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" O DIÁLOGO. É O ELO QUE FALTA "

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE, TURISMO E PROSTITUIÇÃO EM HAVANA.

Observação participante, turismo e prostituição em Havana.[1]

                                                           Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[2]

            O presente ensaio apresenta dados inéditos de pesquisas realizadas em Cuba em 2004 e 2005. A opção de apenas torná-los públicos agora se deve a mudança do contexto internacional causada pelo reatamento das relações diplomáticas da ilha com os EUA. As pesquisas compõem minha tese de doutoramento (GAMA, 2005) e receava por explorações político-ideológicas no contexto do aperto do embargo econômico que Cuba foi submetida no governo de George Bush, período de minhas investigações.
           
A pesquisa tem como objetivo a análise das motivações de abordagens de cubanos e cubanas a turistas que são realizadas de modo ostensivo no cotidiano havaneiro, em especial a relação turismo e prostituição.
           
Fazendo uso da fenomenologia de Husserl (1986) e da dialética de Karel Kosik (1976) enquanto metodologias de investigação de um sujeito situado na pesquisa, buscou-se a observação participante como técnica de coleta de dados, pois “O observador participante (...) observa as pessoas que está estudando para ver as situações com que se depara normalmente e como se comportam diante delas. Entabula conversações e descobre as interpretações” (BECKER, 1993, p. 47). Nosso desafio no emprego dessa técnica refere-se à credibilidade dos informantes, pois “Teria o informante razões para mentir ou esconder uma parte do que considera como sendo a verdade? (...) mesmo quando uma declaração assim examinada se mostra seriamente defeituosa como relato minucioso de um acontecimento, ainda pode oferecer evidências úteis para um outro tipo de conclusão” (BECKER, 1993, pp. 52-53).
           
A ideia de um turismo sustentável foi influenciada pelo debate em torno dos impactos negativos da atividade com relação ao meio ambiente e à cultura das sociedades hospedeiras, num momento histórico - década de 1960 - em que o turismo converte-se num fenômeno de massa. Em 1965, o relatório de Michael Dower, Fourth Wave - The Challenge of Leisure, alertava a sociedade sobre o potencial impacto do crescimento do chamado tempo livre e das atividades de lazer. O livro de Young, Tourism: Blessing or Blight, publicado em 1973, chamou a atenção para a possibilidade dos impactos negativos do turismo. Tourism: Passport to Development, publicado em 1979 por De Kadt discutia o papel do turismo enquanto fator de desenvolvimento e em 1982, Tourism: Economic, Physical, and Social Impacts, de Mathieson e Wall, detalhou os impactos mundiais do turismo. A relação entre turismo e comunidade local foi discutida pela primeira vez em detalhes por Peter Murphi em Tourism: a Community Approach, lançado em 1985. O escritor suíço Jost Krippendorf analisou o turismo e seu impacto do ponto de vista do turista em seu livro The Holiday Makers, publicado em 1987.
           
Desde o início da década de 1990 a expressão “turismo sustentável” passou a ser usada com frequência, significando “uma abordagem do turismo que reconhece a importância da comunidade local, a forma como as pessoas são tratadas e os desejos de maximizar os benefícios econômicos do turismo para essa comunidade” (SWARBROOKE, 2000, p. 13). Esse conceito foi reconhecido no Green Paper on Tourism publicado em 1995 pela União Européia.
           
Entretanto, sob o “domínio do turismo sustentável (...) as definições tendem a ser irrelevantes, enganosas, e a mudar constantemente” (BRAMWELL et alli,1996). Mas a questão principal não é essa, como afirma Pigran (1990), pois o “conceito” corre o risco de permanecer irrelevante e inepto, como política viável para o mundo real do desenvolvimento do turismo, se não houver os meios efetivos para transformar a ideia em ação.
           
Mas a dimensão ambiental não é a única preocupação do turismo sustentável, em que aspectos sociais, culturais e morais envolvidos na relação turista/comunidade são analisados. Dois aspectos tendem a caracterizar essa relação: os chamados “efeito demonstração” e “privação relativa”.
           
O efeito demonstração é um conceito amplo que gira em torno da ideia de que a presença de turistas, juntamente com a exposição da população local aos estilos de vida dos turistas, tem um impacto sobre as expectativas e estilos de vida da população local, como afirmam Mathieson e Wall (1982).
           
O conceito de privação relativa é utilizado para indicar elementos de descontentamento, insatisfação e ressentimento por parte das comunidades diante da chegada dos turistas, sendo assim considerado: “Sentimentos de privação relativos a um grupo com o qual um indivíduo se compara (...) a teoria garante que a maneira como as pessoas avaliam suas circunstâncias depende de quem lhes serve de comparação” (SEATON, 1991).
           
Ruschmann (1997) reforça a tese do efeito demonstração como um impacto social do turismo, quando a presença de um grande número de turistas estimula hábitos de consumo desconhecidos ou inacessíveis para a população receptora. Eles variam desde a importação de produtos (comidas/bebidas/vestuário) caros até a criação de novos hábitos de entretenimento, como o jogo (cassinos) ou o consumo excessivo de drogas e bebidas alcoólicas.
           
As alterações na moralidade estão presentes em grande parte dos estudos sobre os impactos do turismo nas comunidades receptoras e indica o aumento da prostituição, criminalidade e do jogo organizado. Apesar de não se poder responsabilizar o turismo por esses males, constatou-se que eles se intensificam com o desenvolvimento da atividade. Michael Hall chegou a observar que “A prostituição ligada ao turismo se tornou uma parte integrante da base econômica em várias regiões do sudeste asiático (...) Banir a prostituição pode ser contraproducente e pode até mesmo causar mais miséria àqueles que estão envolvidos com esta atividade” (HALL,1992).
           
“Jineterismo” é a acepção cubana da prostituição vinculada à expansão do turismo. Seria um exemplo empírico do chamado efeito demonstração. As prostitutas foram assim denominadas, popularmente, por se associar a prática do ato sexual comercializado com o desejo e a possibilidade de se adquirir calças jeans (FURIATI, 2001, p. 391). A motivação básica das “jineteras” seria, portanto, a de adquirir bens de consumo de alto valor simbólico. Esse significado apoiava a minha hipótese inicial de que os principais impactos do turismo em Havana se dariam no plano dos valores, que as transgressões morais percebidas nas abordagens de nativos a turistas, assim como nos pedidos de gorjetas e de “um dólar”, teria o sentido de adquirir bens “supérfluos”, que distinguissem socialmente seus atores do tecido social cubano, marcado pela escassez, mas com as necessidades básicas teoricamente garantidas pelo Estado. No entanto, ao final de minha pesquisa essa hipótese seria refutada parcialmente pela conclusão de que as abordagens aos turistas por dólares estão associadas realmente à escassez, mas à fome, à baixa ingestão de calorias no período especial que ocorreu após a queda da URSS. Não se trata, portanto, de privação relativa, mas de privação absoluta de parte da população cubana.
           
O desenvolvimento do turismo em Havana tem correspondência estreita com a história econômica e política social do país. “El cuadro anterior a 1959 en cuanto al turismo foráneo resultaba indignamente, Cuba era presentada como zona internacional de vicio y de lacras sociales, como si se tratara de la Sodoma del siglo XX” (GARRIDO, 1993, p. 57). Os jogos de azar e o amplo mercado do sexo eram os fatores que faziam a imagem de Cuba como um grande cassino e bordel dos Estados Unidos.
           
No dia 14 de maio de 2004, Havana foi manchete internacional. Mais de um milhão de cubanos, em passeata pelo Malecón até o Escritório de Interesses dos EUA, repudiaram as últimas medidas do governo norte-americano. Em 14 de junho do mesmo ano, um informe do Departamento de Estado acusou o governo cubano de participar do tráfico internacional de pessoas e de promover o turismo sexual na Ilha. Sete dias depois, numa manifestação de 200.000 pessoas reunidas na Tribuna Antiimperialista Jose Martí, Fidel Castro Ruz, Comandante em Chefe e Presidente do Conselho de Estado e Ministros de Cuba, respondeu diretamente a George W. Bush:


Señor Bush:
(...) Incluir a Cuba en una lista de países que practican el tráfico ilegal de personas es cínico. Algo aún más infame y repugnante (...) es afirmar que Cuba promueve el turismo sexual, incluso con niños.(...). Usted debiera experimentar vergüenza por intentar asfixiar económicamente al pueblo que, bloqueado y sometido a más de cuatro décadas de guerra económica, agresiones armadas y acciones terroristas (...) Usted trata de estrangular la economía y amenaza con la guerra al país que ha sido capaz de alcanzar ya la cifra de 20 mil médicos prestando actualmente servicios en 64 países del Tercer Mundo. (...) Al prohibir a los norteamericanos viaja a Cuba con brutales amenaza de represión, usted viola un principio constitucional y un derecho del cual se sintieron siempre orgullosos los ciudadanos de su país. Muestra, además, miedo político. (...) Lo peor de su descabellada y torpe política contra Cuba es usted y su grupo de cercanos asesores han declarado impúdicamente su propósito de imponer por la fuerza lo que califican de transición política en Cuba (...). Usted debe saber que su marcha contra Cuba no será nada fácil. Nuestro pueblo resistirá sus medidas económicas, sean las que fueren. Cuarenta y cinco años de lucha heroica frente al bloqueo y la guerra económica, amenazas, agresiones, planes de asesinato a sus líderes, sabotajes y terrorismo, no debilitaron sino fortalecieron a la Revolución. (...) El derrumbe del campo socialista europeo y de la propia URSS, que nos privó de mercado, combustible, alimentos y materias primas, frente a un bloqueo reforzado con las Leyes Torricelli, Helms-Burton y otras medidas, no quebrantaron al pueblo cubano, y ocurrió lo que parecía imposible: resistimos! (...) Hoy no somos un puñado de hombres decididos a vencer o morir. Somos millones de hombres y mujeres que contamos con las armas suficientes (...). Puedo asegurarle que usted jamás ganaría esa guerra. Aquí no encontrará un pueblo dividido, etnias opuestas o profundas diferencias religiosas (...); se encontrará con un pueblo solidamente unido por una cultura, un sentimiento solidario y una obra social y humana que no tiene precedente en la historia. Usted no se va a llenar de gloria con una acción militar contra Cuba. Nuestro pueblo jamás renunciará a su independencia, ni renunciará jamás a sus ideales políticos, sociales y económicos (CASTRO, 2004).

           
Em janeiro de 2004, em uma cafeteria em Havana, conheci Medalia, 31 anos, bastante simpática e desembaraçada, tomando uma cerveja. Puxou conversa e a cadeira e sentou-se a minha mesa. Fui bastante receptivo e pusemo-nos a conversar. Medalia era muito alegre e falava muito. Torna-se séria, no entanto, quando diz que não era uma “puta”, mas uma “guia turística autônoma”. Trabalhava informalmente, na ilegalidade, porque se trabalhasse com autorização do Estado teria que pagar altas taxas para o governo. No decorrer de nossa longa conversa procurei identificar o real caráter da atividade profissional de Medalia. Concluí que ela era especializada em intermediar o contato de turistas com chicas, uma guia do turismo sexual em Havana. Abordava os turistas, buscava ganhar-lhes confiança e simpatia, passava a buscá-los em seus hotéis para passeio a pontos turísticos da cidade, indicava-lhes restaurantes e paladares mais em conta, dava dicas de como agir em Cuba e, principalmente, buscava viabilizar os desejos sexuais destes.
             
Medalia pergunta, “agora que somos amigos”, se posso pagar-lhe uma cerveja e um sanduíche, pois tem fome. Consinto e a conversação continua. O garçom trouxe a comida solicitada por Medalia, que não era o sanduíche acordado comigo, mas uma refeição completa: arroz, batatas fritas e um bom pedaço de frango à milanesa. Pelo brilho de seus olhos e pelo ímpeto - contido, mas percebido - com que se lançou à refeição, percebi que ela estava, realmente, com fome. No entanto, comeu apenas todo o arroz e as batatas fritas e somente um pequeno pedaço do frango. O restante da carne acondicionou num saco plástico - que antes continha moedas e algumas notas de pesos cubanos - e disse-me: “vou levar, depois, para minha filha de 13 anos que está em casa, sozinha”.
           
Por trás das máscaras sociais, dos estereótipos construídos moralmente, as mulheres que fazem do seu corpo uma mercadoria de consumo são semelhantes, pessoas de carne, osso e alma, com sentimentos e angústias, com históricos de privações materiais, desintegração familiar, rebeldia moral e de afirmação do seu eu à revelia das normas, dos códigos e padrões de conduta aceitos social e sexualmente. Indicativo de degradação humana ou de estratégias de sobrevivência ou existência?  
           
Em suma, o desvio moral em Cuba é considerado uma questão política, uma contestação a moral socialista do Estado. No material didático do curso de capacitação de trabalhadores do turismo da Escola Nacional de Turismo, no item referente ao “Trabajo del Partido”, lê-se: “VI.4. El enfrentamiento político-ideológico del problema de las jineteras, por su complejidad y connotación social, requiere especial atención y profilaxis, tanto en el ámbito turístico como en su entorno y en toda la sociedad” (CUBA, s/d, p. 18).
           
O combate à prostituição, portanto, é componente da política pública de turismo de Cuba, ainda que essa não esteja associada totalmente ao conceito de privação relativa, mas, parcialmente, ao de privação absoluta.
           
Referências.

BECKER, H. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo, Hucitec, 1993.

BRAMWELL, B. et alli. Sustainable Tourism Management: principles and practice. Tilburg, Nethelands, Tilburg University Press, 1996.

CASTRO, Fidel. Segunda epístola. Juventude Rebelde - Tabloide Especial No. 7., junho, 2004.

CUBA. V - El directivo y los recursos humanos. Havana, Escuela “Sergio Perez”, Biblioteca Salvador Allende, mimed, s/d.

FURIATI, C. Fidel Castro: uma biografia consentida. Tomo II - Do subversivo ao Estadista. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

GAMA, H. F. L. N. Turismo e Sustentabilidade: um olhar sociológico sobre os lugares Ponta do Corumbau, Brasil e Havana, Cuba. Tese de doutorado. Brasília, Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas/Universidade de Brasília, 2005.

GARRIDO, Evaristo V. Cuba y el Turismo. Havana, Editorial de Ciências Sociales, 1993.

HALL, C. Adventure, Sport and Health Tourism. In WEILER, B. & HALL, C. Special Interest Tourism. Londres, Bellhaven Press, 1992.

HUSSERL, E. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa, Edições 70, 1986.

KOSIK, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

MATHIESON, A. & WALL, G. Tourism: Economic, Physical, and Social Impacts. Nova York: Longman, 1982.

PIGRAN, J. Sustainable Tourism Policy Considerations. Journal of Tourism. Studies 1.pp.2-9, 1990.

RUSCHMANN, Doris van de M. Turismo e Planejamento Sustentável: a proteção do meio ambiente. São Paulo: Papirus, 1997.

SEATON,T. Tourism and Relative Deprivation: the counter-revolutionary processes of tourism in Cuba. In ROBINSON, M. at alli (eds.) Tourism and Culture: culture as the tourism product. Sunderland: Centre for travel and Tourism and Business Education Publishers, 1991.

SWARBROOKE, J. Turismo Sustentável: conceitos e impacto ambiental. São Paulo: Aleph, 2000.



[1] Publicado originalmente em https://seminariolatinoturismo.files.wordpress.com/2017/07/anais-slpptur-2015.pdf. Brasília, Universidade de Brasília / Centro de Excelência em Turismo, 2017.
[2] Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Professor Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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