Conhecimento sócio histórico e o conceito de modo de produção.[1]Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[2]
Existe uma sensação
de mal-estar na cultura, atualizando o diagnóstico feito por Sigmund Freud no
início de 1930 para o fim de século 20 com mais elaboradas pinceladas. Porém,
existe também um “mal-estar em teoria e com teoria” no domínio das ciências
sociais, particularmente com teorias que, seguintes nos passos da tradição
clássica, persistem em seu empenho para explicar o movimento de sociedade como
um todo. No atual ethos ideológico, dominado por uma intoxicante combinação de
pós-modernismo e tecnocrascismo neoliberal, teorias sobre sociedade levantam o
aborrecimento e às vezes até o desdém de muitos cientistas sociais. As teorias
caíram em vergonha, e qualquer novato ou diletante se parece corajoso o
bastante para denunciá-las, citando a acusação inevitável que elas são nada
além de grandes narrativas obsoletas do século XIX para estar em algum museu
bolorento [3] (BORON, 1999, p. 47).
A
indignação do argentino Atílio Boron nos motiva a revisitar um conceito que é
básico para uma reflexão sobre a possibilidade de compreensão do processo sócio
histórico.
Afinal,
ainda presenciamos, no ambiente acadêmico contemporâneo, uma hegemonia teórica
neopositivista sobre o caráter da realidade social, que “deixou” de ser capitalista (categoria analítica
utilizada pelos autores clássicos da Sociologia, como Marx, Weber e Durkheim)
para ser “industrialista”, ou “pós-industrial”, ou “moderna”, ou “pós-moderna”?
Com o fim do “socialismo real”, soaram-se as trombetas dos novos ideólogos apregoando
o fim da luta de classes, da centralidade do trabalho, das ideologias e da
própria História. A realidade social não seria mais (ou nunca teria sido?)
passível de uma explicação em sua dimensão de totalidade; deveríamos nos
contentar com enfoques micros sociológicos, para, pelo menos, estabelecermos
“um olhar” a mais na pluralidade dos individualismos metodológicos presentes na
chamada explosão de paradigmas.
De nossa parte, em artigos
anteriores, buscamos conceituar o que entendemos como conhecimento sócio
histórico:
A missão e o
sentido da ênfase em um enfoque sócio histórico do conhecimento são (...)
propiciar o desenvolvimento de uma percepção crítica, científica, do papel do
indivíduo enquanto ator social e sujeito ativo da história, contribuindo
substantivamente para a construção de laços de identidade, consolidar a
cidadania e fazer avançar a radicalização da democracia. O posicionamento
diante de fatos presentes ganha argumentos e embasamento científico a partir da
interpretação de suas relações com o passado (GAMA, 2010, p.82).
E, a partir de autores como
Eric Hobsbawn e expoentes da História Social, introduzimos a ideia de estrutura
social, pois:
O
conhecimento sócio histórico (...) parte da premissa que a ideia de estrutura
social é fundamental, do ponto de vista epistemológico, para uma compreensão
mais profunda e complexa do processo social e histórico, em busca da lógica de
seu desenvolvimento, constituindo-se em um avanço científico sobre as
perspectivas historiográficas meramente episódicas e personalizadas, ou
rigidamente datadas, fragmentadas, lineares, ingênuas ou ideológicas (GAMA,
2011, p.65).
Concordando
com Albert Soboul, tratando-se do estudo das estruturas sociais, o critério
mais seguro e mais válido não seria o das relações entre classes sociais?
Refere-se ao elemento mais permanente e mais
profundo da atividade humana; o trabalho e a produção. Explica a totalidade de
uma formação social e a sua relatividade espacial e temporal, estando ele
próprio ligado à evolução das forças produtivas (isto é, ao mesmo tempo ao
número dos homens, aos recursos postos em exploração e às técnicas que presidem
a esta exploração)
(SOBOUL, 1975, p.38).
No entanto, em nome do
rigor teórico-metodológico, não há como estudar as relações entre as classes
sociais sem uma análise detida do modo de produção em que se inserem, pois os
indivíduos vão se “configurar” como pertencendo ou não a uma classe social
fundamental a partir da compreensão das relações sociais de produção que moldam
um determinado bloco histórico. O conceito de modo de produção, portanto, é
fundamental para fazermos uso da ideia de estrutura social na busca de uma
lógica do processo sócio histórico, revitalizando a construção de um
conhecimento crítico e dialético que se proponha a abarcar a totalidade das
relações sociais.
O conceito de modo de produção.
Philomena Gebran (1978) faz a didática e pertinente distinção entre “modo
de produção de bens materiais”, que se refere apenas à estrutura econômica da
sociedade, e o de modo de produção, que abrange a totalidade social, perfazendo
uma estrutura global formada, basicamente, por três dimensões da sociedade:
econômica, jurídico-política e ideológica. Marta Harnecker assinala o
significado do conceito de modo de produção na teoria de Marx sobre a gênese e a
lógica do capitalismo:
O modo
de produção capitalista enquanto produz bens materiais, reproduz as relações de
produção capitalistas, e, ao mesmo tempo em que reproduz essas relações,
reproduz suas condições de existência superestruturais, isto é, as condições
ideológicas e as relações de poder, assim como o papel que desempenham dentro
da estrutura social[4] (HARNECKER,
1971, p.142).
Dada à premissa de Marx que a dimensão econômica é determinante, em
última instância, das demais dimensões da sociedade na estrutura global do modo
de produção, encontramos embutida no próprio conceito o significado de uma
lógica materialista do processo histórico pautada no princípio dialético de uma
realidade em movimento e em construção. Afinal, para Marx, “são os homens que
fazem a História, mas em condições sociais determinadas”.
No entanto, como oportuna e precisamente observa Eduardo Fioravante
(1978), a determinação, em última instância, da estrutura global pelo econômico
não significa que o econômico detenha sempre o papel dominante. Não devemos
confundir estes dois termos (determinação em última instância e papel
dominante), pois implicam concepções totalmente distintas. Se a unidade que
constitui a estrutura dominante implica que todo modo de produção tenha um nível
ou instância dominante, o econômico é determinante apenas na medida em que
atribui a esta ou aquela instância o papel dominante. Assim, prossegue
Fioravante, o próprio Marx nos indica como, no modo de produção feudal é a
ideologia – sob sua forma religiosa – que detém o papel dominante, que, por sua
vez, está rigorosamente determinada pelo funcionamento da estrutura econômica
própria deste modo de produção.
Portanto, embora a infraestrutura econômica seja a determinante, ainda
que “em última instância”, em todos os modos de produção que existiram ao longo
da História, nem sempre ela aparece como tal e os elementos jurídico-políticos
ou ideológicos, que formam a superestrutura, assumem a representação da
dominação. Concordando
com a interpretação de Fioravante, Gebran (1978) ressalta que isto se dá pela
inter-relação dialética existente entre as várias estruturas, permitindo que
umas ou outras se sobressaiam mais em determinados momentos históricos, e
possam ser detectadas como as que dominam todo um período.
A concepção materialista da história estuda as estruturas das sociedades
em diferentes épocas históricas e as inter-relações dialéticas na sucessão
descontínua dos modos de produção. Esta concepção de descontinuidade foge à
concepção hegeliana da História, onde a noção do tempo histórico é uma noção
ideológica, uma continuidade homogênea não existindo cortes radicais ou
rupturas entre as “etapas” históricas. Em A
Ideologia Alemã, Marx afirma que esta concepção hegeliana “(...) não
explica a prática e depois a ideia, mas explica a formação das ideias e depois
a prática material” (MARX & ENGELS, 1968, p.70). Em suma, para Marx,
trata-se de colocar a dialética hegeliana de “cabeça para baixo”, ou seja,
emprestar-lhe um significado materialista. Em suas palavras,
Na
produção social de sua existência os homens entram em relações determinadas,
necessárias, independentes de sua vontade. Estas relações de produção
correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais. O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica
da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma sociedade, a base real
sobre a qual se eleva uma superestrutura econômica da sociedade, à qual
correspondem formas sociais determinadas. O modo de produção da vida social,
política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina a
realidade; ao contrário, é a realidade social que determina sua consciência
(...)[5] (MARX, 1970, p.36-38).
As
desventuras e venturas históricas de um conceito.
Ainda que Eduardo Fioravante acentue o avanço de Marx sobre Hegel, no
sentido que “(...) do critério da periodização da história a partir da evolução
dialética da ideia, passamos ao critério da periodização da História a partir
da evolução dialética da economia” [6] (FIORAVANTI, 1974, p.13), Mauro Castelo
Branco de Moura observa que
Tendo
sido empregada apenas en passant
pelos fundadores da teoria científica do comunismo, a expressão “modo de
produção” jamais assumiu foros de conceito rigoroso na obra de Marx ou na de
Engels. (...) Em Lenin, salienta-se o emprego preferencial do conceito de
“formação econômico-social” em acepção que abrange o conteúdo daquilo que se
costuma designar pela expressão “modo de produção” (MOURA, 1984, p.1).
Vai ser no período
estalinista que se observa o obscurecimento da interpretação do pensamento de
Marx, de ciência do caráter estrutural da sociedade capitalista à ideologia
justificadora de pragmatismos políticos conjunturais.
O dogmatismo tem seu apogeu
em Sobre o Materialismo
Histórico e o Materialismo
Dialético, publicado em 1938, pois a partir desta obra “que se consagra” a expressão “modo de produção”, “(...) porque
é em torno à periodização histórica difundida, principalmente, a partir de Stalin, a concepção
unilinear dos cinco estágios, que se desenvolve toda a polêmica referente aos
‘modos de produção” (MOURA, 1984, p.2), na medida em que “A história conhece
cinco tipos fundamentais de relações de produção: o comunismo primitivo, a
escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo” (STALIN, 1972, p.118)[7].
Ciro Cardoso e Hector
Brignolli analisam que, ao mesmo tempo em que no referido trabalho se
estabelecia serem cinco os estágios característicos do desenvolvimento
histórico, Stalin os considerava, expressamente, como “tipos fundamentais de
relações de produção”. Fundamentais e, consequentemente, não únicos; mas, na
prática, eram tidos como uma lista exaustiva das etapas que todas as sociedades
humanas devem atravessar em seu desenvolvimento, de modo evolutivo e unilinear.
Admitiam-se algumas exceções, mas estas não alteravam a regra básica:
relacionavam-se apenas à possibilidade de certos povos “saltarem” uma ou mais
etapas, sob a influência de sociedades mais desenvolvidas:
A
versão do materialismo histórico, aceita então, transformou-se – pelo emprego
do esquema unilinear de cinco etapas – em uma vulgar filosofia da história, uma
entidade metafísica que determinava, do exterior, o curso do devir histórico,
não restando outro remédio aos dados concretos entrarem, bem ou mal, no dito
esquema (CARDOSO & BRIGNOLLI, 1979, p.25).
Ademais, a versão de Stalin suprime o modo de produção asiático, mencionado por
Marx, por exemplo, no Prólogo de 1859 da Crítica
da Economia Política: “Réduits à leurs grandes
lignes, les modes de production asiatique, antique, féodal et burgeois moderne
appataissent comme des époques progressives de Ia formation économique de la
societé” (MARX, 1977, pp. 273-274).
Nem a publicação dos Grundrisse
(1939-40), com o estudo de Marx sobre as formações pré-capitalistas, conseguiu
deter o avanço da concepção unilinear. Política e ideologicamente, interessava
a Stalin a manutenção do estalinismo enquanto tendência dominante no seio do
movimento comunista internacional, e sua “teoria” era-lhe útil para afirmar a
tese da “construção do socialismo num só país”, no caso a URSS que dirigia, e
impor a Terceira Internacional a diretriz universal de aliança do proletariado
com as burguesias nacionais para a maturação dos capitalismos locais,
“pré-requisito” para uma “posterior” revolução socialista.
A versão
dogmática estalinista “(...) só veio a ser fortemente contestada ao final da
década de cinquenta, com a retomada da discussão em torno ao ‘modo de produção’ asiático, trazida à tona outra
vez, entre outras razões, pela publicação do polêmico livro de Wittfogel O Despotismo Oriental” (MOURA, 1984, p.2), pois, ainda
que a polêmica à respeito da transição do
feudalismo ao capitalismo “(...) envolvendo Dobb, Sweezy, Takahash e outros,
preceda em alguns anos ao livro de Wittfogel, a discussão sobre a forma
‘asiática’ (...) tendeu a conduzir o debate a um questionamento mais profundo
do esquema unilinear de sucessão dos ‘modos de produção” (MOURA, 1984, p.2).
O grande
debate gerado sobre as sociedades asiáticas, não ocidentais, que se estende, desde o princípio, à análise do
continente americano e às sociedades pré-colombianas, abre espaço a uma intensa
polêmica sobre as sociedades pré-capitalistas:
O pano de fundo do debate, como em outras ocasiões, foi a caracterização da revolução socialista
em países que não obedeceram ao modelo
clássico da Europa 0cidental. Ao nível teórico entra em crise o modelo da sucessão universal e linear de
“modos de produção”, interpretação dominante, de forma quase exclusiva, durante
mais de duas décadas. Essa irrupção de diferentes modalidades de conceber o
processo histórico coincide, se excetuarmos, talvez, a vertente trotskista, com
a quebra do monolitismo do movimento comunista internacional. A multiplicação
de partidos e movimentos de inspiração marxista foi acompanhada pari passu pela diversificação das interpretações, a nível teórico, sobre o processo histórico,
tanto em relação ao passado, quanto às
características de um hipotético devir revolucionário (MOURA, 1984, pp.2-3).
Ao nível teórico-acadêmico, a discussão sobre o modo de produção asiático
é de suma importância. Trata-se de buscar analisar formações sociais distintas
do continente europeu em sua porção ocidental, berço do modo de produção
capitalista industrial e que, ao longo do tempo histórico, experimentou, em
linhas gerais, o desenvolvimento dos modelos clássicos de modos de produção:
comunismo primitivo, antiguidade, escravismo, feudalismo e capitalismo.
O modo de produção “asiático” (ou estamental) é um modelo teórico que
busca compreender o enorme poder de manutenção de estruturas básicas
estratificadas ao longo do tempo histórico, como a sobrevida do sistema de
castas na Índia. Sua importância é demonstrar que o processo histórico de
desenvolvimento das estruturas sociais não obedece, necessariamente, a um
esquema pré-fixado rígido, evolutivo e unilinear, mas, ao contrário, é diverso,
plural. E que a chave de seu desenvolvimento deve ser buscada, também, em
fatores de ordem cultural, entendendo cultura como um sistema simbólico
construído pelas comunidades em sua interação com o meio ambiente, que é
diversificado. Daí poderia, inclusive, inferir uma explicação para a
conservação das estruturas sociais igualitárias de comunidades indígenas
isoladas que, na América do Sul, se mantêm, dadas sua harmonia com o ambiente,
no modo de produção do comunismo primitivo.
O antropólogo ecológico marxista Maurice Godelier, por exemplo, em Sobre as Sociedades Pré-Capitalistas,
aponta que a contradição interna do modo de produção asiático é a coexistência,
ao longo do tempo, de estruturas comunitárias e de estruturas de classe, pois o
processo histórico conjuntural passou na maioria dos povos de uma sociedade sem
classes para uma sociedade de classes, mas a conjuntura por si só não é
suficiente para explicar as transformações internas da sociedade
(GODELIER,1976). O historiador Pierre Vilar, adentrando a discussão, ressalta
que “As modificações de estrutura são muito mais importantes e constituem o
objeto mesmo da história e da ciência econômica organicamente ligada” (VILAR,
1974, p.133), e Philomena Gebran observa que, nesse chamado modo de produção
asiático, as transformações só se tornam clara através da compreensão das
contradições internas que conduzem às modificações estruturais, desenvolvendo
assim, em seu interior, a desigualdade que elimina a vida comunitária, tanto no
que diz respeito à cooperação do trabalho como a dos laços de parentesco. Por
seu turno, Eduardo Fioravante acentua que:
O não
desenvolvimento da contradição interna implica, pois, na estagnação, e este é o
caso das sociedades dirigidas por uma forma do Modo de Produção Asiático (...).
Na medida em que a exploração das comunidades pelo Estado se faz através da
acumulação de uma renda em produtos, a estrutura de produção pode
estabilizar-se por haver estímulo ao nascimento de um mercado que passa a ser a
causa de uma produção de mercadorias em grande escala para a troca (FIORAVANTI, 1974, p. 13).
Em suma, é rompida a interpretação
monolítica estalinista do processo histórico, com o processo de passagem de um
modo de produção a outro buscando ser compreendido pela contradição entre as
antigas relações de produção e o desenvolvimento das novas forças produtivas
que se estendem a nível global, como bem observa Gianni Sofri, sobre a
controvérsia marxista sobre o modo de produção asiático:
O
Capitalismo nasce na Europa, por razões complexas, nas quais ao lado do antigo
modo de produção, importante papel é representado pela conquista, pela
dominação, pelo assassínio, pela rapina, em resumo, pela violência. Pelo seu
próprio caráter, que o leva a se expandir em escala mundial, o Capitalismo
acaba por modificar as condições e os ritmos de desenvolvimento de todos os
povos da Terra
(SOFRI, 1977, p.63-64).
Nossa tese.
Mesmo crítico do
marxismo, Fernand Braudel reconhece que “O gênio de Marx, o segredo de o seu
prolongado poder, provém de ter sido ele o primeiro a fabricar verdadeiros
modelos sociais a partir da longa duração histórica” (BRAUDEL, 1976, p. 70). A
nosso ver, como salienta Vygodsky, “o alto grau de
abstração, de generalização, da teoria de Marx é o que determina sua
vitalidade, a possibilidade de aplicá-la com êxito a circunstâncias que diferem
substancialmente daquelas nas quais foi criada a teoria”[8]
(VYGODSKY, 1978, p.70).
Nesse sentido
pode-se compreender a tensão teórica que o conceito de modo de produção incita:
Os modos de produção
coloniais da América, produtos de um processo histórico sui generis, não podem ser reduzidos àqueles modos de produção concebidos
em função da evolução mediterrânea-europeia e, secundariamente, asiática. Sua
definição e a análise de sua dinâmica pressupõe o estudo tanto da relação
colonial quanto das estruturas internas das formações econômico-sociais. Eles
se situarão em nível teórico distinto do de modos de produção como o feudalismo
e capitalismo, por exemplo. Na obra de Marx faltam exemplos do uso do conceito
de modo de produção em níveis teóricos diferentes; e o aludido admite,
claramente, entre os possíveis resultados de um processo de conquista a “ação
recíproca” entre os modos de produção postos em contato, produzindo-se “algo
novo”, “uma síntese” (CARDOSO & BRIGNOLLI, 1979, p. 102).
No
meio rural brasileiro, por exemplo, como observa José Vicente Tavares dos
Santos, em Colonos do Vinho, a
reprodução da força de trabalho familiar é coberta em sua maior parte pela
produção direta dos meios de vida, o que dispensa o dispêndio monetário para a
subsistência da família camponesa. Assim, o camponês absorve, através da produção
direta dos meios de vida e da utilização extensa da força de trabalho familiar,
os rendimentos negativos da sua produção mercantil. Pois se a família camponesa
não apresenta um rendimento monetário para cobrir sequer a sua força de
trabalho, na verdade está havendo uma transferência de sobretrabalho para o
conjunto do sistema produtivo e uma contribuição à acumulação capitalista
(SANTOS, 1978). Assim, o desenvolvimento capitalista provoca a ampliação das
contradições sociais, na medida em que chega a reproduzir o personagem não
especificamente capitalista do camponês. Desta feita, como afirma Maria Rita
Garcia Loureiro, em Parceria e
Capitalismo, a reprodução de relações de produção não capitalistas na
agricultura poderia ser explicada pela necessidade de superar a baixa
rentabilidade do empreendimento agrícola em relação ao empreendimento
industrial, devido ao processo de transferência de rendimentos via a
deterioração dos preços dos produtos agrícolas diante dos de origens
industriais. Ademais, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, em sua
dificuldade de gerar, além da renda da terra, o lucro para certos produtos
agrícolas (especialmente os gêneros alimentícios de primeira necessidade) tem
que recriar no campo o pequeno estabelecimento camponês, portanto relações de
produção que, embora apareçam na base da economia capitalista, não são
tipicamente capitalistas (LOUREIRO, 1977).
Em resumo, as formações sociais
dependentes apresentam regularmente estas três características (daí os seus
enormes desajustamentos e tensões internas): A) Combinações de distintos modos
de produção, capitalista e pré-capitalista; B) Sobreposição de fases distintas
no modo de produção capitalista; C) No interior deste, cada fase caracteriza-se
pela existência dum modelo de acumulação (dependente) que é dominante (MORAGA, 1977, p.17).
Portanto, compartilhamos da posição de Maurice Godelier que, desde
1964, insistiu em precisar certos aspectos essenciais dos conceitos de modo de
produção e formação econômico-social: 1) a natureza hipotética dos
esquemas marxistas de evolução das sociedades e, em geral, das condições
teóricas; 2) o caráter de modelo da noção do modo de produção, abstração
construída a partir do real, mas que o reduz a suas estruturas essenciais e só
permite colocar a evolução em termos de desenvolvimento das possibilidades e
impotências internas das referidas estruturas; e 3) a necessidade de provar a
validez dos esquemas hipotéticos ao nível da história concreta, cuja “infinita
variedade” deve permitir decifrar (GODELIER,
1976).
Em síntese,
nossa tese é que o conceito de modo de produção, enquanto modelo abstrato que
busca abarcar um determinado bloco histórico, na concepção gramsciana, tem o
sentido metodológico do tipo ideal weberiano, em que se busca a explicação da
realidade social em análise pela aproximação à construção teórica empreendida.
Seu paradigma teórico originário continua pujante, e deve estimular as novas
gerações de estudantes de Ciências Sociais e de História a resgatar a riqueza e
a complexidade da discussão histórica e seu potencial teórico, cujos parcos
contornos apresentamos nesse ensaio, apenas com a singela pretensão de darmos a
nossa contribuição à construção de um conhecimento sócio histórico, que faça a
crítica ao mundo da pseudoconcretidade em que o século XXI parece permanecer
mergulhado e adormecido (?).
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[1] Publicado originalmente em Contra a Corrente – Revista Marxista de
Teoria, Política e História Contemporânea, Ano 5, N. 9, pp. 62-67. ISSN 1984-5898. Brasília, Centelha
Cultural – CEPESB: Centro de Estudos e Pesquisas Sociais de Brasília, junho /
2013.
[2] Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília e Professor Titular da Universidade Estadual de Santa
Cruz.
[3] Tradução nossa.
[4] Tradução nossa.
[5] Tradução nossa.
[6] Tradução nossa.
[7] Tradução nossa.
[8] Tradução nossa.