Conhecimento
sócio histórico e estrutura social.[1]
Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[2]
Desde a Grécia antiga,
com Heródoto (484-425
a .C), considerado o pai da História,
registros de batalhas, guerras, fatos, heróis, acontecimentos, culturas e
credos religiosos têm sido o métier de historiadores. O positivismo, a
partir do século XIX da era cristã, afirmou essa perspectiva, fragmentando o
social ainda que com nuances filosóficas e sociológicas, e ao mesmo tempo
revelando uma crença ilimitada na ideia de uma evolução linear societária como
significando necessariamente progresso. O conhecimento sócio histórico,
entretanto, parte da premissa que a ideia de estrutura social é fundamental, do
ponto de vista epistemológico, para uma compreensão mais profunda e complexa do
processo social e histórico, em busca da lógica de seu desenvolvimento,
constituindo-se em um avanço científico sobre as perspectivas historiográficas
meramente episódicas e personalizadas, ou rigidamente datadas, fragmentadas,
lineares, ingênuas ou ideológicas.
Eric Hobsbawn assinala que a história da sociedade é história, ou seja, o tempo cronológico é uma de suas dimensões. Além de interessar-nos nas estruturas e seus mecanismos de continuidade, mudança e formas de transformação, também nos concerne o que sucedeu de “fato”. Em outras palavras, a história da sociedade é, entre outras coisas, a história de determinadas unidades de pessoas que vivem juntas e são definíveis em termos sociológicos. Esta definição de “sociedade” apresenta duas dificuldades, segundo o historiador inglês: a dimensão, complexidade e alcance destas unidades variam, por exemplo, segundo os diferentes períodos históricos ou segundo as diferenças nas etapas de desenvolvimento; o que chamamos sociedade não é mais que um dos vários conjuntos de inter-relações humanas segundo as quais pessoas são classificadas ou classificam as mesmas. Desta forma,
A história das sociedades requer a
utilização, se não de um modelo formal e elaborado dessas estruturas, pelo
menos uma ordem aproximada de prioridades de investigação e uma hipótese de
trabalho sobre o que constitui a relação central ou o complexo de relações de
nosso trabalho (ainda que claro seja que isto implica a existência de um
modelo)[3]
(HOBSBAWN, 1971, pp. 77-78).
Para Fernand Braudel, a história tradicional, atenta ao breve
tempo, ao indivíduo e ao acontecimento, habituou-se desde há muito tempo à sua
narração precipitada, dramática, de pouco fôlego. Em princípio do século XX,
uma dúvida se eleva no meio acadêmico contra uma história que se restringia aos
acontecimentos singulares, contra uma história “linear” dos acontecimentos –
“episódica”. Ultrapassar os acontecimentos equivalia a ultrapassar o tempo
breve que o contém, o da crônica ou do jornalismo. Equivalia também a perguntar
se mais para além dos acontecimentos não existe uma história, inconsciente
desta vez – ou melhor, mais ou menos consciente – que, em grande parte, escapa
à lucidez dos atores, dos responsáveis ou das vítimas: “fazem a história, mas a história arrasta-os”, pois,
Se
a história, omnipresente determina o social na sua totalidade, fá-lo sempre a
partir desse mesmo movimento do tempo que, incessantemente, arrasta a vida mas
a subtrai a si própria, que apaga e atiça novamente o fogo. A história é uma
dialética da duração; por ela, graças a ela, é o estudo do social, do todo
social e, portanto, do passado; e por isso também do presente, ambos inseparáveis
(BRAUDEL, 1976, p.121).
Assim, o pesquisador do tempo presente, prossegue Braudel, só alcança as “finas” tramas das estruturas, sob a condição de reconstruí-las teoricamente, de antecipar hipóteses e explicações, de rejeitar o real tal e como é percebido, de truncá-lo, de superá-lo; operações que permitem todas elas escapar aos dados para dominá-los melhor, mas que – todas elas sem exceção – constituem reconstruções.
Ciro
Cardoso e Hector Peres Brignolli assinalam que as mudanças da concepção da
história levaram à superação do acontecimento, a alcançar (além destes) as
flutuações conjunturais de duração variável e, afinal, o próprio nível das
estruturas, que mudam muito lentamente (CARDOSO & BRIGNOLLI, 1979).
Identificam Fernand Braudel como o historiador que soube perceber e sintetizar
as implicações de tal evolução quanto ao problema – essencial para o
historiador – do tempo, da duração, ao distinguir três níveis: o nível dos
acontecimentos, da história episódica, que se move a curto prazo; o nível
intermediário, da história conjuntural, de ritmos mais lentos embora muito
variáveis, e, por fim, o nível profundo da história estrutural de maior
duração. As estruturas “no limite do móvel e do imóvel” são no movimento
histórico “a um tempo sustentáculos e obstáculos da história”, como afirma
Albert Souboul:
Antes de qualquer outra observação, é necessário
definir aqui o que é uma estrutura social: um conjunto orgânico de relações e
de coerências, simultaneamente econômicas, sociais e psicológicas, ‘que o tempo
mal enfraquece e transmite muito lentamente’, segundo a expressão de Fernand
Braudel [BRAUDEL 1958: Histoire et
sciences sociales: la longue durée. Annales, Économies, Sociétes,
Civilisations, p.725.], e que é necessário estudar não somente de um ponto
de vista estático, mas talvez ainda na sua dinâmica. Só há estrutura global
onde todos os aspectos qualitativos e quantitativos estão estreitamente ligados
(SOBOUL, 1975, p. 32).
Assim,
o conhecimento sócio histórico, sem deixar de preocupar-se prioritariamente com
a mudança, o movimento, soube fazer-se consciente, também, das persistências, das
sobrevivências, das resistências à mudança. Por outro lado, os historiadores
deram-se conta que os vários níveis estruturais apresentam ritmos de
desenvolvimento diversos, devido à existência de defasagens no seio da
estrutura global: as estruturas econômicas mudam mais rapidamente do que as
sociais e as estruturas mentais mais lentamente do que as demais.
O conceito de estrutura, em história
econômica e geral, surge vinculado ao fato de os historiadores tomarem
consciência de que o estudo da evolução das sociedades demonstra a existência
de certos setores e elementos da realidade social, caracterizados por uma
estabilidade e uma permanência relativas e extremamente variáveis. Mas,
estrutura e movimento - ou conjuntura –
são conceitos estreitamente vinculados. As diferentes configurações estruturais
pressupõem conjunturas diferenciadas, características dos distintos sistemas; e
o efeito cumulativo das variações conjunturais pode produzir mudanças
estruturais, quer dizer, pode conduzir a novos estados de equilíbrio relativos
qualitativamente diferentes (CARDOSO & BRIGNOLLI, 1979, p.95).
Dessa forma, estrutura e movimento são inseparáveis, diferentemente do
paradigma do estruturalismo antropológico, dado que:
(...) a história não admite
“invariâncias” mais que relativas, instáveis e transitórias; a visão da mudança
que tem o historiador baseia-se no autodinanismo das estruturas. O mecanismo
dinâmico-estrutural é intenso e não-externo (encontros ou choques de
estruturas) como pensa a antropologia estrutural, devido à separação arbitrária
e radical que faz entre o ‘sincrônico’ e o ‘diacrônico’, que na realidade não
passa de modos necessariamente complementares de perceber o processo histórico
em sua diversidade e unidade, pois não há estrutura independente de um processo
de evolução, e a percepção do fluxo incessante da história inclui, ao mesmo
tempo, a consideração das permanências, das resistências à mudanças, das
sobrevivências. O tomar em consideração estruturas discretas, fatores
descontínuos, não impede que, a nível mais elevado, seja restabelecida a
continuidade fundamental do processo histórico, ou “o contínuo no descontínuo” (CARDOSO & BRIGNOLLI, 1979, p. 97).
Segundo Hobsbawn, por um “acordo tácito” diversos historiadores,
de diferentes tendências, parecem trabalhar, com ligeiras variantes, a partir
da construção de um modelo deste tipo. Ou seja, começam a análise pelo meio
ambiente material e histórico e prosseguem com as forças e técnicas de produção
(a demografia vai entre os dois), com a estrutura econômica (divisão de
trabalho, intercâmbio, acumulação, distribuição de excedente, etc.), e com as
relações sociais que isto implica. Continuando-se vem as instituições e a
imagem da sociedade e seu funcionamento implicados. Assim estabelece-se a
configuração da estrutura social. Hobsbawn destacava que a inclinação
predominante era a de considerar os movimentos econômicos (em seu sentido mais
amplo) como a espinha dorsal de tal análise:
A sociedade está exposta a um processo
de mudança e transformação histórica, e as tensões que este sofre permitem ao
historiador perceber claramente várias coisas, como: 1) o mecanismo geral por
meio do qual as estruturas da sociedade tendem simultaneamente a perder e
restabelecer seus equilíbrios; e 2) os fenômenos que são tradicionalmente de
interesse para os historiadores sociais, por exemplo, a consciência coletiva,
os movimentos sociais, a dimensão social das mudanças intelectuais e culturais,
etc.[4]
(HOBSBAWN, 1971, p. 79).
Albert
Soboul, por seu turno, vai mais longe:
Em última análise, tratando-se do
estudo das estruturas sociais, o critério mais seguro e mais válido não seria o
das relações entre classes sociais? Refere-se ao elemento mais permanente e
mais profundo da atividade humana; o trabalho e a produção. Explica a
totalidade de uma formação social e a sua relatividade espacial e temporal,
estando ele próprio ligado à evolução das forças produtivas (isto é, ao mesmo
tempo ao número dos homens, aos recursos postos em exploração e às técnicas que
presidem a esta exploração). Determina em parte, mas segundo outro ritmo, a
evolução das ideias “Em relação à economia está atrasado o social”, escreve
Ernest Labrousse, “e em relação ao social, o mental”. [LABROUSE, E: Prefácio à tese de George Dupex] (SOBOUL, 1975, p.38)
No
entanto, em nome do rigor teórico-metodológico, não há como estudar as relações
entre as classes sociais sem uma análise detida do modo de produção em que se
inserem, pois os indivíduos vão se “configurar” como pertencendo ou não a uma
classe social fundamental a partir da compreensão das relações sociais de
produção que moldam um determinado bloco histórico. O conceito de modo de
produção, a ser inserido, é fundamental para aplicarmos a ideia de estrutura
social na busca de uma lógica do processo sócio histórico.
Referências.
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa, Presença, 1976.
CARDOSO
Ciro & BRIGNOLLI Hector Peres. Os Métodos da História. Rio de
Janeiro, Graal, 1979.
HOBSBAWN, Eric J. De la historia social a la
historia de la sociedad. In Daedalus – Journal of the American Academy
of Arts and Science- vol. 97, n° 1, pp. 61-94, 1971.
SOBOUL, Albert. Descrição e medida em
história social. In SOBOUL et al A História Social: problemas, fontes e
métodos. Lisboa, Cosmos, 1975.
[1] Publicado originalmente em Contra a Corrente – Revista
Marxista de Teoria, Política e História Contemporânea, Ano 3, N. 5, pp. 65-66. ISSN
1984-5898. Brasília, Centelha Cultural – CEPESB: Centro de Estudos e Pesquisas
Sociais de Brasília, abril / 2011.
[2]Doutor em Sociologia pela Universidade
de Brasília e Professor Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz.
[3] Tradução nossa.
[4] Tradução nossa.