autonomia no plano metodológico, dirigida especialmente a Habermas.
         Alguns questionamentos são básicos ao desenvolvimento argumentativo do ensaio. Dentre eles, a concepção de que a ciência de estilo positivista estaria predestinada ao fracasso; a consistência e a utilidade da dialética para a solução dos problemas levantados e à existência ou não de outras possibilidades de solução dos ditos problemas. Albert apresenta a lógica dialética e suas pretensões "megalomaníacas" como um mito, pois "lo que a Habermas le importa no és sino recuperar la reflexión racional, mediante recurso a la herencia hegeliana preservando en el marxismo, el ambito perdido de la razón dialéctica, referida a la praxis" (VVAA, 1980, p. 184). A dialética como o mito da razão total é precisamente a tese central que Hans Albert defende.
         Discorrendo sobre o problema da construção de teorias, situa a crítica de Habermas acerca da teoria analítica da ciência a partir da distinção feita por este entre o conceito funcionalista de sistema e o conceito dialético de totalidade. Albert investe-se contra a categoria de totalidade exigindo uma explicitação de sua racionalidade lógica, não aceitando o argumento que o mesmo ultrapassa os limites do formalismo dada a natureza de seu significado. Ele, dada à falta de clareza e a uma demasiada ambiguidade do conceito de totalidade, faz a crítica à tão pretendida adequação do método dialético à realidade como sendo uma mera pretensão, não menos problemática com relação à abordagem proposta pela teoria analítica. Igualmente, faz a defesa do método empírico-analítico como representando um avanço da ciência e questiona a validade, a consistência e a peculiaridade da dialética enquanto método.

Las proprias ciencias de la naturaleza han ido cristalizando en vírtud de un processo de diferenciacion cuyas raíces se hundem en el conocimiento empírico de la vida cotidiana, si bien no sin la ayuda de unos métodos capazes de problematizarlo y someterlo a crítica y, además, bajo la relativa influencia de ideas que no dejabam de contradecir radicalmente dicho "conocimiento" y que, sin embargo, venian a acreditarse frente al "sano sentido común”. Por quê habria de ocurrir otra cosa con las ciências sociales? Por que no hiba a resultar en elias necessario el recurso a ideas contradictorias respecto del conocimiento cotidiano? O és que Habermas quiere negarlo? Es su propósito elevar el sano sentido común o dicho de manera más distinguida: "la hermenéutica natural del mundo social de la vida"- a la categoria de sacrossanto? Y de no ser así, en que cifrar la peculiaridad de su método? Em que medida alcanzá "la cosa" en él “por su proprio peso" mayor "vigência" que en los restantes métodos usuales de las ciencias positivas? (VVAA, 1980, p. 191).
                                                                              
            Os argumentos que Albert desenvolve a seguir são derivados destes questionamentos, que longe de se constituírem em meras questões são os postulados básicos do corpus argumentativo do seu ensaio. A crítica à relação teoria/experiência e teoria/história tal como proposta por Habermas faz-se pela analogia dos argumentos até aqui desenvolvidos. Assim, questiona a chamada “experiência pré-científica acumulada” como suporte de uma pseudo superioridade natural da dialética e, ao exigir uma descrição analítica, lógica, do desenvolvimento histórico da sociedade, alcunha a dialética de “teológica”.
         A relação teoria/práxis traz em si o problema da naturalidade de juízos de valor na ciência. Albert faz a crítica de como Habermas problematiza a questão, pois, não conseguindo superá-la, socorre-se em uma fetichização do conceito de totalidade e na busca de uma essência subjacente ao processo histórico.

Su objetivo esencial no és aquí otro que superar con vistas a una orientacíón normativa, esa reducción - por él criticada - de la ciência social de estilo positivista, a mera resolución de problemas técnicos, con la ayuda, por suposto, de un análisis histórico global cuyas intenciones prácticas “equeden libres de toda arbitrariedad y puedan ser legitimadas dialécticamente a partir del contexto objetivo”. En otras palabras: busca una justificación objetiva de la acción práctica a partir del sentido de la historia, una justificación que, como és natunal, no puede ser procurada por una sociologia de carácter cíentifico-posítivo. De todos modos, en lo que a este punto respecta, no puede ignorar el hecho de que también Popper reserva un sitio específico en su concepción a las interpretaciones históricas. Solo este secpone energicamente a cuantas teorías histórico-filosóficas se proponen desvelar, de tal o qual modo misterioso, un oculto sentido objetivo de la historia susceptible de servir tanto de oríentación prática como de justificación. Él, por el contrario, sustenta la idea de tales proyecciones se basan, por regia general, en el auto engano, y subraya que somos más bíen nosotros quienes hemos de decidimos a darle a la propria historia el sentido que nos creamos capaces de defender (VVAA, 1980, p. 199).

            Esta última proposição motiva Hans Albert a concluir seu ensaio imputando ao pensamento dialético um sentido de mistificação próprio à sociedades autoritárias, dado ao seu caráter "autoritário" e “dogmático":

A mi modo de ver, entre el hecho de que a menudo los intentos de interpretación dialéctica de la realidad no son a diferencia del positivismo, criticado por Habermas - desnotados, ni mucho menos, en las sociedades totalitarias ye la especificídad del pensamiento dialéctico, existe una íntima relación. Uno de los rendimieritos essenciales de estas formas de pensamento debe cifrarse, precisamente, en su capacidad para conferir a cualesquiera decisiones la máscara de comocimientos, legitimando-las asi, y legitimando-las de un modo tal que quedan fuera dil âmbito de toda discusión posible (VVAA, 1980, p. 210).

5. A resposta de Adorno.

            Em “Introdução à controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã", Adorno retoma muitos dos argumentos já desenvolvidos a fim de situar o foco da polêmica. Assim, discorre sobre o caráter coercitivo que a lógica representa no método empírico-analítico, e a tese positivista da autonomia absoluta da ciência:

Haveria que questionar se é válida uma disjunção convincente entre o conhecimento e o processo de vida real; se, ao contrário, o conhecimento não é mediatizado em relação a este, e mesmo se sua própria autonomia, mediante o que se tornou independente e se objetivou produtivamente frente a sua gênese, não é por sua vez derivada de sua função social (...) (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 218).

            Esta proposição é básica para Adorno, pois vincula a problemática da objetividade em ciências sociais como transcendente aos limites puramente metodológicos, mas referentes à própria abordagem do ser social. O positivismo, afirma Adorno,

(...) parte de opiniões, de modos de comportamento, da auto compreensão dos sujeitos singulares e da sociedade, em vez de partir desta. Numa tal concepção, a sociedade é, em ampla medida, a consciência ou inconsciência média a ser obtida estaticamente de sujeitos socializados e que agem socialmente, e não o meio em que estes se movimentam. A objetividade da estrutura, para os positivistas uma relíquia mitológica, é, segundo a teoria dialética, o a priori da razão subjetiva cognoscente. Caso se tornasse consciente disso, ela teria que determinar a estrutura quanto a suas próprias leis, e não por si mesma, conforme regras de comportamento de ordem conceitual. (...) Não importa até que ponto a concepção dialética da sociedade recuperou sua pretensão de objetividade, e se esta lhe é mesmo possível - o fato é que ela a considera com mais gravidade do que seus opositores, que adquirem a segurança aparente das suas descobertas objetivamente válidas, na medida em que renunciam desde o início à vigorosa ideia de objetividade, tal como esta fora considerada com relação ao conceito do em-si. Os positivistas emitem juízos prévios sobre o debate, na medida em que deixam transparecer que representam um tipo de pensamento novo que progrediu (...). Esta visão de progresso deixa de lado o preço, que o está sabotando. (...) Sua pretensão à modernidade não pode ser outra senão a de um iluminismo avançado. (...) Eis o foco da controvérsia (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 220).

            A seguir Adorno investe-se contra as críticas de Hans Albert com relação ao conceito de totalidade e sua argumentação é o cerne da crítica ao positivismo:

A diferença entre a visão dialética da totalidade, e a positivista, se aguça justamente porque o conceito dialético de totalidade pretende ser objetivo, isto é, ser aplicável a qualquer constatação social singular, enquanto as teorias de sistemas positivistas tencionam somente, pela escolha de categorias as mais gerais possíveis, reunir constatações sem contradição em um contínuo lógico, sem reconhecer os conceitos estruturais superiores como condição dos estados de coisas por eles subsumidos. Ao denegrir este conceito de totalidade como retrocesso mitológico e pré-científico, o positivismo, em infatigável luta contra a mitologia, mitologiza a ciência. Seu caráter instrumental, quer dizer, sua orientação em direção ao primado de métodos disponíveis, em vez de à coisa e seu interesse, inibe considerações que afetam tanto o procedimento científico como o seu objeto. O cerne da crítica ao positivismo consiste em que este se fecha à experiência da totalidade cegamente dominante, tanto quanto à estimulante esperança de que finalmente haverá uma mudança, satisfazendo-se com os destroços desprovidos de sentido que restaram após a liquidação do idealismo, sem interpretar e descobrir a verdade, por sua vez, da liquidação e do liquidado. Em lugar disso, encontra díspar o dado interpretado subjetivamente, e, de modo complementar, as formas puras do pensamento e do sujeito. (...) A dialética contém também o oposto da hybris idealista. Afasta a aparência de qualquer possível dignidade naturalmente transcendental do sujeito singular, compreendendo a este e às suas formas de pensamento como algo social em si: nesta medida, ela é mais “realista” do que o cientificismo com todos os seus critérios de sentidos (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 225).

            Esta tese central vai ser desenvolvida durante todo o transcorrer de seu ensaio, utilizando-se de uma crítica minuciosa aos postulados de Popper e Hans Albert.
         Adorno conclui afirmando de que dificilmente a controvérsia

(...) será decidível no âmbito da teoria da ciência. Nem sequer a relação imediata com a prática é decisiva; muito antes, que valor posicional se atribui à ciência na vida do espírito, e por fim na realidade. Estas não constituem divergências de visão do mundo. Têm seu lugar nas questões da lógica e da teoria do conhecimento, concernentes à concepção de contradição e não contradição, essência e fenômeno, observação e interpretação. A dialética se comporta de modo intransigente durante a disputa, porque acredita continuar pensando ali onde seus opositores se detêm, frente a não questionada autoridade do empreendimento científico (ADORNO & HABERMAS, 1980, p. 262).

Algumas considerações.

            Nossa posição é, discordando parcialmente da conclusão final de Adorno, que a controvérsia exposta tem realmente, como lugar privilegiado, a teoria do conhecimento e as questões da lógica, mas, estas, constituem precisamente o campo da epistemologia, a área da filosofia que faz a ponte com a ciência, forma de conhecimento este que, por definição, diferencia-se do filosófico pela necessidade da pertinência empírica dos seus conceitos que, articulados, constituem as teorias sobre o real, dado o seu caráter instrumental.
         Entendemos, como Karel Kosik (1976), que o conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção de realidade, explícita ou implícita, que os precede. Partindo da premissa de Karl Marx de que toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisas se confundissem, há a necessidade de, como sociólogos, nos distanciarmos controladamente de nossas pré-noções, ideologias e juízos de valor para estabelecermos uma relação de estranhamento como o mundo do senso comum, da pseudoconcreticidade, e elevarmos aspectos da realidade compartilhada em significados à condição de objetos de investigação científica e interrogá-los.
         A dialética não se opõe à logica formal, ao contrário, faz uso de suas leis no nível da formalização da linguagem, pois, caso contrário, o pensamento ficaria comprometido, inconsistente, incoerente, contraditório. Por isso concordamos com Adorno quando este afirma que a dialética continua quando os limites da lógica formal para a explicação do real se manifestam, pois o positivismo, desde Comte, existe para afirmar o mundo como ele é, mantê-lo, conservá-lo, e não transformá-lo, não tem como explicar a mudança, lhe escapa a contradição, o movimento, princípios básicos do método dialético.
         Contudo, a realidade social é, ao mesmo tempo, manutenção e mudança, sincronia e diacronia, portanto categorias analíticas de matrizes positivistas / funcionalistas /sistêmicas / estruturalistas como crítico negativas / marxistas / existencialistas / fenomenológicas, dentre tantas, são igualmente legítimas, pois vão procurar abarcar dimensões distintas da realidade e do ser social, tendo o ambiente da ciência, da filosofia e da práxis objetiva dos sujeitos históricos como palcos de embates e contendas no impossível consenso em uma sociedade de desiguais e diferentes, mas que, em nosso viés, não podem prescindir, na busca do conhecer, da tensão dialética entre totalidade e essência, pois entendemos a dialética como sendo o próprio movimento do pensamento e que se expressa em termos lógicos formais.
        
Referências.

ADORNO, Theodor & HABERMAS, Jurgen. Coleção Os Grandes Cientistas Sociais.  Vol.15, série Sociológica. São Paulo, Ática, 1980.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

POPPER, Karl. Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1978.

VVAAA. La Disputa del Positivismo en el Filosofia Alemã. México, Editorial Grijalbo, 1980.





[1] Professor Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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