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" O DIÁLOGO. É O ELO QUE FALTA "

CONHECIMENTO SÓCIO HISTÓRICO. HÉLIO FERNANDO LÔBO NOGUEIRA DA GAMA

Conhecimento sócio histórico.[1]
Hélio Fernando Lôbo Nogueira da Gama[2]

            Homens e mulheres só se reconhecem enquanto seres culturais datados ao longo de uma existência, integrantes de comunidades, sociedades e civilizações que, no percurso do tempo histórico, se adaptam e transformam a natureza, produzem cultura e manifestam o seu ver formativo de mundo. A todo o momento reproduzimos e construímos representações sociais da realidade que nos cerca, seja ela natural ou social. Até que ponto nossas concepções de ser humano, realidade, sociedade, Estado, família, educação, igualdade, elites ou classes sociais são frutos legítimos da cultura e da ciência ou distorções ideológicas (in)conscientes?
         Ao nível do senso comum, do conhecimento rotineiro, fragmentado e pragmático que utilizamos a todo o momento para nos situarmos em sociedade, tendemos a expressar nossa visão de mundo, do outro, de sociedade, de governo, a partir das informações que dispusemos e reproduzimos, em geral via a família, escola, amigos, credos religiosos, mídia, internet, etc. A partir desse caldeirão de informações fragmentadas do social e das nossas condições de existência e vivência - em especial quanto ao caráter de nossa inserção no mundo do trabalho - organizamos, cada um a seu modo, os dados que nos chegam pelas vias dos sentidos e construímos nossa opinião sobre eles.
A ciência histórica se distingue do conhecimento de senso comum – também denominado popular ou vulgar – pelo refinamento na maneira de coletar os dados documentais, organizá-los metodicamente e interpretá-los com a contribuição de outras ciências sociais, como a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política, a Economia e a Geografia. Cada uma dessas áreas de conhecimento tem o seu enfoque próprio, sendo que a História procura especificamente compreender as transformações pelas quais passaram as sociedades humanas ao longo do caminhar da humanidade no bioma Terra, isto é, ao longo do tempo, que não existe em si, como argumentou logicamente o filósofo Wittgenstein.
A dimensão filosófica do conhecimento científico das ações de homens e mulheres ao longo do tempo histórico reside no momento da interpretação dos fatos sociais pelo cientista. É o momento que, no uso das categorias analíticas, revela-se a perspectiva do pesquisador sobre o mundo; daí as diversas – e por muitas vezes, contraditórias – interpretações do passado, principalmente o recente. Diante desse problema epistemológico, em nome da pluralidade de paradigmas científicos legítimos de tentativa de captação da essência, o conhecimento sócio histórico enfatiza a postura, a perspectiva e um olhar que, ao mesmo tempo em que se propõe a recortar a dimensão da totalidade do fenômeno, por isso mesmo se percebe como uma interpretação possível dos fatos sociais e dos processos históricos, em que, particularmente, procuramos desenvolver a partir de uma matriz sistêmica, dialética e fenomenológica.
Já que a História trata do passado, para que estudá-la? Ela nos proporciona uma compreensão ou uma perspectiva de como era a vida de nossos antepassados e povos diferentes do nosso: como eles se organizavam, produziam e pensavam. É através da investigação do passado que podemos nos municiar intelectualmente, nos capacitar para uma compreensão científica do presente e da realidade social em que todos somos atores. Daí o significado político das interpretações históricas e a possibilidade de manipulação ideológica, distorcida, desse conhecimento, bem como, em seu reverso, a possibilidade deste servir como vetor de transformação e/ou manutenção social, enquanto escolha pessoal consciente, crítica, cidadã, democrática, conservadora e/ou revolucionária.
         A História não estuda os fatos históricos como meros fenômenos independentes e desorganizados, ela nos incita a decifrar uma lógica, um processo perceptível onde os acontecimentos expressam a sempre tensão entre manutenção e mudança, continuidade e ruptura - surgimento, apogeu e queda de civilizações, culturas e modos de produção.
         Numa perspectiva de tempo histórico de longa duração, a transformação é a essência da História; quem olhar para trás, na história de sua própria vida, compreenderá isso facilmente. Nós mudamos constantemente; isto é válido para o indivíduo e também para a sociedade. Nada permanece para sempre como está, e ao longo do tempo se percebem as mudanças.
         Eis por que se diz que o tempo, em uma perspectiva comparada, e, portanto, científica, é a dimensão da análise da História. O tempo histórico, através do qual se analisam os acontecimentos, não corresponde ao tempo cronológico em que vivemos e que é convencionado pelos relógios e calendários. No tempo histórico, podemos perceber mudanças que parecem rápidas, como os acontecimentos cotidianos, por exemplo, num golpe de Estado, cujo desenrolar acompanhamos pelos jornais. Vemos também transformações lentas, como no campo dos valores morais. O machismo, por exemplo, é um valor que impera na maior parte das sociedades que a História estuda; porém, no Ocidente, de um século para cá, surge um questionamento mais constante desse valor milenar que se dá, em grande parte, devido a uma participação maior da mulher no processo de produção e da revolução tecnológica, a pílula anticoncepcional que a possibilitou um controle sobre o próprio corpo.
         Assim, a caminhada que a humanidade faz explica muito sobre a própria humanidade; da mesma forma, o que uma pessoa faz explica muito sobre ela. É à caminhada da humanidade que damos o nome de processo histórico. Desde sua existência sobre a terra, os homens estão organizados em grupos e em relação com a natureza para extrair desta o necessário a sua sobrevivência e a da espécie, construindo a sua identidade cultural e a percepção de outros homens, povos e culturas. Dessa interação entre si, com a natureza e com os outros, acontecem os fatos – sociais ou não no sentido de Durkheim, os mitos, os vestígios, os registros, os fenômenos que constituem o objeto de estudos da História.
         Não há uma linha constante e progressiva de desenvolvimento na história da humanidade. Temos, ao mesmo tempo, hoje em dia, sociedades com formas de vida social primitivas, consideradas ainda no chamado período pré-histórico, como comunidades na Amazônia ainda não contatadas pelos “civilizados”, e sociedades com graus de desenvolvimento tecnológico que permitem explorações interplanetárias. Não se percebe, ainda como exemplo, uma linha constante e progressiva da passagem, a partir da Antiguidade, do trabalho escravo ao trabalho assalariado: a escravidão quase desaparecera na Europa Ocidental, durante a Idade Média, para reaparecer nas Américas – imposta pelos europeus na Idade Moderna – como forma de exploração máxima do trabalho alheio. Não se deve, portanto, identificar a ideia de processo histórico com uma ideia de progresso necessário.
         Dizer que o processo histórico é contínuo não significa dizer que ele obedece a um desenvolvimento linear: não é uma linha reta com tendência constante; incluem idas e vindas, desvios, avanços e recuos, inversões, etc. Há mesmo transformações que podem ser vistas como rupturas, pois alteram toda uma forma de viver em sociedade. É, porém, uma ruptura que foi lentamente preparada, que está sempre ligada com algo que já existia, pois é inadmissível historicamente o surgimento de uma situação nova sem ligação com as anteriores, sem um embrião, sem ter sido, de alguma forma, germinada.
         As alterações no processo histórico são decorrentes da ação dos próprios homens, os sujeitos da história. São os homens, constituídos em sociedade, que (in)conscientemente atuam para que as coisas se passem de uma ou de outra maneira, para que tomem um rumo ou outro.
         É preciso conhecer o presente e, em História, nos o fazemos sobretudo do passado – remoto ou bem próximo – levantando indagações, perguntas que nos interessam hoje para avaliar as suas significações e sua relação conosco. O passado nos interessa, hoje, pela sua permanência no mundo atual.
         A ligação da história com o futuro, porém, é mais sutil: não se pode falar em uma história do futuro. Qualquer colocação nesse sentido é mera especulação. Pode-se falar em tendências, probabilidades, possibilidades históricas, construções de cenários, mas não mais do que isso. Fazê-lo seria impor um esquema prefixado de como as coisas se devem passar, o que é impossível no âmbito da ciência reconhecida, pois seria mera ficção, um exercício de futurologia. A partir de um diagnóstico do presente, a história pode ajudar a delinear ações futuras; não mais do que isso; mas isso, em si, é extremamente importante, estratégico, em seu significado (geo)político, pois conhecimento – das tendências históricas – é poder.
         Ao explicar as transformações resultantes das ações dos homens a História leva a perceber que a situação de hoje é diferente da de ontem e procura esclarecer os “como” e os “porquês” disso. Para os que não sabem das alterações passadas, a realidade em que vivem pode parecer “natural”, “eterna” ou “imutável”, e como tal justificada. Isto leva a uma atitude passiva, a uma conformação, a atitudes de resignação, a uma percepção do mundo e da vida como predestinados. Ao contrário, o conhecimento das alterações passadas e a compreensão das condições das mesmas podem levar o cidadão e a cidadã ao desejo, a novas posturas e à atuação concreta em busca de outras transformações e mudanças, seja no plano pessoal ou no coletivo.
         A missão e o sentido da ênfase em um enfoque sócio histórico do conhecimento são, portanto, propiciar o desenvolvimento de uma percepção crítica, científica, do papel do indivíduo enquanto ator social e sujeito ativo da história, contribuindo substantivamente para a construção de laços de identidade, e consolidar a cidadania e fazer avançar a radicalização da democracia. O posicionamento diante de fatos presentes ganha argumentos e embasamento científico a partir da interpretação de suas relações com o passado.
         Em sentido último, refletir sociologicamente sobre a História de nosso povo e de nosso mundo possibilita nos tornarmos mais conscientes de nós mesmos e a formularmos, cada um a sua maneira, respostas às questões existenciais que atormentam a consciência e o imaginário coletivo da humanidade há milhares e milhares de anos: quem somos, de onde viemos e para onde vamos?



[1] Publicado originalmente em Contra a Corrente – Revista Marxista de Teoria, Política e História Contemporânea, Ano 2, N. 3, pp. 81-83, ISSN 1984-5898. Brasília, Centelha Cultural – CEPESB: Centro de Estudos e Pesquisas Sociais de Brasília, abril / 2010.
[2]Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Professor Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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