Marcos Augusto de Castro Peres1
Doutor em Educação pela USP. Mestre em Sociologia pela UNICAMP.
Marcos Augusto de Castro Peres1
Ady
Canário de Souza2
RESUMO: Este texto analisa a experiência
pioneira do Programa de Extensão Conexões de Saberes no âmbito da Universidade
Federal Rural do Semiárido (UFERSA), campus de Mossoró/RN, ao longo do ano de
2010. Como fonte, foram utilizados os questionários preenchidos pelos
estudantes no processo de seleção para a bolsa do Programa. Os resultados
demonstram que, apesar dos problemas inerentes às políticas de ação afirmativa,
o Programa Conexões de Saberes tem sido importante para promover a inserção de
estudantes de origem popular nas universidades públicas. Itens como raça, cor,
gênero, renda familiar e região de origem (rural/urbana) ainda são
determinantes no acesso e na permanência dos estudantes no ensino superior
brasileiro, especialmente nas universidades públicas. Em paralelo, as
peculiaridades do semiárido nordestino (área tradicionalmente marcada pela
miséria social), atuam como elementos agravantes da exclusão, constituindo mais
um desafio a ser enfrentado pelas políticas afirmativas. Palavras-chave: Ensino
superior; extensão universitária; políticas afirmativas; exclusão educacional;
exclusão social; semiárido.
THE UNIVERSITY EXTENSION PROGRAM “CONEXÕES DE SABERES”
HOW POLICY AFFIRMATIVE IN THE CONTEXT OF NORTHEASTERN SEMIARID: The case of
UFERSA, Mossoró/RN.
ABSTRACT This paper
analyzes the pioneering experience of the University Extension Program
“Conexões de Saberes” within the Universidade Federal Rural do Semiárido
(UFERSA), in Mossoró/RN, along the year 2010. As a source of data, we used
questionnaires completed by students in the selection process for the
scholarship program. The results demonstrate that, despite the problems of the
affirmative action policies, the Program “Conexões de Saberes” has been
important to promote the inclusion of low-income students in public
universities. Items such as race, color, gender, household income and source
region (rural/urban) are still determining the access and the stay of students
in higher education in Brazil, especially in public universities. Moreover, the
peculiarities of the semiarid Northeast (a region traditionally characterized
by social deprivation), act as aggravating factors of exclusion and is another
challenge to be faced by the affirmative policies. Keywords: Hider education,
university extension, affirmative policies, educational exclusion, social
exclusion, semiarid.
O Programa Conexões de
Saberes: breve histórico e definição
O Ministério da
Educação, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade (SECAD), em parceria com o Observatório de Favelas, implantou no
fim de 2004 o Programa Conexões de Saberes, inicialmente em cinco universidades
públicas brasileiras (UFF, UFRJ, UFMG, UFPE, UFPA). A partir de junho de 2005 o
Programa foi estendido para outras nove universidades (UFES, UnB, UFMS, UFPR,
UFRGS, UFPB, UFC, UFBA, UFAM) e em 2006 ampliado para mais 18 universidades
(UFAC; UFAL; UFG; UFMA; UFMT; UFPI; UFRN; UFRPE; UFRR; UFRRJ; UFS UFSC; UFSCar;
UFT; UNIFAP; UNIR, UNIRIO, UNIVASF). O Programa Conexões de Saberes está
presente hoje em mais de 30 universidades públicas em todo o país, tendo a
Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) aderido a ele no final do ano
de 2010. O objetivo maior do Programa Conexões de Saberes é ampliar a relação
entre a universidade e as comunidades populares, promovendo o encontro e a
troca de conhecimentos e experiências entre estes duas esferas socioculturais.
Neste programa, busca-se a permanência e a participação protagonista do
estudante de origem popular na vida universitária, na produção de conhecimento
sobre sua realidade de estudo e de moradia, além de criar condições para a
transformação institucional da universidade. Em síntese, o Programa Conexões de
Saberes funciona da seguinte forma: cada instituição participante do Programa
seleciona um mínimo de 25 estudantes para atuarem como bolsistas de extensão e
desenvolverem as atividades relativas ao Programa, que abrangem desde a
participação em cursos de formação até a prática da docência em cursos
preparatórios para o vestibular do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM),
ministrados em escolas públicas estaduais de ensino médio, na cidade onde fica
o campus da universidade executora do programa.
O semiárido como área
de exclusão social e educacional No caso da UFERSA, campus central, a escola
escolhida como representante das comunidades populares do entorno foi a Escola
Estadual Aída Ramalho, em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Merece destaque o
fato de que a UFERSA se tornou universidade recentemente, mais precisamente em
2005, como parte do programa de reestruturação universitária (REUNI) promovido
pelo governo federal. Além disso, a UFERSA é uma instituição federal de ensino
superior (IFES) localizada no interior do estado do Rio Grande do Norte, em uma
região bastante carente: o semiárido.3 E é por isso que ela é classificada como
uma universidade federal rural, abrangendo, além de Mossoró, também as cidades
de Angicos e Caraúbas. Essa experiência do Programa Conexões de Saberes da qual
participamos e agora analisamos significa a primeira ação de política
afirmativa na história desta instituição, que, até o ano de 2004, era conhecida
como Escola Superior de Agronomia de Mossoró (ESAM). Criada no contexto da
ditadura militar em 1967, a ESAM atenderia às demandas por mão-de-obra
qualificada de empresas da região, especialmente as ligadas à produção agropecuária
em expansão. A Escola Aída Ramalho está localizada no mesmo bairro do campus
central da UFERSA, em Mossoró, chamado de Costa e Silva. É uma escola estadual
tradicional na cidade, com alunos provenientes de classes populares. Percebe-se
que o principal objetivo da maioria dos alunos da Aída é o de se tornar aluno
da UFERSA. Por isso, o curso pré- universitário do Programa Conexões de Saberes
da UFERSA teve muito boa aceitação.
Entre os alunos selecionados
desta escola. Além disso, os próprios critérios de seleção dos alunos
participantes do pré-universitário utilizados pelo programa procuram priorizar
realmente os mais necessitados, pois consideram fatores como renda familiar,
escolaridade dos pais, cor ou raça, origem rural ou urbana, trajetória
educacional realizada em escola pública, dentre outros. É importante destacar
que estes mesmos critérios também são utilizados no processo de seleção dos
alunos bolsistas para integrar o Programa Conexões de Saberes dentro das
universidades.
Essa disparidade pode
ser observada na Tabela 2, que compara as taxas de analfabetismo entre os
municípios de Natal, Mossoró e Angicos. Em Natal – que é a capital do estado e
dispõe, portanto, de uma melhor infraestrutura de serviços educacionais –
podemos ver uma proporção menor de pessoas não alfabetizadas, em todos os
grupos de idade, quando comparados a Mossoró e Angicos. No entanto, quando
comparamos Mossoró a Angicos, este último apresenta taxas mais elevadas de
analfabetismo, exatamente pelo fato de ser menos urbanizado do que Mossoró.
Dessa forma, nota-se que quanto mais “sertaneja” é a localidade em questão,
mais precária é a estrutura de acesso aos direitos sociais, como educação,
saúde, etc. A idéia de cidadania, cuja origem etimológica remonta à Grécia
Antiga, compreende a cidade como espaço de participação política e de acesso
aos direitos. Desde o surgimento da civitas, o meio urbano se diferencia do
rural, exatamente por concentrar o desenvolvimento. É, em síntese, o lócus da
civilização. O campo, ao contrário, representa o atraso, o arcaico, uma
realidade social a ser superada inevitavelmente pela expansão do modo de
produção urbano-industrial da sociedade capitalista. Mesmo no marxismo, o
campesinato é visto como uma categoria deslocada dentro do capitalismo, por não
deter a força de resistência e mobilização que é peculiar ao operariado
industrial. As relações de trabalho no campo não acompanharam a dinâmica do
modo de produção capitalista, resultante do processo de industrialização
(FABRINI, 2005). Assim, é relativamente fácil entender porque os direitos
políticos, sociais e individuais são vivenciados precariamente no meio rural.
Direito, Estado e civilização sempre caminharam juntos, tal como cidade e
cidadania. O campo foi historicamente excluído do conjunto de direitos
conquistados pela sociedade capitalista. No Brasil, o meio urbano, a cidade, e
principalmente as capitais dos estados, continuam sendo espaços onde a educação,
a saúde e os demais direitos são oferecidos com efetividade, possuindo
abrangência e qualidade muito superior do que nos interiores. O sertão é
conhecido, portanto, como o “lugar da ausência” – nele falta tudo: falta
desenvolvimento, falta água, falta humanização, faltam direitos, etc. A genial
(e imortal) obra literária de Graciliano Ramos (2008) já mostrava que a vida do
sertanejo, especialmente nas regiões semiáridas, é uma “vida seca”, ou seja, é
uma “vida sem vida”, sem dignidade, sem esperança. É uma vida de seres humanos
que não se sentem humanizados (lembrando que, no romance, a cachorra Baleia é
“mais humana” do que Fabiano e sua família), em virtude da degradante exclusão
social. A civilidade, necessária à convivência social nas sociedades desenvolvidas,
é, não raro, algo distante para o sertanejo. É praticamente inatingível. Os
muitos “Fabianos” que aí vivem não conseguem se comunicar e nem compreender o
mundo das cidades. Eles apenas o temem, tal como ao “soldado amarelo”. Mas quem
são os sertanejos no Brasil? Qual o perfil das populações humanas que vivem no
campo? Para Roseli Caldart (2008), são considerados povos do campo os
trabalhadores rurais, os pequenos agricultores, os bóias-frias, os meeiros, os
posseiros, os indígenas, os quilombolas, os pescadores, os caiçaras, os
extrativistas, os boiadeiros, os peões, dentre outros. Nessa população,
predominam pessoas da cor parda e negra e com baixa renda familiar. Na verdade,
as regiões Nordeste e Norte, com exceção das capitais dos estados, podem ser
consideradas como um “grande sertão”, pelo tipo de colonização aí vivenciada,
pelo clima desfavorável e pelo perfil étnico-racial da população local. Explica
Albuquerque Jr. (1999), em A invenção do Nordeste e outras artes, que: “O
Nordeste (...) estava condenado [à decadência] pelo caráter mestiço de sua raça
e também pela tropicalidade de seu clima” (p. 58). Assim, o clima seco e a
miscigenação racial do Nordeste seriam vistos, desde a colonização, como
entraves para o desenvolvimento do país. De certa forma, a presença do negro e
do índio na composição étnico-racial do nordestino contrastaria com a suposta
“superioridade” do branco europeu que colonizou as regiões Sudeste e Sul. O
atraso do Nordeste era reconhecido em contraponto com o desenvolvimento do
Sudeste-Sul, especialmente de São Paulo. O próprio Nordeste, na verdade, é
“inventado” a partir desta oposição Norte/Sul, que representa simbolicamente o
contraste entre um Brasil miscigenado, mestiço, e um Brasil branco, europeu,
entre miséria e opulência, entre atraso e desenvolvimento, entre sertão e
cidade (ALBUQUERQUE JR., 1999).
A
exclusão educacional e as dicotomias rural/urbano, campo/cidade e
sertão/capital.
Não é novidade que o
nosso sistema educacional está focado prioritariamente na vida nas cidades.
Como a atual educação escolar foi estruturada com a emergência da sociedade
urbano-industrial capitalista, não é de se estranhar que o meio rural ficasse
relegado ao esquecimento, na condição de mero “apêndice” da vida urbana. O
resultado disso é a construção de uma educação centrada na vida da cidade e
distante da vida no campo. E esse distanciamento se revela tanto nos currículos
e conteúdos adotados (geralmente contextualizados à vida urbana e desconectados
da dinâmica da vida rural), quanto pela precariedade das escolas disponíveis no
campo. Acredito não ser possível tratar de assuntos como política afirmativa e
inclusão educacional sem trazer à tona um grande problema relativo à educação
brasileira: o déficit educacional e o analfabetismo, que atingem, ainda, uma
parcela significativa da população. O Censo 2010 mostrou que há 13,9 milhões de
analfabetos com 15 anos ou mais no Brasil.
Dentre as diversas regiões do país, a
região Nordeste é a pior de todas, apresentando o índice de 19,1% de
analfabetos. No Sudeste a proporção de analfabetos é de 5,5%, no Sul de 5,1%,
no Centro-Oeste 7,2% e no Norte 11,2%. Não sem motivo, é no meio rural que
encontramos os mais baixos índices de escolaridade de toda a sociedade
brasileira. Os dados do INEP, sistematizados no trabalho Panorama da Educação
do Campo (2007), mostram que a escolaridade média da população de 15 anos ou
mais que vive no meio rural brasileiro, que é de 3,4 anos, corresponde à quase
metade da estimada para a população urbana, que é de 7,0 anos. Se os índices de
analfabetismo no Brasil são bastante elevados, no meio rural esses indicadores
são ainda mais preocupantes. Segundo o IBGE (Censo 2000), 29,8% da população
adulta – de 15 anos ou mais –, que vive no meio rural é analfabeta, enquanto no
meio urbano essa taxa é de 10,3%. É importante ressaltar que a taxa de
analfabetismo aqui considerada não inclui os analfabetos funcionais, ou seja,
aquela população com menos de quatro séries do ensino fundamental. Outros dados
revelam ainda que no meio rural brasileiro, 6% das crianças, de 7 a 14 anos,
encontram-se fora dos bancos escolares; que apesar de 65,3% dos jovens, de 15 a
18 anos, estarem matriculados, 85% deles apresentam defasagem de idadesérie, o
que indica que eles ainda permanecem no ensino fundamental; e que somente 2%
dos jovens que moram no campo frequentam o ensino médio. Esses são alguns dos
indicadores que demonstram a histórica negação do direito à educação no Brasil,
principalmente para a população rural. O que engrossa as estatísticas de
analfabetismo é, portanto, o problema histórico do acesso à educação
(fundamental e média) verificado no meio rural. Contudo, é bom lembrar que a
exclusão educacional não é um problema restrito à população adulta e mais
velha, mas um problema crônico do próprio sistema, pois novos analfabetos são
gerados a cada dia no Brasil, quando contingentes de crianças e jovens são
excluídos do acesso e da permanência na educação fundamental e média, por
diversos motivos (como, por exemplo, ausência de escolas, falta de transporte
coletivo, necessidade de trabalhar, fome, falta de merenda escolar e muitos
outros determinantes da evasão escolar).
O déficit educacional entre
adultos, observado particularmente nos países subdesenvolvidos, decorre,
sobretudo, da ausência ou insuficiência de oferta educacional, principalmente
nas regiões menos desenvolvidas do país, como as áreas rurais e sertanejas. O
trabalho rural, executado pelo “camponês” ou “homem do campo”, está associado
historicamente à exclusão da educação formal. O trabalho industrial, ao
contrário, conecta-se aos chamados “conhecimentos superiores”, à ciência e à
técnica, inerentes à vida urbana.
Assim, os “cidadãos”, na Grécia
Antiga, eram aqueles que tinham propriedade, e que, por isso, podiam ter acesso
à cidade da Pólis, tida como centro de decisões e deliberações políticas e de
reflexão filosófica. A própria palavra: “civilizado” é derivada de civitas, ou
seja, refere-se àquele que vive nas cidades e tem acesso à participação
política e ao pensamento filosófico e racional, que figuram como processos e
relações produzidos neste espaço. A industrialização, ocorrida a partir do
século XVIII na Europa, potencializaria ainda mais a oposição entre rural e
urbano, no que se refere ao acesso à educação formal, pois se tornava
necessário educar para o trabalhado industrial característico das cidades e do
“mundo
civilizado”. O campo, por sua vez, ficaria
excluído do projeto capitalista de educação na sociedade industrial que
emergia. Dessa forma, é interessante notar que o “homem educado” da sociedade
moderna seria conhecido como sinônimo de “homem civilizado”, “polido”, ao passo
que designações depreciativas como as de “atrasado”, “ignorante”, “matuto”,
“xucro”, “simplório”, “peão”, “caipira”, etc., seriam associadas ao “homem do
campo”, ao “sertanejo”.
É necessário lembrar que, no
sertão semiárido brasileiro, a precariedade e a exclusão normalmente vivida no
campo são potencializadas em virtude das maiores dificuldades ambientais,
sociais e infraestruturais aí existentes. Etimologicamente, sabe-se que a
palavra “sertão” teve sua origem histórica durante a colonização do Brasil
pelos portugueses. Ao saírem do litoral e se interiorizarem, estes perceberam
uma grande diferença climática nessa região semiárida. Assim, chamaram-na de
“desertão”, em virtude do seu clima quente e seco. Logo, essa denominação foi
sendo entendida como “de sertão”, permanecendo, com o passar do tempo, apenas a
palavra “sertão”. Por sua vez, a região sertaneja semiárida estende-se pelos
estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí, abrangendo
também o Ceará, Sergipe e Alagoas, além da região Norte do estado de Minas
Gerais, o Vale do Jequitinhonha. “Sertão” seria utilizado também em antagonismo
a “capital”, pela sua referência simbólica ao interior dos estados. Uma
informação interessante é a de que Fortaleza, no Ceará, é a única capital
brasileira localizada dentro da área de abrangência do sertão semiárido.4
Portanto, o meio rural em geral, e
o sertão semiárido em particular, podem ser definidos como tradicionais “áreas
de exclusão”, onde o sistema capitalista mantém formas arcaicas e extremadas de
exploração da classe trabalhadora, com o desrespeito, até mesmo, aos direitos
sociais já conquistados na Constituição de 1988 e mesmo no Estado Novo (dentre
eles, o direito à educação, à saúde e à CLT, por exemplo), configurando uma
“questão social agrária” bastante problemática.
Nota-se, portanto, que a relação existente
entre educação e meio rural é basicamente de funcionalidade: só se educa
àqueles que supostamente terão alguma utilidade para a sociedade capitalista
industrializada. Nesta lógica, o analfabeto adulto, o trabalhador rural e os
demais povos do campo (cf. CALDART, 2008) não precisam ser educados. Conforme explica
Vieira Pinto (2005):
A sociedade empreende a
alfabetização de adultos fundamentalmente para poder integrá-los num nível
superior de produção. Já temos dito que não se trata de dever moral de obras de
caridade, e sim de uma imperiosa exigência social. A sociedade precisa educar
seus adultos, desde que alcance um nível de desenvolvimento que torne
incompatível a existência de segmentos marginalizados em seu seio, que podem
aumentar a força de trabalho geral se forem convertidos em trabalhadores letrados
num nível alto de conhecimento. (...) Uma lei do desenvolvimento educacional é
esta: a sociedade nunca desperdiça seus recursos educacionais (econômicos e
pessoais), apenas proporciona educação nos estritos limites de suas
necessidades objetivas. Não educa ninguém que não precise educar (p. 102-103).
Talvez isso justifique, mesmo que
parcialmente, a exclusão educacional que acomete especialmente os residentes
nas regiões rurais. Por isso, acredito não ser possível desvincular EJA de
alfabetização e, mesmo que indiretamente, de educação no campo. Enquanto não
houver uma estrutura que garanta (realmente) acesso à educação pública nas
regiões menos desenvolvidas do país, novos analfabetos estarão sendo gerados.
Sabe-se, porém, que as iniciativas de “alfabetização
em massa” que foram instituídas no país, principalmente na década de 1970, das
quais o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) foi o mais conhecido,
estiveram carregadas de uma forte orientação política-ideológica, que se
centrava na legitimação da ordem social instituída, regida pela “ditadura do
grande capital”, utilizando uma expressão do sociólogo Octávio Ianni (1981).
O estudo desenvolvido por Paiva
(2003) mostra que, nestas ações de alfabetização empreendidas pelo MOBRAL,
difundia-se entre os alunos uma ideologia de responsabilização pessoal pelo
sucesso ou fracasso escolar obtido. Com isso, a própria condição de
analfabetismo passou a ser estigmatizada e vista de forma depreciativa pela
sociedade em geral, gerando nos adultos que não sabiam ler e escrever um
sentimento de culpa e vergonha. Além disso, e de forma coerente aos propósitos
de controle do governo militar, instituiu-se, via MOBRAL, um processo de
adestramento e disciplinamento das camadas populares, no intuito de incitar nelas
um nacionalismo alienado de “amor à pátria” e evitar a disseminação, entre
elas, das “ideias subversivas” do comunismo/socialismo, vinculadas à teoria
marxista.
Nos dias de hoje, o analfabetismo
ainda é normalmente tratado como responsabilidade pessoal dos analfabetos. O
Estado procura, ao máximo, se eximir dessa responsabilidade, atribuindo,
primeiramente, à família – portanto, à esfera privada e pessoal – o dever de
educar, conforme podemos ver na LDB (Lei 9394/96, artigo 2º). A educação de
jovens e adultos (EJA), citada na LDB como alternativa educacional destinada
“àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino
fundamental e médio na idade própria” (Art. 37º), ainda é tratada com
menosprezo pelas políticas educacionais. Não podemos esquecer que, como a
população rural é a que mais necessita da oferta de EJA, a precariedade desta
modalidade de educação está diretamente vinculada à ausência e/ou à má
qualidade das escolas nas áreas rurais.
Para Caldart (2008), embora o
problema da educação brasileira não seja apenas no campo, é aí que a situação
se torna mais grave, pois além de desconsiderar a realidade escolar existente,
que é bastante diferente da que é vivida nos grandes centros urbanos, essa
forma de educação sempre foi tratada pelo poder público com políticas
compensatórias (de caráter paliativo), e sem um compromisso efetivo de
adaptação da educação às peculiaridades do meio rural. Podemos pensar, ainda,
que nas regiões rurais é onde há uma maior necessidade de políticas de educação
de adultos, especialmente as de alfabetização. Contudo, elas não ocorrem.
Tradicionalmente, a escola foi
concebida como uma invenção da sociedade capitalista industrial em geral, e da
cidade em particular, destinada a preparar as elites para governar e a camada
popular para ser mão de obra (portanto governada). Por isso, o campo não se
constituiu historicamente como espaço prioritário para ações
institucionalizadas do Estado, através de diferentes políticas públicas e
sociais, e nem de políticas econômicas de desenvolvimento local e regional.
Nessa perspectiva, o campo é pensado numa relação “não hegemônica” de educação,
ou seja, que se situa à margem da perspectiva urbano industrial da sociedade
capitalista (CALDART, 2008).
O meio rural é então representado
como um espaço caracterizado por uma realidade geográfica e uma formação
histórica e cultural singulares aos sujeitos que o compõe, ou seja, camponeses,
agricultores e extrativistas (assentados, sem terra, ribeirinhos),
trabalhadores do campo (assalariados, meeiros, etc.), pescadores, quilombolas,
caiçaras, indígenas e povos da floresta. Assim, o desprezo pela vida rural e
suas peculiaridades, verificado nas leis e políticas educacionais, é análogo à
exclusão histórica vivida pelos povos do campo no Brasil.
A
UFERSA e as políticas afirmativas: uma mão estendida no abismo do semiárido.
As políticas afirmativas na educação superior
devem ser analisadas de forma mais cuidadosa em contextos como o da região
Nordeste, especialmente o semiárido, como tradicional área de exclusão, e na
qual há predominância do rural sobre o urbano. Aí se concentram populações
excluídas, tanto pela sua condição socioeconômica, quanto pelo seu perfil
étnico-racial. As políticas afirmativas, como as cotas raciais e os programas
de acesso e permanência para alunos de escola pública, são tidas, por muitos,
como oportunidades raras de ascensão social.
O Programa Conexões de
Saberes da UFERSA é um exemplo peculiar e diferenciado de política afirmativa,
por contemplar estudantes originários do sertão semiárido, tradicional área de
exclusão. Sem sombra de dúvidas, é uma ação afirmativa extremamente necessária,
apesar de tímida e incipiente. Contudo, pelo menos algo está sendo feito na
tentativa de superar a exclusão social.
Quando se analisa o
perfil dos alunos bolsistas do Programa Conexões de Saberes da UFERSA, toma-se
consciência da sua vulnerabilidade social. A Tabela 3 mostra que, dentre os
participantes, a maioria (56%) é do sexo masculino, contra 44% do sexo
feminino. Estes dados podem revelar as maiores oportunidades de acesso dos
homens das classes populares ao ensino superior, o que pode ser explicado, em
parte, pela condição desprivilegiada vivida pelas mulheres desta classe, a quem
ainda é atribuída fortemente a responsabilidade doméstica e familiar,
especialmente num contexto patriarcal, patrimonialista e excludente como o do
sertão semiárido. Caldart (2008) mostra que a exclusão da mulher camponesa é
bem mais intensa do que a ocorrida no meio urbano, em razão das dificuldades
socio-históricas de se estender para o meio rural os direitos sociais e
constitucionais que defendem a mulher no Brasil.
Tanto a precariedade da
educação oferecida no campo, quanto a inexistência, no meio rural, de
instâncias protetoras de direitos das mulheres (como delegacias da mulher,
tribunais de justiça e ministério público, por exemplo), são determinantes da
maior exclusão e vulnerabilidade social da mulher neste contexto. Soma-se a
isso o caráter reprodutor e coercitivo da tradição machista, inerente à cultura
patriarcal, dos espaços sócio-geográficos “não industrializados”, marcados por
uma “solidariedade mecânica”, conforme definição da sociologia positivista de
Émile Durkheim (2008), dificultando sobremaneira a emancipação da mulher e a
sua inclusão educacional.
Já na Tabela 4,
percebe-se a predominância de estudantes de cor parda (52%), contra 40% de brancos
e 4% de pretos e amarelos. No Nordeste, onde predomina a miscigenação racial, a
cor parda é de fato predominante. Porém, é notório que a maioria dos estudantes
de classe popular seja de cor parda, considerando o fato de que, em todo o
território nacional, 97% dos universitários são brancos, conforme dados
levantados por um estudo de Kabengelê Munanga (2003). Desta forma, somente 2%
dos negros têm acesso ao ensino superior. Os outros 1%, são representados pelos
orientais. Estes números revelam que, dentre os mais carentes, a maioria ainda
é preta ou parda e, dentre estes, os pardos ainda estão em condições menos
desfavoráveis do que a população negra. Assim, a exclusão educacional que afeta
mais diretamente a população negra é um problema de miséria social, que envolve
políticas sociais e também de geração de emprego e renda.
A precária condição
socioeconômica dos estudantes é revelada especialmente pela sua renda familiar,
mostrada na Tabela 5. Entre os participantes do Programa, 32% possuem renda
familiar de até 1 salário mínimo, 24% de 1 a 2 salários mínimos e 44% de 2 a 4
salários mínimos. Em síntese, pode-se dizer que a maioria (56%) vive com renda
familiar menor do que 2 salários mínimos. De acordo com Kabengelê Munanga
(2003), sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza,
70% deles são negros. E sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza,
63% deles são negros. Assim, nota-se que, no Brasil, negritude e pobreza ainda
estão diretamente relacionadas, conforme resalta Florestan Fernandes (2008), em
seu trabalho sobre A integração do negro na sociedade de classes.
O vínculo
sócio-histórico entre negritude e pobreza no Brasil se reflete na exclusão
educacional que afeta mais a população negra e parda, do que a população
branca. Numa sociedade extremamente desigual como a brasileira, que possui um
dos piores níveis de concentração de renda do mundo, certamente haverá inúmeros
entraves à inserção do negro nas instituições educacionais e no mercado de
trabalho. Se no Brasil não foi oferecida ao negro liberto da condição de
escravidão, e nem aos seus descendentes, condições efetivas para que estes
pudessem se inserir à “sociedade de classes”, sem dúvida é urgente hoje a
adoção de políticas de ação afirmativa, das cotas raciais e para estudantes de
escolas públicas, visando o seu acesso e permanência nas universidades federais
e estaduais.
Contudo, é necessário não se
perder de vista que o problema maior da questão da exclusão educacional (de
negros, pardos e pobres) é a má qualidade da escola pública básica no Brasil, a
que abrange ensino fundamental e médio, ou seja, a porta de entrada para a vida
escolar. É preciso ter consciência de que as cotas para o ensino superior são
só medidas emergenciais e paliativas, e que não são capazes, por si só, de
resolver um problema que não é propriamente da universidade e sim da escola
básica pública. Além disso, as cotas não são totalmente justas e equitativas,
pois nem todas as escolas públicas de ensino fundamental e médio são iguais no
aspecto qualitativo. Não é possível se comparar, por exemplo, o nível de ensino
de uma escola pública localizada numa capital ou num grande centro urbano (como
São Paulo), com outra escola que pertence à zona rural de uma pequena cidade do
interior do Nordeste. Assim, nota-se que há exclusão e disparidade mesmo dentro
da própria política de cotas.
Ademais, a precariedade vivida
pelos estudantes-bolsistas dos programas de ações afirmativas é refletida
também pela sua dependência no que refere à moradia, que é um dos quesitos
fundamentais da política de permanência no ensino superior público, conforme é
verificado na Tabela 6. Dentre o total de bolsistas do Programa Conexões de
Saberes da UFERSA, nota-se que 28% deles dependem da Vila Acadêmica, que é uma
moradia estudantil gratuita, oferecida pela universidade, e cuja seleção de
beneficiados é realizada a partir da comprovação de renda pelos estudantes. O
fato de 36% morarem com a família, contra 12% que moram em república, com
parentes e amigos e/ou em apartamento alugado, também revela o grau de
dependência econômica destes estudantes, que não é suprido totalmente pelas
políticas de permanência, considerando que as moradias estudantis são
insuficientes para atender a todos os que precisam delas.
Ademais, o fato de 88% de os
estudantes de origem popular ser provenientes do que se convencionou chamar de
“zona urbana”, contra 12% da zona rural, conforme vemos na Tabela 7, pode ser
questionado. No Brasil, a classificação dos municípios e demais localidades
como urbano ou rural é realizada com certa imprecisão pelo IBGE, conforme
revela o estudo de Veiga (2003), intitulado Cidades imaginárias: o Brasil é
menos urbano do que se calcula. Para o autor, a classificação oficial feita
pelo IBGE é realizada com base em critérios pouco confiáveis, sem um estudo
pormenorizado da dinâmica econômica, estrutural e demográfica das localidades.
Assim, um município de 9 mil habitantes, localizada no interior do Pará, por
exemplo, com uma economia basicamente rural, é classificada erroneamente como
zona urbana.
Há de se considerar também que os
municípios que integram o semiárido nordestino, caso de Mossoró e das demais
cidades do interior do Rio Grande do Norte, estão entre os de menor índice de
desenvolvimento humano (IDH) do Brasil. Estes municípios são quase 40% (397)
dos 1.000 de menor IDH, segundo o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) de 2005. Esta realidade se deve, exatamente, à
precariedade de acesso aos direitos sociais básicos, como saúde, educação,
moradia, segurança, trabalho, etc. Números obtidos pelo Atlas do
Desenvolvimento Humano no Brasil de 2000 revelam que 81,8% dos municípios do
semiárido brasileiro, com 61,7% da população, têm baixo IDH. Nenhum município
do semiárido está na faixa mais elevada de IDH (entre 0,800 e 1,000). Diante
desse quadro de elevada concentração de renda, alguns autores, como Silva
(2007), defendem a necessidade do estabelecimento de políticas públicas
específicas, direcionadas à promoção do desenvolvimento regional nos aspectos
social e humano e tendo como fim a obtenção de maior justiça social. Essa
precariedade social vivida no semiárido deve, sem dúvida, ser levada em
consideração quando da elaboração de políticas afirmativas relacionadas ao
acesso e permanência no ensino superior público. Desta forma, os municípios do
interior do Rio Grande do Norte, com exceção de Mossoró, podem ser
classificados como áreas essencialmente rurais.
Desta forma, a referência quanto à origem
urbana ou rural, realizada pelos bolsistas, não é precisa. As características
socioeconômicas e demográficas que apresentam são típicas de indivíduos
provenientes de zona rural. Contudo, o fato de somente 12% terem declarado que
são de origem rural também merece atenção especial. Em primeiro lugar, se
alguns afirmaram ser de zona urbana, enquanto outros de zona rural, isso
significa que, independente da precisão da classificação (urbana/rural), os que
são provenientes da zona rural enfrentaram uma precariedade ainda maior, no que
se refere à estrutura do sistema educacional que freqüentaram.
Por isso, é certamente
questionável a idéia de que as políticas compensatórias, como as cotas para
estudantes de escolas públicas, por exemplo, promovem uma maior justiça social
e equidade no acesso ao ensino superior público. Na verdade, não representam
oportunidades iguais para todos. Isso porque alunos de escolas públicas
localizadas na zona rural não dispõem da mesma qualidade de ensino oferecida
pelas escolas da zona urbana. E como não há ainda “cotas para estudantes da
zona rural”, as políticas afirmativas hoje vigentes certamente são
desfavoráveis aos alunos das escolas rurais. A menor quantidade de estudantes
originários da zona rural pode ser um importante indicativo da maior exclusão
educacional vivida por eles, mesmo com a existência das políticas de cotas.
A Tabela 8 mostra que
os estudantes que cursaram escola pública ainda predominam dentre os
participantes do Programa, representando 92% do total. Os 8% que estudaram em
escolas privadas, foram beneficiados por bolsas de estudo. Isso revela que as
classes populares ainda dependem especialmente da escola pública como veículo
de ascensão social, pois não têm condições de pagar por serviços educacionais
particulares, geralmente de qualidade superior. A situação se inverte quando se
considera a realidade das universidades públicas no país, que têm a maioria de
seus alunos provenientes de escolas privadas.
O acesso à universidade
pública é, portanto, para muitos estudantes de origem popular, a única
oportunidade de ascensão social que terão ao longo da vida, uma vez que
dificilmente poderão pagar pelos cursos de graduação de faculdades privadas,
cada vez mais caros. Principalmente para estudantes negros, afro-descendentes e
pardos, que dependem massivamente das escolas básicas públicas, as políticas
afirmativas no ensino superior (apesar de não serem plenamente equitativas,
pela própria diferença qualitativa existente entre as escolas rurais e urbanas,
conforme já explicamos) representam, sem nenhuma dúvida, novas possibilidades.
E, obviamente, possibilidades é melhor tê-las do que não tê-las.
Utilizando como
referência de comparação a realidade das políticas afirmativas educacionais nos
Estados Unidos, Kabengelê Munanga (2003) explica que:
Uma coisa é
certa, os negros que ingressarão nas universidades públicas de boa qualidade
pelas cotas terão, talvez, uma oportunidade única na sua vida: receber e
acumular um conhecimento científico que os acompanhará no seu caminho da luta
pela sobrevivência. Apesar dos preconceitos que persistirão ainda por muito
tempo, eles serão capazes de se defender melhor no momento das grandes
concorrências e nos concursos públicos a exibir certo conhecimento que não
dominavam antes. Abrirão com facilidade algumas portas, graças a esse
conhecimento adquirido e ao restabelecimento de sua autoestima. A história da
luta das mulheres ilustra melhor o que seria o futuro dos negros. A
discriminação contra elas não foi totalmente desarmada, mas elas ocupam cada
vez mais espaços na sociedade não porque os homens se tornaram menos machistas
e mais tolerantes, mas porque, justamente graças ao conhecimento adquirido,
elas demonstram competências e capacidades que lhes abrem as portas antigamente
fechadas. O racismo contra negros não recuou nos Estados Unidos. Mas hoje,
graças ao conhecimento adquirido com cotas, eles tiveram uma grande mobilidade
social, jamais conhecida antes (p. 02).
De
fato, se, por um lado, a situação de exclusão social vivida pelas classes
populares não será solucionada milagrosamente pelas políticas afirmativas, por
outro, o efeito de longo prazo da integração dos estudantes de origem popular
nas universidades públicas pode produzir efeitos bastante positivos. Ela pode
reduzir a desigualdade, ao criar possibilidades, tanto aos negros e aos seus
descendentes, quanto às mulheres e aos demais estudantes de origem popular. Em
nenhum outro país do mundo podemos ver uma população negra tão bem-sucedida
como nos Estados Unidos. E isso se deve, em grande parte, às políticas de cotas
raciais adotadas nas universidades norte-americanas.
Levando
em conta, obviamente, as diferenças étnico-raciais, sociais e culturais entre
Brasil e Estados Unidos, algo semelhante se pode esperar das políticas
afirmativas e das cotas no ensino superior público brasileiro. Conforme podemos
ver na Tabela 9, a predominância de bolsistas do Programa Conexões de Saberes
no curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia (BCT), que foi criado
recentemente pelo MEC, retrata outra possibilidade de acesso ao ensino superior
decorrente de ações afirmativas. Como tem duração de três anos, o BCT, na
realidade, visa atender a uma necessidade das classes populares: a de
graduar-se em menor tempo. Aliás, essa tem sido uma tendência do governo
federal petista, investindo ultimamente na criação e ampliação de Institutos
Federais de Educação Tecnológica, com cursos de graduação na modalidade
tecnólogos, com a duração de três anos. Estes cursos visam suprir a demanda das
empresas por profissionais com conhecimento técnico, ao mesmo tempo em que cria
oportunidades para estudantes de origem popular. É, no fundo, uma estratégia de
qualificação da classe trabalhadora, com o intuito de evitar a sua revolta e
mobilização política. Conforme mostra Vieira (1987), com a promoção de
políticas sociais ineficazes, o Estado busca neutralizar estrategicamente as
lutas de classes.
Considerações
finais
A análise aqui
desenvolvida revela a importância das políticas afirmativas educacionais do
governo federal, particularmente o Programa Conexões de Saberes da UFERSA. Os
dados coletados mostram a situação socioeconômica precária dos estudantes de
origem popular, selecionados como bolsistas do Programa. A exclusão social e
também educacional de que foram vítimas ao longo da vida justificam a
necessidade das políticas afirmativas, comprometidas com o acesso e a
permanência de estudantes de origem popular nas universidades. Neste panorama,
há de se considerar também que a própria estrutura da educação básica no Brasil
é extremamente desigual. Tal desigualdade, no entanto, não se limita à
disparidade existente entre escola pública e escola privada, mas também entre
as próprias escolas públicas, ao compararmos a as escolas rurais com as
urbanas, por exemplo, no que se refere à qualidade do ensino oferecido e ao
nível de acesso e permanência.
Apesar das críticas existentes às
políticas afirmativas na educação superior brasileira – por exemplo, de que são
soluções paliativas para um problema estrutural mais complexo, que envolve a
própria qualidade da escola básica pública, de que são um tipo de “racismo às
avessas”, ou um “atestado de incapacidade” da parte dos negros,
afrodescendentes e dos estudantes oriundos de escolas públicas –, tais
políticas têm se revelado de grande importância para inúmeros estudantes de
origem popular. Muitos negros e pardos, afro-descendentes, indígenas,
quilombolas e demais indivíduos (jovens e adultos) em situação de miséria
social dependem das políticas afirmativas como única oportunidade de ascensão
social que terão ao longo da vida.
E ao levarmos em consideração regiões
caracterizadas pela miséria social e pela exclusão educacional, como é o caso
do semiárido nordestino, as políticas afirmativas de acesso e permanência no
ensino superior público se fazem necessárias. Contudo, é indispensável que
sejam criadas também estratégias de ação política para melhorar o acesso e a
permanência dos estudantes de origem popular na educação básica pública, além
de fazer com que esta modalidade de educação seja de qualidade compatível com a
oferecida nas escolas particulares, e que as disparidades entre campo e cidade
sejam minimizadas.
Um governo federal que
pretende ser (realmente) de base popular deveria contemplar a amplitude das
demandas educacionais, incluindo na pauta os excluídos da educação, como os
analfabetos e os adultos que abandonaram o ensino fundamental ou médio. E é aí
que se faz necessário investir em políticas de educação de jovens e adultos
(EJA), que é destinada a estes grupos excluídos. Evidentemente, é a educação
fundamental a modalidade mais diretamente relacionada aos sujeitos em situação
de miséria social, como trabalhadores rurais, trabalhadores urbanos braçais
(como construção civil e limpeza, por exemplo), crianças e jovens moradores da
zona rural e das periferias urbanas, favelados, órfãos, moradores de rua,
dentre outros. A estes cidadãos também precisa ser dada garantia de acesso e
permanência na educação fundamental, que é a “porta de entrada” da trajetória
educacional em nossa sociedade.
Na verdade, é preciso
combater a exclusão educacional em todas as suas dimensões, e acredito que o
analfabetismo e a evasão escolar na educação fundamental seja um problema
bastante grave, e que tem sido esquecido diante da efervescência do debate
sobre acesso e permanência no ensino superior brasileiro. Contudo, os sujeitos
excluídos da educação fundamental padecem de uma situação de vulnerabilidade
social sem dúvida mais preocupante do que os que puderam ao menos concluir o
ensino médio e já estão pensando na possibilidade de ingressarem na
universidade.
No entanto, apesar das
falhas e aspectos negativos que acompanham os programas de política afirmativa
nas universidades brasileiras, como o Programa Conexões de Saberes, não podemos
“jogar a criança junto com a água do banho”, usando aqui uma conhecida
expressão popular. Em verdade, as políticas afirmativas representam
oportunidades únicas de inclusão educacional e ascensão social para muitos
jovens oriundos das classes menos favorecidas e de contextos marcados pela
precariedade estrutural e pela exclusão social, como é o caso do sertão
semiárido do Estado do Rio Grande do Norte. Aí, qualquer forma de educação
popular e de inclusão educacional (e social), que seja séria e eficiente, sem
dúvida é bem vinda.
Referências:
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