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" O DIÁLOGO. É O ELO QUE FALTA "

A DIALÉTICA DA TOTALIDADE CONCRETA DE KAREL KOSIK (HÉLIO FERNANDO LÔBO NOGUEIRA DA GAMA)

A Dialética da Totalidade Concreta de Karel Kosik.[1]

Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[2]


Toda ciência seria supérflua se a aparência
 e a essência das coisas se confundissem.
Karl Marx

O presente ensaio é um esforço de revelação e compreensão da estrutura argumentativa empreendida pelo filósofo tcheko Karel Kosik em sua obra Dialética do Concreto, mais especificamente o que trata a primeira parte, a "Dialética da Totalidade Concreta". Nosso objetivo principal, em que pese à simpatia pela abordagem, a gama conceitual utilizada e as implicações filosóficas e mesmo de práxis política que daí deriva, será o de se remeter essencialmente ao plano da validade dos argumentos, sua coerência interna, lógica. Em outras palavras, verificar se as premissas que sustentam as teses principais - como conclusões de argumentos - estão de tal maneira estruturadas de modo a conferir validade, sob o ponto de vista da lógica formal, ao trabalho de Kosik, é a questão central com a qual nos confrontaremos.
Contudo, mesmo partindo da compreensão que uma analise lógica não se remete ao plano da verdade das premissas que sustentam a tese, tarefa que cabe à ciência, entendemos como inevitável, e mesmo necessário, um momento de consideração sobre a verdade da ideia principal. Em se tratando de ciências humanas, a fuga a este plano implica o desconhecimento da complexidade do objeto, para não dizer em neopositivismo. Assim, envidaremos esforços no sentido de uma compreensão em dois planos - da validade e da verdade – da primeira parte do pensamento expresso de Karel Kosik.

O Mundo da Pseudoconcreticidade e a sua Destruição

Neste capítulo - como nos que se seguem - acompanharemos o caminho trilhado por Kosik na construção da estrutura argumentativa que serve de suporte às principais teses defendidas. Assim, nossa investigação consistirá na identificação dos argumentos utilizados pelo autor, suas premissas e conclusões, bem como ao encadeamento empreendido de modo a conferir validade, coerência lógica, à tese central defendida.
A tese central do primeiro capítulo liga-se ao título do mesmo, isto é, trata do mundo da pseudoconcreticidade e a necessidade de sua destruição; contudo, somente no desenvolvimento da estrutura argumentativa é que Kosik melhor a formula, a partir das premissas que a sustentam. Assim, sua preocupação inicial é situar o que chama de aspecto fenomênico da realidade.

Argumento I
Premissa. A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais.
Conclusão (arg. I) e premissa do argumento II. (...) a realidade não se apresenta aos homens, a primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade.
Conclusão (arg. II). No trato prático-utilitário com as coisas (...) elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade (KOSIK, 1976, pp. 9-10).

Logo a seguir, Kosik enuncia a principal contradição do aspecto fenomênico da realidade.

Argumento III
Premissa. (...) "a existência real" e as formas fenomênicas da realidade (...) são diferentes e muitas vezes contraditórias com a lei do fenômeno, com a estrutura da coisa e, portanto, com o seu núcleo interno essencial e o seu conceito correspondente.
Conclusão. (...) a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade (KOSIK, 1976, p.10).

E é justamente a "existência real" - como sendo a atmosfera comum da vida humana - juntamente com o aspecto fenomênico da realidade, o mundo da pseudoconcreticidade, da práxis fetichizada, ideológica, mistificadora da estrutura (essência) da realidade social. Kosik parte então à explicitação da relação dialética fenômeno/essência, e conclui que “Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. Compreender o fenômeno é atingir a essência” (KOSIK, 1976, p. 12).
A razão de ser da ciência e da filosofia, como uma atividade peculiar que tem por meta o fundamento oculto das coisas - a essência – é o principal argumento utilizado pelo autor para reforçar o mundo dos fenômenos como mediato à estrutura da realidade.
O método dialético de decomposição do todo, como análogo ao processo de conhecimento, é então inserido na estrutura argumentativa.

Argumento IV
1ᵃ  Premissa. O conceito da coisa é compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura.
2ᵃ  Premissa. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. (...)
3ᵃ Premissa. O "conceito" e a "abstração", em uma concepção dialética, têm o significado do método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.
Conclusão. (...) o conhecimento é que é a própria dialética em uma de suas formas (KOSIK, 1976, p. 14).

A seguir, Kosik adentra ao conceito de práxis - agir humano - como possuindo uma estrutura análoga ao processo de conhecimento.

Argumento V
1ᵃ Premissa. O conhecimento se realiza como separação de fenômeno e essência, do que é secundário e do que é essencial, já que só através dessa separação se pode mostrar a sua coerência interna, e com isso, o caráter específico da coisa. (...)
2ᵃ Premissa. Todo agir é “unilateral”, já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a consecução de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.
Conclusão. (...) decomposição do todo, que é elemento constitutivo do conhecimento filosófico, demonstra uma estrutura análoga à do agir humano: também a ação se baseia na decomposição do todo (KOSIK, 1976, pp. 14-15).

Segundo Kosik, o "horizonte" de uma realidade indeterminada como todo constitui o pano de fundo inevitável de cada ação e cada pensamento, embora ele seja inconsciente para a consciência ingênua. Assim, partindo dos argumentos anteriores em que fez a analogia conhecimento/dialética e conhecimento/práxis, o autor caracteriza o mundo da pseudoconcreticidade como o mundo da vivência fetichizada, reino da ideologia.

Argumento VI
1ᵃ Premissa. Os fenômenos e as formas fenomênicas das coisas se reproduzem espontaneamente no pensamento comum como realidade (a realidade mesma) não porque sejam os mais superficiais e mais próximos do conhecimento sensorial, mas porque o aspecto fenomênico da coisa é produto natural da práxis cotidiana.
2ᵃ Premissa. A práxis utilitária cotidiana cria "o pensamento comum" - em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto à técnica de tratamento das coisas - como forma de seu movimento e de sua existência.
3ᵃ Premissa. O pensamento comum é a forma ideológica do agir humano de todos os dias.
4ᵃ Premissa. (...) o mundo que se manifesta ao homem na práxis fetichizada, no tráfico e na manipulação, não é o mundo real, embora tenha a consistência e a "validez" do mundo real: é o "mundo da aparência" (Marx).
Conclusão. A representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas (KOSIK, 1976, p. 15).

A necessidade da destruição da pseudoconcreticidade, como necessária ao pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, é apresentada, por consequência, como a tese central do 1º capítulo da Dialética do Concreto em que a dialética apresenta-se como o método que tem por meta a consecução desta tarefa.

Argumento VII
1ᵃ Premissa. A distinção entre representação e conceito, entre o mundo da aparência e o mundo da realidade, entre a práxis utilitária cotidiana dos homens e a práxis revolucionária da humanidade ou, numa palavra, a "cisão do único", é o modo pelo qual o pensamento capta a "coisa em si".
2ᵃ Premissa. A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a "coisa em si" e sistematicamente se pergunta como à possível chegar à compreensão da realidade.
3ᵃ Premissa. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade (...) tem de destruir a aparente independência do mundo dos contatos imediatos de cada dia.
Conclusão. A destruição da pseudoconcreticidade - que o pensamento dialético tem de efetuar - não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos, mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando o seu caráter mediato e apresentando, contra a sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado (KOSIK, 1976, pp. 15-16).

Dando continuidade a sua argumentação, Kosik explicita o papel da práxis revolucionária que, ao lado do pensamento dialético-crítico, são os elementos essenciais que possibilitam não apenas a compreensão da realidade, mas a sua própria transformação.

Argumento VIII
1ᵃ Premissa. A destruição da pseudoconcreticidade como método dialético-crítico, graças à qual o pensamento dissolve as criações fetichizadas do mundo reificado e ideal, para alcançar a sua realidade, é apenas o outro lado da dialética, como método revolucionário de transformação da realidade.
2ᵃ Premissa: (...) a realidade pode ser mudada de modo revolucionário só porque e só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós.
Conclusão: Para que o mundo possa ser explicado "criticamente", cumpre que a explicação mesmo se coloque no terreno da "práxis" revolucionária (KOSIK, 1976, p. 18).

Finalmente, o autor acentua que:

Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da verdade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada nem predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade (KOSIK, 1976, p. 19).

 Reprodução Espiritual e Racional da Realidade

A tese central defendida por Kosik, neste segundo capítulo, apresenta a dialética como o método da reprodução espiritual e intelectual da realidade ou o método do desenvolvimento e da explicitação dos fenômenos culturais partindo da atividade prática objetiva do homem histórico; no entanto, somente trilhando o caminho percorrido no que se refere ao desenvolvimento da estrutura argumentativa - onde a crítica ao método da redução é implacável e oportuna - podemos visualizar as premissas básicas que a sustentam.
De início, o autor resgata os pressupostos desenvolvidos anteriormente - como o papel da práxis como elemento essencial ao processo de conhecimento - a fim de inserir os vários aspectos da apropriação do mundo pelos homens.

Argumento I
1ᵃ Premissa. Não é possível penetrar na "coisa em si" e responder à pergunta - que coisa é a “coisa em si?” - sem a análise da atividade mediante a qual ela é compreendida; ao mesmo tempo, esta análise deve incluir também o problema da criação da atividade que estabelece o acesso à "coisa em si".
2ᵃ Premissa. Estas atividades são os vários aspectos ou modos de apropriação do mundo pelos homens.
Conclusão. Não é possível compreender imediatamente a estrutura da coisa ou a coisa em si mediante a contemplação ou a mera reflexão, mas sim mediante uma determinada atividade (KOSIK, 1976, pp. 22-23).

Desta feita, podemos considerar como diversos aspectos da apropriação do mundo pelos homens o prático-espiritual, o teórico, o artístico, o religioso, bem como o matemático, físico, etc. No entanto, "o homem vive em muitos mundos mas cada mundo tem uma chave diferente, e o homem não pode passar de um mundo para o outro sem a chave respectiva, isto é, sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo de apropriação da realidade" (KOSIK, 1976, p. 23). Com este enunciado Kosik chama a atenção para o fato de que, em se tratando de ciência e filosofia, faz-se necessário um método de apropriação da realidade correspondente, diverso dos anteriores.

Argumento II
1ᵃ Premissa. Para a filosofia e a ciência moderna (...), o conhecimento representa um dos modos de apropriação do mundo pelo homem; além disso, os dois elementos constitutivos de cada modo humano de apropriação do mundo são o sentido subjetivo e o sentido objetivo.
 2ᵃ Premissa. O processo de captação e descobrimento do sentido da coisa é ao mesmo tempo criação, no homem, do correspondente sentido, graças ao qual ele pode compreender o sentido da coisa.
Conclusão. É possível (...) compreender o sentido objetivo da coisa se o homem cria para si mesmo um sentido correspondente. Estes mesmos sentidos, por meio dos quais o homem descobre a realidade e o sentido dela, coisa, são um produto histórico-social (KOSIK, 1976, p. 23).

“A teoria materialista do conhecimento, como reprodução espiritual da realidade, capta o caráter ambíguo da consciência, que escapa tanto ao positivismo quanto ao idealismo" (KOSIK, 1976, p. 26). Assim, após situar a filosofia como um modo de apropriação do mundo, que exige um método específico, Kosik faz a crítica a diversas concepções filosóficas em oposição à dialética.

Argumento III

1ᵃ Premissa. Cada objeto percebido, observado ou elaborado pelo homem é parte de um todo, e precisamente este todo não percebido explicitamente é a luz que ilumina e revela o objeto singular, observado em sua singularidade e no seu significado.
2ᵃ Premissa. A consciência é constituída da unidade de duas formas que se interpenetram e influenciam reciprocamente, porque, na sua unidade, elas se baseiam na práxis objetiva e na apropriação prático-espiritual do mundo.
Conclusão. A consciência humana deve ser (...) considerada tanto no seu aspecto teórico-predicativo, na forma do conhecimento explícito, justificado, racional e teórico, como também no seu aspecto antepredicativo, totalmente intuitivo (KOSIK, 1976, pp. 25-26).

A recusa e a subestimação da primeira forma, afirma Kosik, “conduzem ao irracionalismo e às mais variadas espécies de ‘pensamento vegetativo’; a recusa e a subestimação da segunda forma conduzem ao racionalismo, ao positivismo e ao cientificismo, os quais, em sua unilateralidade, determinam o irracionalismo como complemento necessário” (KOSIK, 1976, p. 26). Prosseguindo seu ataque às concepções adversárias, dirige-se agora ao método da redução (o spnozismo e o fisicalismo).

Argumento IV
1ᵃ Premissa. (...) toda teoria do conhecimento se apoia, implícita ou explicitamente, sobre uma determinada teoria da realidade e pressupõe uma determinada concepção da realidade mesma.
2ᵃ Premissa. A teoria materialista do conhecimento como reprodução intelectual da realidade deriva de uma concepção da realidade diferente daquela de que deriva o método da redução. (...) O marxismo não operou a dinamização da imutável substância, mas definiu como "substância" a dinâmica mesma do objeto, a sua dialética.
Conclusão. (...) conhecer a substância não significa reduzir os “fenômenos” à substância dinamizada, vale dizer, a algo que se esconde por detrás dos fenômenos e que deles não depende; significa conhecer as leis do movimento da coisa em si. A “substância” é o próprio movimento da coisa ou a coisa em movimento (KOSIK, 1976, pp. 27-28).

O reducionismo, portanto, “é o método do ‘nada mais que’; toda a riqueza do mundo não é nada mais que substância imutável ou então dinamizada" (KOSIK, 1976, p. 28), incompetente para explicar racionalmente uma evolução nova, de natureza qualitativa, pois o novo não seria nada mais que o velho, sob outra forma. Nesse, momento, a concepção do método dialético como análogo ao processo de conhecimento é novamente inserida como o método capaz de preencher a lacuna apresentada pela redução, ou seja, como compreender o novo.

Argumento V
1ᵃ Premissa. Só uma concepção da matéria que na própria matéria descubra a negatividade, e, por conseguinte, a capacidade de produzir novas qualidades e graus de evolução superiores, proporciona a possibilidade de explicar materialisticamente o novo como uma qualidade do mundo material.
2ᵃ Premissa. A realidade é interpretada não mediante a redução a algo diverso de si mesma, mas explicando-a com base na própria realidade, mediante o desenvolvimento e a ilustração das suas fases, dos momentos do seu movimento.
3ᵃ Premissa. O ponto de partida do exame deve ser formalmente idêntico ao resultado (...) deve manter a identidade durante todo o curso do raciocínio visto que ele constitui a única garantia de que o pensamento não se perderá no seu caminho.
4ᵃ Premissa. O sentido do exame está no fato de que no seu movimento em espiral ele chega a um resultado que não era conhecido no ponto de partida e que, portanto, dada a identidade formal do ponto de partida e do resultado, o pensamento, ao concluir o seu movimento, chega a algo diverso - pelo seu conteúdo - daquilo que tinha partido.
Conclusão: Da vital, caótica, imediata representação do todo, o pensamento chega aos conceitos, às abstratas determinações conceituais, mediante cuja formação se opera o retorno ao ponto de partida; desta vez, porém, não mais como ao vivo mas incompreendido todo da percepção imediata, mas ao conceito do todo ricamente articulado e compreendido (KOSIK, 1976, pp. 28-29).

Kosik acentua que o caminho entre a "caótica representação do todo" e a "rica totalidade da multiplicidade das determinações e das relações" coincide com a compreensão da realidade. O método do pensamento, pois, não é outro senão o método materialista do conhecimento da realidade, a dialética. O autor passa então a explicitar a tese central, isto é, a dialética como método de reprodução espiritual e racional da realidade.

Argumento VI
1ᵃ Premissa. Para que possa conhecer e compreender este todo, possa torná-lo claro e explicá-lo, o homem tem de fazer um détour: o concreto se torna compreensível através da mediação do abstrato, o todo através da mediação da parte.
2ᵃ Premissa. O método de ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensamento; em outras palavras, é um elemento que atua nos conceitos, no elemento da abstração.
3ᵃ Premissa. A ascensão do abstrato ao concreto não é a passagem de um plano (sensível) para outro plano (racional): é um movimento no pensamento e do pensamento.
4ᵃ Premissa. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que à negação da imediatidade, da evidência e da concreticidade sensível.
5ᵃ Premissa. A ascensão do abstrato ao concreto é um movimento para o qual todo início é abstrato e cuja dialética consiste na superação desta abstratividade.
Conclusão. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto (KOSIK, 1976, p. 30).

                 Em outras palavras, o processo do abstrato ao concreto – como concreto pensado -, como método materialista do conhecimento da realidade, é a dialética da realidade concreta, na qual se reproduz idealmente a realidade em todos os seus planos e dimensões.

A Totalidade Concreta

A tese da Totalidade Concreta, um dos conceitos centrais da dialética materialista, que compreende a realidade nas suas íntimas leis e revela, sob a superfície e a casualidade dos fenômenos, as conexões internas, necessárias, é precisamente a tese central de que trata o autor, neste capítulo. No entanto, mais uma vez, apenas o acompanhamento do desdobrar dos argumentos nos permite visualizar o momento de sua explicitação, bem como suas premissas básicas.
Kosik inicia sua exposição situando o empirismo e as correntes idealistas como opostas à concepção da realidade como totalidade concreta, pois consideram as manifestações fenomênicas e casuais, não chegando a atingir a compreensão dos processos evolutivos da realidade. Seus argumentos iniciais, portanto, vão se concentrar na crítica a estas concepções.

Argumento I
Premissa. As correntes idealistas do século XX liquidaram a tridimensionalidade da totalidade como principio metodológico, reduzindo-a essencialmente a uma única dimensão, à relação da parte com o todo; e sobretudo desligaram radicalmente a totalidade (como exigência metodológica e principio epistemológico do conhecimento da realidade) da concepção materialista da realidade como totalidade concreta.
Conclusão. Com tal desligamento, a totalidade como princípio metodológico perdeu a sua motivação e coerência, o que imediatamente conduziu à interpretação idealista e ao empobrecimento do seu conteúdo (KOSIK, 1976, pp. 34-35).

Enuncia então a questão que entendemos como chave, centro da diversidade das concepções sobre o conhecimento da realidade:

Argumento II
Premissa. O conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção da realidade, explícita ou implícita.
Conclusão. A questão: como se pode conhecer a realidade? é sempre precedida por uma questão mais fundamental: que é a realidade? (KOSIK, 1976, p. 35).

Para Kosik existe uma diferença fundamental entre a opinião dos que consideram a realidade como totalidade concreta, isto é, como um todo estruturado em curso de desenvolvimento e auto criação, e a posição dos que afirmam que o conhecimento humano pode ou não atingir a "totalidade" dos aspectos ou dos fatos, em que a realidade é entendida como o conjunto de todos os fatos.

Argumento III
1ᵃ Premissa. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (...) pode vir a ser racionalmente compreendido.
2ᵃ Premissa. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade, e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade.
3ᵃ Premissa. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético - isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade saia constituída - se são entendidos como partes estruturais do todo.
Conclusão. O concreto, a totalidade, não são, por conseguinte, todos os fatos, o conjunto dos fatos, o agrupamento de todos os aspectos, coisas e relações, visto que a tal agrupamento ainda falta o essencial: a totalidade e a concreticidade (KOSIK, 1976, pp. 35-36).

Introduzida a tese central, o autor passa à sua explicitação.

Argumento IV

1ᵃ Premissa. Princípio metodológico da investigação dialética da realidade é o ponto de vista da totalidade concreta, que antes de tudo significa que cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo.
2ᵃ Premissa. Um fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado como momento de um determinado todo; desempenha, portanto, uma função dupla, a única capaz de dele fazer efetivamente um fato histórico: de um lado, definir a si mesmo, e de outro, definir o todo; ser ao mesmo tempo, produtor e produto; ser revelador e ao mesmo tempo determinado; ser revelador e ao mesmo tempo decifrar a si mesmo; conquistar o próprio significado e ao mesmo tempo conferir um sentido a algo mais.
Conclusão. Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo corresponde adquirem verdade e concreticidade (KOSIK, 1976, pp. 40-41).

E o que significa adquirir verdade e concreticidade, em uma concepção dialética da realidade? Nesse momento, Kosik faz o resgate da tese da reprodução espiritual da realidade, e define como concreticidade a superação da abstratividade, entendida como o isolamento dos fatos.

Argumento V
1ᵃ Premissa. Porque o real é um todo estruturado que se desenvolve e se cria, o conhecimento de fatos ou conjunto de fatos da realidade vem a ser conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real.
2ᵃ Premissa. (...) o pensamento dialético parte do pressuposto de que o conhecimento humano se processa em um movimento em espiral, do qual cada início é abstrato e relativo.
3ᵃ Premissa. (...) o conhecimento concreto da realidade (...) É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade.
Conclusão. O conhecimento dialético da realidade não deixa intactos os conceitos no ulterior caminho do conhecer; não é uma sistematização dos conceitos que procede por soma, sistematização esta fundada sobre uma base imutável e encontrada uma vez por todas: é um processo em espiral de mútua compenetração e elucidação dos conceitos, no qual a abstratividade (unilateralidade e isolamento) dos aspectos é superada em uma correlação dialética, quantitativo-qualitativa, regressivo- progressiva (KOSIK, 1976, pp 41-42).

Para Kosik, "a compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes" (KOSIK, 1976, p. 42). Esta concepção dialética da totalidade, em contraposição às demais concepções de totalidade, como a atomístico-racionalista e a organicista e organicístico-dinâmica, baseia-se na compreensão da importância do homem como sujeito da práxis histórico-objetiva da humanidade.

Argumento VI
Premissa. Para o materialismo a realidade social pode ser conhecida na sua concreticidade (totalidade) quando se descobre a natureza da realidade social, se elimina a pseudoconcreticidade, se conhece a realidade social como unidade dialética de base e supra-estrutura, e o homem como sujeito objetivo, histórico-social.
Conclusão. A realidade social não é conhecida como totalidade concreta se o homem no âmbito da totalidade é considerado apenas e sobretudo como objeto e na práxis histórico-objetiva da humanidade não se reconhece a importância primordial do homem como sujeito (KOSIK, 1976, p. 44).

Mesmo inferindo que o método científico é o meio graças ao qual se pode decifrar os fatos, Kosik chama a atenção que a absolutização dessa atividade do método dá origem à ilusão idealista de que o pensamento é que cria o método, ou que os fatos adquirem um sentido e um significado apenas na mente humana. Este é o problema fundamental da teoria materialista do conhecimento, que consiste na relação e na possibilidade de transformação da totalidade concreta em totalidade abstrata: como conseguir que o pensamento, ao reproduzir espiritualmente a realidade, se mantenha a altura da realidade concreta e não degenere em totalidade abstrata? O argumento que o autor apresenta, que parte da crítica às demais concepções de totalidade onde o método do princípio abstrato despreza a riqueza do real, é precisamente a explicação da tese central do seu trabalho.

Argumento VII
Premissa. A dialética não pode entender a totalidade como um todo já feito e formalizado, que determina as partes, porquanto à própria determinação da totalidade pertencem a gênese e o desenvolvimento da totalidade, o que, de.um ponto de vista metodológico, comporta a indagação de como nasce a totalidade e quais são as fontes internas do seu desenvolvimento e movimento.
Conclusão e premissa do argumento VIII. A totalidade não é um todo já pronto que se recheia com um conteúdo, com as qualidades das partes ou com as suas relações; a própria totalidade é que se concretiza e esta concretização não é apenas criação do conteúdo mas também criação do todo.
Conclusão (arg. VIII). A criação da totalidade como estrutura significativa é, portanto, ao mesmo tempo, um processo no qual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado de todos os seus fatores e parte (KOSIK, 1976, pp. 49-50).

Finalmente o autor acentua que o aguçamento do problema - o que vem primeiro, a totalidade ou as contradições - é uma falsa questão e exprime a total incompreensão da dialética materialista.

Argumento IX
1ᵃ Premissa. O problema não consiste em reconhecer a prioridade da. totalidade face às contradições, ou das contradições face à totalidade, precisamente porque tal separação elimina tanto a totalidade quanto as contradições de caráter dialético: a totalidade sem contradições é vazia e inerte, as contradições fora da totalidade são formais e arbitrárias.
2ᵃ Premissa. A totalidade como meio conceitual para compreender os fenômenos sociais permanece abstrata se não se põe em evidência que tal totalidade é totalidade de base e superestrutura, bem como de seu movimento, desenvolvimento e relações recíprocas, embora cabendo à base um papel determinante.
3ᵃ Premissa. (...) a totalidade de base e superestrutura permanece abstrata se não se demonstra que é o homem, como sujeito histórico real, que no processo social de produção e reprodução cria a base e a superestrutura, forma a realidade social como totalidade de relações sociais, instituições e ideias; e nesta criação da realidade social objetiva cria ao mesmo tempo a si próprio, como ser histórico e social, dotado de sentidos e potencialidades humanas, e realiza o infinito processo de "humanização do homem".
Conclusão. A totalidade concreta como concepção dialética-materialista do conhecimento do real (...) significa, portanto, um processo indivisível, cujos momentos são: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o conhecimento da sua autêntica objetividade; (...) conhecimento do caráter histórico do fenômeno, no qual se manifesta de modo característico a dialética do individual e o humano em geral; e enfim o conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno, da sua função objetiva e do lugar histórico que ele ocupa no seio do corpo social (KOSIK, 1976, pp. 51-52).

Um momento de consideração sobre a verdade da tese

Temos a pretensão de haver inferido, na descrição da estrutura argumentativa da "Dialética da Totalidade Concreta", que no plano da validade dos argumentos, sua coerência interna, lógica, o trabalho de Karel Kosik apresenta-se impecável, não deixando margem a qualquer contenda no que se refere ao aspecto lógico formal. Na verdade, ao nosso entender, a discussão é outra, ou melhor, remete-se ao plano da verdade das premissas que, como conclusões de outros argumentos, sustentam as teses principais.
O próprio Kosik empreende o arcabouço argumentativo de seu trabalho a partir de um embate sem tréguas às premissas básicas das concepções filosóficas que buscam uma compreensão da realidade social por outros caminhos. No seu entender, a questão: como se pode conhecer a realidade? É sempre precedida de uma questão mais fundamental: que é a realidade? Defendemos a tese que esta é a formulação básica, e vai se evidenciar nos três capítulos que compõe a primeira parte da Dialética do Concreto; vai ser o caminho por onde o filósofo tcheco, ao mesmo tempo em que faz o combate às concepções adversárias, enuncia a concepção materialista dialética da realidade como totalidade concreta.
No primeiro capítulo, a tese do mundo da pseudoconcreticidade, da práxis fetichizada, ideológica, mistificadora da estrutura (essência) da realidade social, e a necessidade de sua destruição pelo pensamento dialético, que se efetiva no terreno de uma práxis revolucionária que “coincide com o devenir humano do homem, com o processo de humanização do homem", prenuncia a compreensão do que é a realidade, para Kosik. No segundo, o autor explicita a tese da dialética como o método de reprodução espiritual e racional da realidade concreta, na qual a realidade é reproduzida idealmente em todos os seus planos e dimensões; e, finalmente, no terceiro, a tese da totalidade concreta apresenta-se como uma teoria que compreende a realidade como concreticidade, "como um todo que possui sua própria estrutura que se desenvolve e se cria", em que se reconhece como realidade social uma unidade dialética de base e supraestrutura, com a base como determinante, em última instância.
O que podemos inferir, portanto, é que as três teses principais desenvolvidas por Karel Kosik em seu trabalho, na verdade constituem-se nos pressupostos básicos de uma determinada visão de mundo, de um determinado modo de conceber a realidade e apropriar-se dela. Desta feita, a questão da análise no plano da verdade das premissas iriam nos remeter a uma discussão interminável no âmbito das ciências humanas - da filosofia à política - que, ao nosso entender, não será muito profícua no sentido de aferir a verdade ou impropriedade dos pressupostos assinalados de maneira conclusiva e insofismável, mesmo porque, se houvesse possibilidade de tal feito a nível estritamente teórico, a razão de ser da filosofia e das ciências humanas estaria por se esgotar.
No entanto, para a superação desse impasse servimo-nos do próprio Kosik, quando explícita o papel da práxis revolucionária da humanidade que, "ao lado do pensamento dialético crítico, possibilitam não apenas a compreensão da realidade; mas a sua própria transformação". E esta é, ao nosso entender, a principal contribuição de Kosik ao materialismo dialético, ao ressaltar o papel do homem como indivíduo social-histórico, sujeito essencial de um processo de transformação revolucionária que tenha por meta a realização da verdade e a criação da realidade humana, a "humanização do homem". Em outras palavras, só a História e a práxis crítica revolucionária da humanidade nos permitiria separar "o joio do trigo", ou distinguir entre as diversas concepções da realidade aquela que melhor se apropria do real. Por sua vez, ao fazê-lo municia o homem de instrumentos que lhe permitem a elucidação de sua inserção na sociedade, bem como a possibilidade de transformação revolucionária.

Referências
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- Kosik, Karel. Dialética do Concreto. 2. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
- Marx, Karl. O Capital.III. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.



















[1] Publicado originalmente em Contra a Corrente – Revista Marxista de Teoria, Política e História Contemporânea, Ano 6, N. 11, pp. 62-69. ISSN 1984-5898. Brasília, Centelha Cultural – CEPESB: Centro de Estudos e Pesquisas Sociais de Brasília, 2014.
[2] Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Professor Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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