por Marcus Santana
< marcus.antoniosantanasantos@gmail.com >.
“Lembrem-se, os
deuses não se foram; eles abandonaram as cascas antigas, mas estão vivos e
passam muito bem em algum outro lugar.”
JAMES HOLLIS, Ph.D, formado pelo instituto C. G. Jung de
Zurich, na sua obra Mitologemas: encarnações do mundo invisível, trad. Gustavo
Gerheim, São Paulo: Paulus, 2005, p.159.
* * * * * * * * *
Começou como uma queda de pressão no ar em
meio àquela noite inesperadamente fria de julho. Os ventos cessaram. Caiu um
silêncio sobre as árvores e imperou uma inércia onde antes reinava a agitação
de seus galhos e folhagens. Quem podia, há muito já estava agasalhado, em casa,
e agora até as janelas trancava. Os carros passavam cada vez mais esporádicos.
As ruas desertas. Não se via estrelas no céu, apenas densas nuvens, cinzas e
até avermelhadas. E então o frio aumentou ainda mais. Parecia que a noite
estava prendendo a própria respiração, em suspense. Algo estava para acontecer.
Pouco depois, ouviu-se o estrondo da
trovoada. A tempestade chegara.
– Não acho que tenha sido uma boa ideia essa
reunião hoje à noite – disse o indivíduo alto e negro para o jovem indígena ao
seu lado, enquanto fitava a embarcação se aproximar do velho pier, na pequena
baía.
Junto com os relâmpagos e os trovões, através
das águas escuras e de estranhas neblinas, vinha um drakkar, um navio nórdico ou viking,
com três metros de largura, trinta metros de comprimento, duas fileiras de remos
laterais, uma vela quadrada e outra triangular com símbolos de raios azuis
sobre um fundo escuro e, na proa, a carranca de um horrível dragão marinho. No
interior do exótico navio-dragão, dúzias de tripulantes ainda mais exóticos.
–
Agora é tarde para se arrepender. Você me deu a sua palavra. Precisa
cumpri-la... Ajude-me, por favor, Ogum – falou o jovem índio.
– Se não tem jeito... Uma lástima que vocês
não tenham conseguido um transporte mais eficaz... Ou que alguém como Huracán
do México ou o Zu do Iraque não tenha vindo... Facilitaria muito as coisas... Mas
tranquilize-se. Farei minha parte. Espero que tudo dê certo, Tupã!
O drakkar
estacou de lado na frente do pier.
Em terra, fantasmas de escravos, mascates e
coronéis do cacau ainda perambulavam, repetindo o que outrora faziam quando
vivos, nos dias quase esquecidos em que aquele pier era um dos muitos do porto
fervilhante que ali havia, antes de aquela área, chamada de Dois de Julho,
tornar-se o mercado de abastecimento daquela cidade centenária, muito antes de
tanto o porto quanto o mercado serem transferidos para outras áreas, e aquela
zona, em um misto de elegância e decadência, cair pouco a pouco na obscuridade.
Os vivos estavam fechados em suas casas, tentando se proteger da tempestade
noturna, mas mesmo se estivessem naquela hora e lugar, nada perceberiam de
incomum. Talvez, os mais sensíveis, tivessem um ou outro arrepio.
Do remo-leme lateral da popa do navio-dragão,
um grandalhão com cabelos ruivos fez sua voz de trombeta ribombar:
– Deuses do Trovão à bordo! Vamos para a
última parada!
Chegara a hora.
Tupã e Ogum seguraram um o antebraço direito
do outro, em despedida. Tupã havia planejado tudo aquilo por muito tempo e com
muito zelo, e Ogum acabara convencido pelo amigo a ajudá-lo. Sua amizade era
bastante estimada por âmbos. Da dupla, por trás, se achegou um grupelho de
pouco mais de meia dúzia de indivíduos que até então estava distante do pier, a
conversar entre si. Os fantasmas não se aproximavam deles, pois tinham medo. Com
a chegada de sua condução, também esse grupo se preparava para embarcar.
Um deles era o orixá Xangô, o Justiceiro,
outrora o quarto dos reis lendários de todo o povo yorubá, nos dias do império
Oyó, que se situava entre o sudoeste da Nigéria e o sudeste de Benim, na África
Ocidental; sempre forte, altivo, o torso nu, a saia de vermelho vivo, munido de
seu Oxé, seu machado de dois gumes; e ao seu lado, a orixá Oyá, a mais amada de
suas três esposas, a quem gostava de chamar de Iansã, “mãe do entardecer”, de
vestes vermelho-alaranjadas e rosáceas, como o céu ao por do sol, munida de uma
espada cimitarra e de seu Eruexin, seu chicote de rabo de cavalo, impetuosa,
voluptuosa, tão valente e guerreira quanto seu esposo, âmbos com coroas e
braçadeiras de ouro. Juntos passaram à frente e entraram no navio-dragão. Eram
da mesma origem de Ogum, mas não lhe dirigiram o olhar, em razão de brigas
passadas que ainda não estavam bem resolvidas entre os três.
Logo após Xangô e Oyá, subiu à bordo um quinteto
que se assemelhava aos traços indígenas de Tupã, mas que também dele se
diferenciava. Eram mais como os kichwa ou os aymarás, os indígenas
sul-americanos que habitam na Cordilheira dos Andes, embora do tamanho e porte
de ogros, com pele azulada, e padrões tribais pintados sobre a pele. Todos os
cinco eram deuses incas do trovão. Os dois mais velhos tinham a pele já mais
próxima do tom cinzento que azulado, e usavam túnicas brilhantes: um era Catequil,
que alguns chamam de Apotequil, e o outro era Intillapa, que alguns chamam de
Katoylla e outros de Apu-Illapu, o qual já fora o principal deus do Reino
Colla, do povo aymará, antes que a península de Collasuyu fosse anexada ao
império Inca, também já há muito extinto. Os outros três, mais novos, que
usavam apenas tangas, eram filhos de Intillapa, e eram eles que puxavam pelas
rédeas cinco grandes lhamas que irradiavam uma serena luz estelar. Subiram todos
à bordo da embarcação levando, inclusive, suas montarias sobrenaturais.
A seguir veio Hinon, um ser antropozoomórfico
alado, chefe dos Thunders, o mais poderoso clã dentre os espíritos da
tempestade da mitologia indígena norte-americana dos nativos Iroquois. Voara,
com suas próprias asas, por vários dias e noites, através do Imanifesto, até chegar a este ponto de
encontro, esta noite, onde os deuses do trovão sul-americanos já estavam a
esperar. No caminho, fora ao planalto central meso-americano, na recôndita
morada de Huracán, o velho deus-serpente da tempestade na mitologia maia, que
alguns chamam de Bolom Tzacab, para uma tentativa derradeira de fazê-lo sair da
caverna, mas esse mais uma vez se recusou. Disse que “essas reuniões nunca
davam em nada”. Que “estava velho para viajar”. Hinon tentou animá-lo, afinal,
eram amigos de longa data. Mas Huracán mostrou-se ranzinza e irredutível. Hinon
veio sozinho e fora, afinal, o único dos deuses do trovão dos nativos da
América do Norte que se dispusera a participar do encontro.
Tupã fora o último a subir à bordo. Se
parecia com um índio tupi, recém saído da adolescência, esguio, bonito, a pele
morena, os olhos castanhos escuros, os cabelos lisos muito pretos não muito
curtos, com um grande cocar em que havia somente uma pena branca no centro acima
da fronte, ladeada por uma pena azul de cada lado, seguidas de penas amarelas
até o fim de cada lado da fronte e penas verdes para as laterais da cabeça. Tinha
no peito tatuado com tinta de jenipapo um mapa do Brasil. Trazia ao ombro um
arco longo e às costas uma aljava de setas. Como outros adornos, apenas um anel
de madeira de urucum e uma pulseira de sementes de pau-brasil. Estava
bastante nervoso, quando deixou Ogun no pier e entrou no drakkar, quando os olhares de todos se puseram sobre ele, mas tentou
se manter firme e sereno. Era o mais jovem dentre todos naquela embarcação, mas
fora o idealizador do grande encontro que ocorreria; era o anfitrião ali. Estavam
todos em sua casa.
Ogun não esperou o navio-dragão deixar o pier
para seguir seu rumo. Mal viu todos embarcarem, ele assobiou e seu cavalo, Embarr,
um belíssimo alazão de alvíssima brancura, veio a galope através da rua que
levava à Catedral próxima. Sem sela, nem estribo ou arreios, apeou e montou o
corcel, com desenvoltura, apesar dos armamentos medievais e da capa que usava,
em um movimento fluído. Uma vez com o seu cavaleiro a postos, o alazão partiu
em disparada, galopando em pleno ar, por sobre as águas e as neblinas, bem
acima do navio-dragão que zarpava, em direção à ponte que liga a ilha, a qual
serve de centro da cidade, ao pontal, no continente; situada no ponto em que os
rios encontram o mar. Ogun vestia por baixo da capa uma armadura completa,
prateada, reluzente e magnífica, e portava uma longa lança férrea de lâmina
vermelha. Com a sua montaria sagrada, capaz de correr até à Lua e retornar, sem
cansar muito, era um cavaleiro fantástico, inigualável.
Diante da ponte, à qual chegara pouco antes
do drakkar repleto de deuses do
trovão, que para lá também rumava, montado em seu corcel capaz de percorrer o
ar, Ogun ergueu a lança e exclamou com forte voz:
– Escutai!
Vede! Esta é lança de São Jorge! A matadora de dragões! Esta é Lúin Celtchair! A lança do Destino! Esta é Ar-éadbhair! A gloriosa lança
de Lugh! Desde que ela me foi confiada, com esta arma derrotei a muitas
criaturas vis! Com esta lança, na batalha do fim dos tempos, ferirei a besta do
apocalipse, o rubro dragão colossal de sete cabeças e dez chifres, a Serpente
Antiga, que provocou a queda do Paraíso dos Primeiros Pais da Humanidade! Esta
lança nunca me falhou, nem me falhará! É a derradeira lança da Guerra! Mas
também, com esta lança, já selei muitas vezes a Paz! Até com os últimos dragões,
para cuja destruição ela é ideal! A isso eu agora evoco! À aliança com os
dragões benevolentes! Pelo poder desta santa lança, chamo a vós, ó astuta! Ó
sábia! Venha de seu lar nas profundezas da Amazônia! Venha do seu reino no
fundo do Grande Rio! Venha, Boiúna, mãe das sucuris! Ó poderosa dragoa
ameríndia! Vinde! Guardiã da Natureza no Brasil! Venha agora! Cobra Grande!
E as águas abaixo da ponte se perturbaram.
Borbulharam como se fervessem.
E do ponto em que as águas dos rios e do mar
se confudem emergiu uma cobra descomunal, de dezenas de metros, com escamas lustrosas
de tom marrom-esverdeado e manchas pretas, e dela exalavam vapores, como se a
água não suportasse tocá-la sem evaporar. Embora tivesse sido chamada de Cobra,
ela não possuía o “capuz” das cobras, como a naja, nem tinha presas
inoculadoras de veneno. Era uma serpente constritora, mas muito maior, como se
uma titanoboa jamais tivesse parado
de crescer desde a pré-história. Sua cabeça era praticamente do tamanho do
corcel Embarr com o Ogum montado nele, e seu tronco era da espessura da
embarcação mais abaixo. Atrás dela, a ponte, e à frente dela o navio-dragão não
se mostravam tão grandes, e pareciam, em relação a ela, até um tanto frágeis.
Diante de seus grandes olhos amarelos, com pupilas em fenda, que pareciam arder
com a viva chama da inteligência, semelhantes a dois faróis na escuridão, Ogun,
impassível, a pouca distância dela, abaixou a lança, em sinal de paz. A Cobra
Grande olhou-o intrigada, viu a estranha embarcação e tripulação logo abaixo, e
lhe sibilou:
– Para que me convocas de tão longe a vir até
esta fronteira de meus domínios, espírito paladino? – Com sua imensa língua
bífida a farejar o ar.
No drakkar,
um alvoroço.
– Jörmundgandr! – Exclamou Thor, o grandalhão ruivo, no remo-leme, certo
de se tratar da demoníaca serpente marinha prole do deus trapaceiro, abismado
que até do outro lado do Atlântico as crias de Loki o perseguissem.
Os deuses do trovão se agitaram e se
preparavam para disparar seus raios, enquanto esbravejavam sobre uma armadilha
em terras estrangeiras e praguejavam nomes como “Leviatã”, “Hidra”, “Azi”,
“Zahak” e “Jiaolong”.
Tupã, porém, gritou mais alto que todos eles:
– Quietos! Acalmem-se! Não é um dragão que
vocês conheçam! Ela é brasileira! É Mbãetatá, a Cobra de Fogo! Não é maligna!
Ela vai nos ajudar!
A maioria dos deuses do Trovão se entreolhou
desconfiada. Muitos só haviam tido experiências ruins com dragões. Mas um ou
outro, como Hinon, o deus do trovão para os Iroquois, riu-se e disse para si
mesmo que seu velho amigo Huracán, o mais rabujento dos deuses maias, que
também era um dragão-serpente, realmente perdera uma ótima oportunidade de sair
de casa.
Ogun estava concentrado nos olhos da cobra
gigantesca.
Mesmo sendo um dragão benevolente, havia
protocolos. Era sempre bom ter cautelas. Não desviar o olhar. Transmitir
serenidade. Seguir as velhas tradições de respeito para com as serpentes.
Afinal, se uma entidade mística-espiritual daquele porte monstruoso lhe desse
um bote, daquela distância, iria ser provavelmente o fim do cavaleiro imortal e
até do seu cavalo sobrenatural.
– Cobra Grande, estamos todos em paz, aqueles
na nau abaixo e este que vos fala. – disse Ogun – Somos, tal qual tu mesma és, entidades
místico-espirituais divinizadas, com origem na fé de povos antigos, que, bem ou
mal, chegamos aos dias de hoje, às vezes como personificações das últimas
lembranças das culturas em que tivemos nossa apoteóse. Precisamos de sua ajuda,
apenas um pequeno favor, nada mais. Pois os que estão neste navio aesir seguem para uma Realidade
Circundante, um Mundo Mítico-Onírico próximo, que pode (ou não) existir do
outro lado da travessia, ao se passar por debaixo desta ponte. A grande maioria
deles jamais esteve lá e poderia se perder na miríade de Mundos Circundantes se
fizesse essa travessia por si. Tupã e eu, que já estivemos lá, poderíamos levar
um por um, mas ir e voltar assim, separadamente, seria até mesmo para nós algo
demorado e extenuante. Por isso, se você, que é o dragão benevolente mais
perto, pudesse usar seus dons, que todos os deuses-dragões têm, para abrir essa
passagem, grande o bastante para todos passarem de vez, o navio inteiro e todos
nele, para a Realidade correta, ficaríamos imensamente agradecidos!
A Cobra Grande assentiu, com o menear de sua
cabeçorra, e disse:
– Pode ser feito, mas alguém terá de pagar o
preço.
Ogun e Tupã mais uma vez se entreolharam,
mesmo à distância. Ogun procedeu conforme o deus tupi havia planejado, dizendo
à Cobra Grande:
– O preço – E Ogun apontou, devagar, com a
lança para a nau – Será pago por Tupã, o jovem deus do Trovão de seu próprio
panteão, ó, Mbãetatá.
A Cobra Grande olhou como que admirada para
Tupã, ao qual conhecia desde que fora concebido, cerca de meio milênio atrás, e
que vira crescer e se desenvolver, desde que era pequenino, um curumim, uma
mera ideia ou vislumbre de divindade. O olhar de resposta de Tupã era decidido.
– Pois bem. Se é o que desejam... Façam
passar o barco, com todos dentro, por baixo da ponte, sem demora – Falou a
Cobra Grande – O preço justo foi aceito e está pago e a passagem não ficará por
muito tempo aberta.
A gigantesca divindade feminina serpentiforme
ergueu a cabeçorra e, enquanto a balançava, soprou uma baforada de fogo que se
ergueu às alturas, como se incendiasse as nuvens tempestuosas, à medida em que
seu corpanzil imergia nas águas, no oscilar próprio das serpentes, até que as
labaredas cessaram, a Cobra Grande afundou completamente e as águas deixaram de
ferver e ela desapareceu inteiramente dali; de volta para o seu próprio reino.
Tupã, naquele momento, sentiu todas as suas
energias serem drenadas. Sua força se esvaiu. Seu vigor desvaneceu. Sua
juventude lhe deixou. Onde antes estava o mais jovem alí, restava agora um
velho índio, talvez um dos mais velhos no barco, repleto de rugas, arqueado,
com até o último fio de cabelo grisalho. Xangô o segurou pelo braço, por um
lado, e Oyá o segurou pelo outro lado, para que Tupã conseguisse se manter em
pé. Estava exaurido.
Diante da embarcação, o ar entre as pilastras
embaixo da velha ponte tremeluziu. O Imanifesto
da Realidade central em que estavam se abria para alguma Realidade periférica,
o mundo em que Tupã queria fazer o congresso.
Ogun, aliviado de que sua parte no
plano fora executada a contento, cavalgou para mais perto do navio-dragão e
passou por ele, em direção ao pier, velozmente, dizendo, na passagem pela
embarcação, em alta voz:
– Agora é contigo, Tupã ! Deuses do
Trovão, a todos um bom Simpósio!
E logo Ogun e seu corcel, Embarr,
estavam na margem.
Os deuses do Trovão ainda estavam estupefatos.
Mas era preciso avançar, antes que a passagem se fechasse.
O drakkar
seguiu adiante e atravessou por baixo da ponte.
Um relâmpago rasgou o céu.
As chuvas desaguaram.
E pouco após os trovões rugiram, como se
montanhas de ferro fossem arrastadas através do firmamento; mas o barulho
minguou, ficou para trás.
Do outro lado da ponte, além da passagem, na
nova Realidade, não havia tempestade, nem noite, nem barulho.
Era uma manhã ensolarada; o céu límpido, o
mar verde-azulado.
– Maldição, Tupã! – Ralhou Thor, lá do fundo
do barco – Se você me houvesse dito que algo assim seria necessário, eu teria
insistido mais com meu pai, Odin, até ele me autorizar a zarpar de Ásgard com Naglfar! Aquele maldito navio feito todo
de unhas das mãos e dos pés de defuntos pode até ser mórbido e nojento, mas
também pode atravessar as fronteiras entre quaisquer mundos! Se tivesse me
contado que pretendia algo assim, não o consentiria! Teríamos encontrado outro
jeito! Ou faríamos esta assembleia em outro lugar!
Tupã, velho, cansado, sorriu.
– Aquieta teu coração, deus do Trovão
nórdico! – disse Tupã, com os olhos quase fechando – O sacrifício precisava ser
feito. E está feito.
* * * * * * * * *
– Foi mesmo? Então foi isso que ele fez? –
disse o Grande Pai dos Tupis e dos Guaranis – Sabia que ele havia preparado
planos de contingência, mas não sabia deste em especial. Sagaz esse meu filho.
E corajoso também.
– Destemido ele é realmente, Yamandu – disse
Zeus – Mas também bastante temerário! Quase se destruiu só para nos trazer a
esta realidade.
Tupã, deitado na rede, parecia tão velho
quanto seu pai, Nhamandu, que alguns chamam de Nhanderuvuçú, o Pai Celestial do
maior e principal panteão indígena brasileiro, respeitado até pelas minorias
que não possuem panteão.
Nhamandu olhou para o seu filho caçula, ainda
inconsciente, e sorriu. Acariciou os cabelos grisalhos de Tupã em um misto de
carinho e orgulho; e respondeu ao seu camarada Zeus, o Pai Celestial do panteão
Olímpico:
– Tupã calculou os riscos. Tenho certeza que
Mbãetatá drenou dele apenas o estritamente necessário para abrir a passagem, e que
Tupã contava com isso. Se fosse qualquer outro, ela teria drenado mais,
guardado uma parte da energia para si como paga pelo serviço prestado. Mas a
Cobra Grande e Tupã se conhecem há séculos e sempre tiveram boas relações. E
foi graças a isso que ele subsistiu – Disse Nhamandu, sereno – Além do mais,
Tupã sabia que eu estaria aqui, a aguardá-lo, e que cuidaria dele. E que neste
lugar em especial ele poderia se recuperar rápido e bem como em nenhum outro.
Zeus franziu o cenho:
– Aqui realmente é um mundo paradisíaco. Mas
a que te referes quando dizes que aqui ele pode recobrar suas energias melhor
que em qualquer outro?
– Isso, deus do Trovão grego... – Disse Tupã,
despertando, a voz ainda embargada – É parte da exposição inicial deste
Simpósio, que logo devo fazer.
– Oh, Tupã, mal despertas e já quer tratar de
negócios! – gargalhou Zeus – Esse teu filho é muito sério, Yamandu! Pensei que
teríamos o resto do dia para comer e beber, e algumas ninfas para nos entreter
durante a noite, e que amanhã faríamos a tal reunião! Acabamos de chegar! Para
que a pressa?
Nhamandu ajudou Tupã a se erguer da rede.
Mais pareciam dois irmãos indígenas idosos do que pai e filho; passariam até por
gêmeos. E, dentre os dois, Tupã era o mais fraco e abatido, embora já estivesse
um pouco melhor do que naquele momento em que suas forças foram drenadas.
Daquela clareira onde estava a rede, entre
dois grandes coqueiros, aproximou-se Thor, sorridente. Pôs-se ao lado de Zeus,
vendo Tupã se erguer com a ajuda de Nhamandu, e, quem os visse, acharia que
Zeus e Thor também eram parentes, por serem ambos ruivos, fortes e encorpados,
embora Thor aparentasse ainda estar perto dos quarenta anos, e Zeus já
estivesse mais para os sessenta. De fato, até no temperamento Thor e Zeus eram
muito parecidos, e gostavam mesmo um do outro como grandes amigos e irmãos.
– Que bom que acordaste melhor, Tupã! – Disse
Thor – Estávamos todos preocupados! Agora sim, já podemos abrir os festejos! Os
deuses do Trovão estão maravilhados com as belezas daqui. Mas aguardavam
notícias sobre ti antes de explorarem esta nova Realidade e se deleitarem com
ela!
De pé, Tupã tentou caminhar sem ajuda, e,
mesmo, com dificuldade conseguiu. Nhamandu, Zeus e Thor estavam próximos caso
fosse necessário.
– Os deuses não devem se dispersar! – Disse
Tupã – Após terminarmos nosso Simpósio, todos poderão fazer o que bem
entenderem. Mas agora não temos tempo a perder. Devemos começar oficialmente
nosso congresso.
Zeus e Thor achavam graça de tanta seriedade
em um deus tão jovem. Na idade dele, não pensavam nem de longe em política e
formalidades. Mas admiravam o rapaz. Era uma façanha por si reunir tantos
deuses, tão cabeças-duras quanto os do Trovão, dos mais diversos panteões ao
redor do mundo.
– Muito bem, e para onde devemos pedir que
todos se dirijam? – Disse Zeus – Ou será na praia mesmo que se darão nossos
colóquios?
– Há um outeiro próximo, cujo cume está
preparado para recebê-los – Falou Nhamandu – Informem a todos que para lá
devemos seguir.
Tupã assentiu. Zeus e Thor concordaram. Foram
avisar os demais.
E para o alto do morro escolhido foram
aqueles deuses todos.
* * * * * * * * *
A visão a partir do cume daquele outeiro era
esplêndida. O sol da manhã aquecia sem incomodar, e estava radiante no céu. A
Natureza era exuberante. Mais que isso até. As cores em tudo eram tão vibrantes
que pareciam que iam ganhar vida própria e pular para fora das coisas que elas
coloriam. De lá do amplo cume, cerca de uma centena de metros acima do nível do
mar, viam-se as praias abaixo, os mares abraçando as terras, em um espetáculo
encantador. O drakkar estava ancorado
na pequena baía abaixo, onde não havia porto e nem pier algum. As montarias
sagradas e animais sobrenaturais trazidos pelos deuses do Trovão já haviam sido
alimentados e tratados por Nhamandu, que parecia ser dotado da onipresença ou
da onipotência, pois conseguia dar conta de tudo, providenciava tudo, sem nem
ser possível notar como fez tudo aquilo.
Diversos elementais brincavam nas águas, nas
matas e nos ventos. Quem olhasse distraidamente poderia até pensar que eram
animais comuns, voando na vastidão do céu azulado, cruzando a mata ou dando
piruetas nos rios e no mar, porém, olhando-se com atenção, via-se que eram mais
do que isso. Eram seres fantásticos, pura expressão das forças e energias
fundamentais da Natureza, tão extraordinária e majestosa nesta realidade. Tudo
era belo. E os deuses, sentados em círculo, em tocos de troncos e grandes
pedras polidas que faziam as vezes de banquetas, sentiam-se invadir por uma
imensa sensação de tranquilidade e bem-estar. Para deixá-los todos ainda mais à
vontade e confortáveis, Nhamandu havia providenciado bastante água de côco e um
banquete com diversas verduras e legumes cozidos, pirão, e variadas frutas
tropicais descascadas e bem cortadas para todos os deuses, todas elas
deliciosas, polpudas e suculentas.
Os deuses podiam ser sobre-humanos em muitos
aspectos de vigor, força e poder, mas eram bem humanos em todo o restante. Se
algo era gostoso para uma pessoa comum, certamente também o seria para os
deuses de sua crença, ao menos no mundo antigo. Os povos antigos acreditavam
que os deuses podiam mergulhar em tudo o que mais gostassem à vontade, sem
maiores consequências negativas, e experimentar aqueles prazeres e alegrias
indefinidamente, como os pobres mortais queriam tanto fazer e não podiam. Havia
assim uma projeção na esfera do divino daquilo que era o melhor das vidas
humanas de maneira não mais pontual e esporádica, mas abundante e eternizada.
Quem dos mortais podia viver assim também, afinal, vivia como um deus. Não era
tanto uma questão de ser hedonista, mas de saber viver bem, de saber aproveitar
o bom da vida. Os deuses é que sabiam viver.
Quando estavam todos acomodados, Tupã se
levantou e tomou a palavra para saudar a todos e lhes dar as boas vindas. E
depois iniciou:
– Meus caros convidados! Já sabem aonde
estamos?
Houve um silêncio na assembleia divina. Os
deuses podem ver através do Limiar das Manifestações, desde os Aspectos
Manifestos dos mundos até o Imanifesto
de cada realidade; podiam distinguir as composições energéticas, de energias
muito além das físicas, que compõem todas as coisas, inclusive os espíritos, os
sentimentos, a vida e a morte, o espaço e o tempo, e a magia.
– É como a Realidade central da qual proviemos,
mas sem as cidades, e quase sem pessoas, com elementais em vez de criaturas
animais; apenas a Natureza, no ápice de seu esplendor e harmonia – Disse Indra,
o mais antigo e sábio dos deuses do Trovão, com a aparência de um idoso monge
indiano de cabeça raspada e pele morena, bem enrugada, magro, alto e com quatro
braços, vestido numa túnica de cor vermelho-alaranjada sobre a qual caia uma
capa ou manto azul escuro – Mas este mundo não é uma versão mais diáfana ou espiritualizada
daquele nosso; a concentração de energias etéricas é basicamente a mesma, e a de
energias elementais, do Yin e do Yang é até um pouco maior. Menor é a razão de
energias taumatúrgicas e umbraicas, e a proporção de energias teúrgicas é bem
maior. Este é um mundo de matriz material quase como o dos humanos, mas feito
para ser sempre um paraíso.
A
análise de Indra fora precisa e houve um burburinho de elogios e reflexões
acerca das implicações do teor dessa fala do deus erudito.
– Deve ser a região paradisíaca em que minha irmã
e esposa, Hera, plantou seu jardim secreto para guardar a sagrada árvore de
pomos dourados que concedem a imortalidade que Gaia, a proto-deusa Mãe-Natureza
greco-romana, deu-lhe como presente de casamento, quando ela aceitou se casar
comigo; a misteriosa ilha ocidental vigiada pelas Hespérides, as deidades do
poente, e pelo grande dragão-serpente, Ladon, o multicéfalo – Disse Zeus, o
deus olímpico do Trovão – Ou talvez as Ilhas dos Abençoados ou Afortunados, em que meu pai Cronos colocou os Campos
Elísios, que jamais são tocados pelo inverno, como destino de recompensa dos mortais
mais nobres e puros.
– Talvez seja a Insula Pomorum, a ilha das árvores frutíferas, a que os bretões
chamavam de Avalon – Disse Taranis,
divindade céltica do Trovão – Também se diz que lá as fadas instalaram o seu
reino, o País do Verão. É um lugar encantando como este, para os de fora oculto
por misteriosas brumas.
– Pode ser Hy-Breasail, então, a ilha mítica do ocidente que é encoberta em
névoas exceto por um dia a cada sete anos, aonde só conseguem aportar os mais
dignos e poderosos – Disse Tuireann, deus do Trovão da mitologia irlandesa –
Ou, quem sabe, Tir-na-Nog, a terra da
eterna juventude, a “Terra do Nunca”, da qual provieram os Thuata dè Danann, meus antepassados.
– Também pode ser Gaawiki – Disse Kane-Haikili, deus havaiano do Trovão – Aquele
paraíso lendário de onde vieram, em grandes naus capazes de singrar o Oceano,
os antepassados dos maoris que
passaram a habitar as miríades de ilhas da Polinésia e depois povoaram a Nova
Zelândia e o Havaí.
A essas palavras, Tāwhirimātea, o deus neozelandês do
Trovão, e a sua esposa, Whaitiri, a deusa do Trovão na mitologia maori, de
imediato iniciaram uma salva de palmas,
que foi logo seguida pelos seus familiares ali presentes.
– Com todo o perdão, provavelmente deve ser Onogoro-jima – Disse Raijin, também
chamado de Raiden-Sama ou Kaminari-Sama, a divindade do Trovão na mitologia
japonesa xintoísta, um deus-demônio de pele avermelhada, dentes e garras
afiadas, longos cabelos brancos, e um tambor cuja menor batida produzia
estrondosas trovoadas, junto ao qual normalmente estaria Raijuu, a besta do trovão, um grande elemental híbrido de
eletricidade e de fogo na forma de um lobo azul e branco, de quem ele cuidava
como seu animal de estimação, mas que nesta hora brincava nas praias com as lhamas
estelares que serviam de montaria aos deuses incas – A ilha perdida de Onogoro foi a terra primal em que
Izanagi, nosso Grande Pai, e Izanami, nossa Grande Mãe, desceram do Takama-ga-hara, a Planície Celestial, lar
dos Amatsukami, os deuses sublimes, através da Ame-no-uki-hashi,
a Ponte Flutuante do Paraíso, para fazer nascer e consolidar o nosso mundo, por
meio de sua sagrada união sexual, produzindo por meio dela o mar, os rios, as
árvores, as montanhas e toda a Natureza, com suas forças elementais, das quais
a última foi o fogo.
– Este servo não quer discordar, mas tem
razões para crer que muito possivelmente devamos estar em P'eng Lai Shan,
a ilha paradisíaca jamais vista pelos humanos aonde habitam os imortais – Disse
Lei Gong, divindade do Trovão na mitologia chinesa taoísta, cujo aspecto
amedrontador tinha uma face azul, com bico de pássaro, asas de morcego, garras,
assim como sua esposa, que o acompanhava, Dianmu, também conhecida como Lei Zi,
a deusa do relâmpago – Ou talvez seja Fu-Sang, ou a terra encantanda de Xuan Pu, ou quem sabe Yao Chi, a morada dos deuses, onde
reside Yaochi Jinmu, também chamada de Xī Wáng Mŭ , a Rainha Mãe do Oeste, que
cultiva o sagrado pessegueiro que a cada três mil anos produz um pêssego que
concede a imortalidade, e distribui a prosperidade, a longevidade e a
bem-aventurança.
O comentário de Lei Gong foi levado muito a
sério pelos representantes dos Imperadores do Trovão e Generais do Trovão, que
existiam em número de pelo menos 12 para cada ponto cardeal, mas não puderam
vir todos, então, enviaram apenas uma pequena delegação como sua representativa.
Zeus e alguns outros ali também estavam convictos de que em algum ponto destas
regiões de paraíso havia alguma divindade cultivando alguma Árvore da Vida.
– E porque não, a misteriosa terra de Buyan? – Disse Perun, deus eslávico do
Trovão e Pai Celestial do panteão russo – Ela é capaz de afundar e emergir nas
águas do Oceano, jamais duas vezes no mesmo local! Lá nessa terra de paraíso e
riquezas é que têm origem todos os ventos e as chuvas!
Quando se viu, a maioria dos deuses já estava
em calorosa discussão. Pois cada qual já tinha suas respostas, em seus próprios
mitos, e não abria mão disso, e no ímpeto de se mostrar o único certo, não
escutava que, ao seu modo, todos estavam falando, sob diferentes aspectos, da
mesma realidade.
Enquanto isso, Tupã e Nhamandu se riam
consigo. E Indra observava sem se envolver, sereno, pois desde logo
compreendera a questão.
Aos poucos, os deuses foram se dando conta,
dos risos de Tupã e Nhamandu, da serenidade de Indra, e foram, um a um, notando
o que se passava e silenciando. O último foi Thor:
– Aqui é só uma interseção entre Midgard e Vanaheimr que eu ainda não conhecia! Um anexo do Valhalla! É isso! Ponto final!
E então até ele se deu conta que todos já
estavam em silêncio, e que a continuidade daquela discussão não tinha mais
qualquer sentido.
– Creio que ninguém aqui está totalmente
errado, meus caros deuses do Trovão... Nem o Thor! – Disse Tupã, com gracejo,
provocando breves risos. – Esta é uma realidade mítico-onírica na periferia daquela
realidade central de cujo Imanifesto todos
nós viemos. O acesso a esta realidade é mesmo bem complicado, muito mais
restrito do que nas demais realidades nesta Dimensão, exceto de tempos em
tempos, quando se sobrepõe ao nosso mundo. A geografia nesta realidade é igual
a daquela da qual viemos, mas totalmente dominada pela Natureza, pela magia,
pelas forças elementais. O tempo no mundo do qual
viemos passa relativamente bem mais rápido do que neste mundo aqui, por isso, não podemos perder tempo nestas paragens. Vamos aproveitar
bem o nosso tempo! Porém, aqui o fluxo de energias vitais e místicas do tipo que
alimentam a magia divina é mais intenso do que na nossa realidade central, e
isso permite que até um ser mortal possa viver aqui como um imortal, quanto
mais deuses como nós!
– Cada um de vocês atribuiu a este mundo os nomes
pelos quais considera que ele é conhecido em sua própria mitologia, e
interpretou esta realidade à luz de sua própria cultura. E todos fizeram isso
muito bem. – Prosseguiu Tupã, e, à medida em que falava, envolvia a todos na dinâmica
de sua fala, animava-se, demonstrava que se sentia mais seguro e auto-confiante
e parecia até que rejuvenescia – Os povos de cuja crença meu pai e eu extraímos
nossa divindade sempre chamaram esta realidade de Yby marã-é’yma ou Yvy marã-e’ỹ,
a “terra sem males”, ou a “Terra sem Mal”. Alguns feiticeiros ermitões desses
povos, os Caraíbas ou Karaís, conseguiram chegar a esta
realidade e voltar para anunciá-la. Desde então, membros de diversas tribos de
nossa gente conseguiram passar para cá e se estabelecer aqui e ali, e nós viemos
junto. Também há aqui alguns elfos, gnomos e outras fadas por aí. Mas todas
esparsas. Se andar bastante, pode-se topar às vezes com um sátiro ou caipora.
Mas aqui tudo ainda é essencialmente despovoado. E os que aqui habitam só
possuem o caminho de se integrar completamente com a Natureza; na verdade, não
são capazes de deixar essa comunhão. Foi assim que constatei que este é o
paraíso terreal referido no Gênesis. Este é o Éden.
– Porque nos trouxe aqui, Tupã? – Indagou
Zeus – Para que tanto esforço de sua parte em nos reunir, e fazê-lo
especificamente nesta realidade?
Tupã não titubeou. E continuou a escancarar
os seus segredos:
– Descobri que esta realidade não é só um
mundo, mas também um deus – Falou Tupã, já rejuvenescido a meio caminho entre a
idade de seu pai e aquela que tinha antes de ser drenado – Esta realidade
inteira é viva, possui uma inteligência própria, e tem desenvolvido tantas interações
com os seres viventes das realidades próximas, tantas relações com o
inconsciente coletivo da humanidade, quanto qualquer um de nós, ou até mais que
todos nós. O Éden continua uma divindade tão potente quanto sempre foi porque sempre
soube se reinventar e me deu boas pistas de como nós também podemos fazer isso
e evitarmos o caminho em que infelizmente estamos de definharmos sem as
energias da crença para nos abastecer, até perecermos no esquecimento...
Houve exclamações admiradas; um burburinho
rapidamente contido.
– Então devemos acreditar nisso, Tupã? Os
deuses do Trovão podem crer nisso? – Disse Teshub, deus do Trovão na mitologia
hurrita, que tinha um aspecto meio pedregoso e empoeirado – Que o mais
inexperiente dos deuses que aqui se encontram foi o que achou a resposta para o
grande mal que há séculos aflige a nossa estirpe? Veja bem, isso é difícil de
acreditar, até quando um deus é quem diz para outro... Mas creio que tu mereces
dizer... E todos merecemos o escutar! Até porque praticamente nada temos a
perder nessa questão... Em especial quando recordo o que houve com o nosso
antepassado, Tarhunztwanna, o velho deus anatólico do Trovão, do qual ninguém
mais lembra direito... Ele ficou uns mil anos sem nem sequer ouvir o seu nome
ser corretamente pronunciado, e pereceu à míngua, até virar um monólito em
erosão... Não quero acabar como ele... Creio que nenhum de nós aqui quer isso!
Então... Fale, Tupã! Se podes nos ajudar, fale-nos logo como seria isso!
– Isso mesmo, Tupã – Disse Intillapa, um dos
velhos deuses incas do Trovão – Esclareça-nos! Se esta realidade-viva, se este
paraíso terreno, como dizes, é em si uma divindade, como conseguiu manter
consigo a força da crença que canaliza as energias que nos sustentam enquanto
deuses?
Todas as atenções estavam sobre Tupã, com
ansiedade.
Nhamandu ficou a observar, contente, como seu
filho se saía bem. Tupã tinha toda uma plateia de deuses predominantemente estrangeiros
e bem mais velhos que ele sedentos por escutá-lo. Realmente, seu curumim
crescera.
Após breve silêncio, Tupã declarou:
– Desde a antiguidade, esta divindade-paraíso
tem alimentado nos mortais um “misticismo cosmológico”, a ideia de que a
Natureza tem uma ordem e harmonia próprias, e que da contemplação disso se pode
extrair conscientemente os princípios que servem de base para a ética e para a
filosofia, e os alicerces da política e do direito; a ideia de que cada coisa
tem o seu lugar devido, o seu propósito no mundo, e que a felicidade é atingida
ao se inserir, enquanto um micro-cosmo, em perfeita sintonia nessa ordem e
nessa harmonia do macro-cosmo. Esse ideário acabava por estimular uma espécie
de crença intuitiva na Natureza enquanto algo completo, orgânico e divino.
– No campo filosófico-religioso, estimulou
principalmente o Panteísmo, a crença de que tudo e todos no mundo compõem uma mesma
divindade, que não é diferente da Natureza; a crença de que não há necessidade
de um deus pessoal, antropomórfico, criador, para conduzir tudo, mas que a divindade
deve ser algo imanente na totalidade do mundo, uma unidade abrangente e
auto-consciente, que se expressa de muitos modos, e por vezes possui ciclos e
transformações, mas que permanece essencialmente sempre a mesma, como uma
lógica intrínseca às leis naturais. Matriz de crenças essa que está bem
difusamente presente na base de muitas concepções místicas sobre o universo
eterno e cíclico, e de alguma cosmovisões mais filosóficas sobre as constantes
inteligíveis inerentes à realidade, e até de algumas visões de mundo mais
contemporâneas, que recorrem até a novas formas de poesia cientificista em seus
mitos, como as que se referem às flutuações quânticas no vácuo.
– Em tempos recentes, a divindade-paraíso se
renovou mais uma vez e encontrou sua nova fonte nas crenças que giram em torno
de certos valores e ideais da consciência ambiental. Não notaram pelo menos nas
últimas décadas a expansão súbita dessas crenças? De que é preciso se preocupar
com os ecossistemas e biomas, defender as espécies ameaçadas da extinção, buscar
formas de diminuir a emissão de gases que maximizam o efeito estufa e promovem
a aceleração do aquecimento global, evitar as queimadas, combater o
desmatamento, lutar contra a poluição do ar e das águas, minimizar o
desperdício de recursos naturais, reaproveitar, reciclar, reduzir a produção de
resíduos e lhes dar um tratamento adequado, investir em novas matrizes
energéticas mais limpas e renováveis, conciliar o crescimento econômico com a
preservação do meio ambiente para atingir um genuíno desenvolvimento que traga
mais qualidade de vida para as populações humanas, no presente e também para as
futuras gerações, repensar os estilos de vida predatórios e procurar em tudo
promover uma responsável sustentabilidade sócio-ambiental...
– Não é preciso acreditar no Jardim do Éden,
embora muitos realmente acreditem, e isso seja ótimo para essa
divindade-paraíso, mas se houver a crença ou ao menos a simpatia para com esses
ideais e práticas acima, esta realidade-viva e inteligentíssima, o Éden,
consegue se beneficiar disso. Essas foram até agora as suas principais táticas
para atravessar os séculos, sem perder a sua potência divina, e isso sem nem
entrar nos detalhes dos cientistas que dedicam suas vidas a investigar certos
aspectos da Natureza e nos artistas que louvam a Natureza em poemas, quadros,
músicas, filmes, etc.
– Esse é o segredo para os deuses
sobreviverem à pós-modernidade. Criatividade, ressignificação, versatilidade,
abertura e, sobretudo, unidade.
– Unidade? – Estranhou Hinon, deus do Trovão
para os Iroquois – Como assim? O Éden fez tudo isso sozinho, não? Porque
precisamos nos unir?
Tupã já não parecia velho; parecia um adulto
maduro, sem muitas rugas, sem cabelos grisalhos, bem mais forte e encorpado que
antes. Ele transparecia estar no domínio; era um líder-nato e ganhava pouco a
pouco a todos ali.
– O Éden sempre esteve mais ou menos
associado com as deusas-mães dos nossos panteões – Disse Tupã – Isso mesmo,
nossas esposas, amantes, irmãs, filhas e mães. As divindades femininas da
fecundidade, da fertilidade, da beleza, do amor, do sexo, da gravidez, dos
partos, da maternidade, das plantas e dos animais, da primavera e do verão, da
Natureza, da terra, das águas e das suas forças elementais, em cada uma das
nossas famílias divinais. Sim, elas
mesmas... E elas também estiveram aqui, nesta realidade-viva, secretamente,
como nós também estamos agora. Todas elas. Lá no ano de 1972. E aqui fizeram um
pacto sagrado e fundamental umas com as outras e com esta divindade-paraíso: de
que iriam ser leais ao arquétipo de Deusa-Mãe, respeitarem-se e amarem-se umas
às outras como se fossem elas mesmas e viver uma Unidade Arquetípica. Com isso,
elas desde então tem compartilhado com o Éden todas as energias da crença na
Mãe-Natureza, e naqueles ideais do ambientalismo, da sustentabilidade, etc.
Muitos tomaram aquilo com grande espanto.
– Unidade Arquetípica? – Balbuciou Thor – Mas
não pode ser! Isso é impossível! Não acredito que as Deusas-Mães de nosso
panteões fizeram isso!
– É verdade! – Exclamou Oyá, também chamada
de Iansã – Nossa mãe primordial, Odùduwà, que personifica para nós a divina
Mãe-Terra, recebeu de modo secreto o convite, em nosso panteão yorubá, para
integrar essa Unidade, a que Tupã se referiu, com as outras deusas supremas do
mundo, formando algo que ela nos explicou pela designação de Íyámi Oxorongá ou simplesmente Íyá Nla, que é essa comunhão espiritual
das “Grandes Mães”. Nossa matriarca, Odùduwà, então repassou secretamente o
convite para suas filhas, as Iyabás,
as orixás mães-rainhas, para que também fizessem parte desse pacto. Sei que
Oxum e Iemanjá aderiram a ele há tempos, e sempre insistiram para que eu também
fizesse parte desse pacto. Mas particularmente ainda não o aceitei.
O espanto de muitos deuses com essas palavras
de confirmação foi enorme, mas nenhuma reação foi maior do que a do próprio
Xangô. Ele olhava incrédulo e perplexo para a sua terceira esposa.
– Porque nunca me contaste isso, Iansã? –
Disse Xangô, totalmente embasbacado – Porque esconder isso de todos os demais?
– Estou contando agora, não estou? – Disse
Oyá, firme e senhora de si – Poderia continuar a nada falar. É assunto que,
afinal, só diz respeito às Deusas-Mães. Vocês, sejam meros homens mortais ou
divindades masculinas, acham que podem nos dominar e que sabem fazer as coisas
melhores que as mulheres ou divindades femininas, e não podem, e nem sabem! Nós
muitas vezes deixamos vocês se acharem os “maiorais” só para que parem de nos
importunar, vão se distrair com seus próprios assuntos e nos deixem fazer as
coisas como devem ser feitas. Desde que vocês tomaram as sociedades de nossa
mão, nos tempos mais antigos, convertendo-as do ancestral regime matriarcal,
que era então baseado no paradigma do cuidado mútuo e na comunhão com a
Natureza, para os seus muito inferiores sistemas patriarcais, erguidos à base
da competição e da conquista e da dominação predatória da Natureza, que esta
confusão está aí instaurada no mundo, e só fazia crescer. Ainda bem que, depois
de tantas eras, as mulheres voltaram a se emancipar e as deusas-mães se uniram
e resolveram tomar as rédeas da situação. Senão, a essa altura, já estava tudo
perdido. Confirmei com meu testemunho a fala de Tupã, mesmo correndo o risco de
ter traído minhas mães e irmãs, apenas para que vocês aqui entendam a
importância do que ele está tentando realizar. Sejam menos tapados e escutem-no!
Que ainda me decidirei se me sinto mais à vontade com os deuses do Trovão ou se
me junto mesmo às Deusas-Mães.
Xangô estava atônito. A fala de Oyá fora
atordoante para muitos outros.
– Tem mais, meus caros! Talvez nós estejamos
atrasados e sejamos mesmo algumas das últimas divindades que ainda não se
encaminharam para firmar entre os nossos semelhantes uma Unidade Arquetípica! –
Disse Tupã, ainda mais jovem, agora na plenitude de seu aspecto adulto – Eu
converso muito, com todos. Respeito, admiro e sinceramente aprecio escutar a
cada um, mortal ou deus, masculino, feminino ou dos gêneros transcendentes a
esse binômio; são todas e todos entes auto-conscientes, assim como eu dotados
de dignidade e fadados a tomar decisões e arcar com as consequências disso,
assim como eu expressões de combinações complexas de energias cósmicas, todos
nós iguais diante do mysterium tremendum
por trás do ser e do existir. E foi assim, conversando, que Y-îara, a “Mãe D’água”, confidenciou-me
sobre o pacto das Deusas-Mães, e, noutra ocasião, que Ya-ci, a divindade lunar que protege os animais, disse-me isso que
agora estou também a revelar, logicamente, após pedir e obter das duas a devida permissão. É bem
possível, meus caros, que, antes mesmo das Deusas-Mães, as divindades lunares
já tenham se organizado como uma Unidade Arquetípica desde 1969!
O espanto se misturava com uma série de
sentimentos conflitantes e se alastrava naquela assembleia sob múltiplas formas
de balbúrdia.
Então, Thor, com ar pesaroso, ergueu-se, fez
um gesto amplo, pedindo a atenção e a boa vontade dos ouvintes, e começou a
dizer:
–
Irmãos trovejantes, tenho algo muito sério a revelar também! Fui tomado de
assalto pelos rumos que este nosso Simpósio tomou, em especial após a fala
marcante da deusa yorubá do Trovão, a bela orixá Oyá, porque sei de outros
deuses que há muito já firmaram entre si essa Unidade Arquetípica a que o Tupã
aqui alude. Refiro-me às divindades marciais! Sim, aos deuses da Guerra! Oras,
meu irmão em armas e nas batalhas, Tîwas,
chamado por alguns de Týrr, o justo, filho do
sábio gigante do mar do inverno, Hymir, com o qual vivia na fronteira do céu, e
que mesmo não sendo um aesir se
tornou um dos mais admiráveis guerreiros de Ásgard,
capaz de sacrificar o próprio punho direito para que pudéssemos vencer o
terrível deus Fenris-lobo, foi quem me confidenciou que a primeira Unidade Arquetípica entre as divindades marciais do nosso
mundo remonta pelo menos ao ano de 1914, chegando inclusive a me convidar para
participar dela, em mais de uma ocasião.
Aquilo era um escândalo! Os
deuses do Trovão estariam mais de um século atrasados! Como estavam
ultrapassados, pensavam muitos ali!
– Escutem-me, irmãos trovejantes – Prosseguiu
Thor, fazendo sua voz tonitruante sobrepujar o vozerio da assembleia
consternada – Eu cheguei a integrar o pacto com
os deuses marciais por um breve período, entre 1929 e 1945, mas o deixei por
não concordar com o tipo de guerra que era estimulado. Fiquei sabendo, por
último, que essa unidade ficou rachada em duas grandes facções desde a época
que saí até 1989, quando se estilhaçou de vez. E que ela permaneceu a década
seguinte abandonada. Mas uma parte dela foi recomposta, mais recentemente, em
2001, pelos deuses da guerra mais malignos e terríveis dentre todos, que
almejam a deflagração da terceira guerra mundial em nosso mundo, liderados por
Fobos e Deimos, os filhos de Ares, os deuses marciais que propagam o Terrorismo.
Sei, ainda, que há um esforço em debelar essa liga do terror e recompor a
aliança entre os deuses da guerra menos sanguinários, esforço esse atualmente
liderado principalmente por Týrr, meu
irmão, o deus marcial nórdico, e Atena, a sábia deusa guerreira olímpica.
Depois disso, um tanto sem
jeito, o grandalhão ruivo viking
sentou-se meio desengonçado. Talvez houvesse falado demais, mas fora
necessário.
Tupã agradeceu aos deuses
pela generosidade em compartilharem aquelas informações e experiências tão
valiosas, e já ia avançar na questão do detalhamento de como funcionaria a
Unidade Arquetípica quando foi, para a sua própria surpresa, interrompido
delicadamente pelo seu poderoso pai.
– Acabou se tornando quase que um
confessionário este Simpósio, repleto de revelações impactantes! – Disse
Nhamandu – E peço perdão por me intrometer neste congresso de deuses do Trovão,
mesmo não sendo um de vocês, mas, como pai de Tupã, que o ajudou a
recepcioná-los todos, creio que possa falar brevemente. Caros deuses dos
fenômenos atmosféricos, que governais em especial sobre as tempestades e os
raios, realmente acredito que tenha chegado a hora de acrescentar mais uma
revelação àquelas aqui já colocadas... Não é mesmo, Zeus? Que achas, Perun? É
hora, meus amigos?
Zeus, o Pai celestial
olímpico, e Perun, o Pai celestial eslávico, assentiram com Nhamandu, o Pai
celestial tupi-guarani. Depois de tudo o que fora falado, eles não podiam mais
se calar. Era o momento de abrirem o jogo.
– Os Pais Celestiais dos
vários panteões, patriarcas das famílias divinas às quais cada um de vocês se integram,
também firmaram uma Unidade Arquetípica
– Disse Perun, que também era o deus russo do Trovão – Foi em 1945, logo
após descobrirmos a atuação conspiratória dos deuses da Guerra, que estimularam,
com o intuito de auto-beneficiar, às duas grandes guerras em que o mundo
mergulhara, em apenas uma geração, até então. Reunimo-nos e tratamos com
seriedade a questão da gravidade e urgência de nós mesmos, Pais Celestiais,
que sempre fomos identificados com a Justiça, com a Ordem, e, desse modo, com a
promoção da paz e do bem comum, agirmos como chefes das nossas nações divinas e
nos comprometermos reciprocamente a promover a fraternidade entre todos os indivíduos
e entre os nossos povos.
– Não fomos nós que
começamos a conspiração, mas nossos próprios irmãos e filhos, que, segundo suas
naturezas, se uniram para se banquetear da Guerra – Disse Zeus, com gravidade
no tom de voz que até soava estranho a um tipo reconhecidamente tão fanfarrão
quanto ele – De nossa parte, no intuito de promover verdadeiramente a confraternização
universal e a paz dos povos, acabamos abraçando as últimas luzes do Iluminismo
que remanesceram até esta época da pós-modernidade, em suas múltiplas
expressões, desde os Direitos Humanos até os movimentos constitucionalistas,
desde os Estados de Direito até o adensamento das relações internacionais e a
valorização da Dignidade das Pessoas, sempre buscando recolher em cada coisa o
melhor para a concretização da Fraternidade Universal e da Paz entre as Nações.
– É claro que, com isso,
descobrimos meio que acidentalmente que a rede que nós, Pais Celestiais, formávamos
entre nós, com a nossa Unidade, era capaz de recolher energias de crenças que
não eram propriamente nossas, enquanto divindades míticas tradicionais, mas
dirigidas, por exemplo, à Constituição dos Estados Democráticos, à
Independência dos Países e à Soberania de cada Nação, à Interdependência e
Cooperação dos Povos, à Fraternidade, à Paz, à Justiça, à Dignidade Humana e
aos seus Direitos inerentes, às relações diplomáticas... – Disse Nhamandu – E
isso permitiu que, compartilhando entre nós essas energias, mobilizadas por
essas novas instituições e ideais, a que direta ou indiretamente nos ligávamos,
por associação simbólica, recobrássemos muito de nosso antigo poder. Ainda não
entendemos completamente nem mesmo como tudo isso funciona, mas podemos atestar
que a Unidade Arquetípica funciona maravilhosamente bem para os deuses, e pode
mesmo nos levar a atravessar estes dias de escassez.
E dessa vez foi Tupã que
ficou impressionado e até sem palavras.
Depois daquelas partilhas e
explanações todas, firmava-se naquela assembleia de deuses do Trovão o
entendimento de que era preciso mais do que nunca se adaptarem aos novos
tempos. E ali estava, diante deles, a porta aberta e o caminho traçado de como
melhor poderiam fazer isso.
* * * * * * * * *
O Simpósio do Trovão avançou
pela tarde e pela noite, naquele dia, sem grandes pausas para refeições, com os
lanches e os líquidos sendo servidos discretamente por Nhamandu durante o
desenrolar mesmo dos trabalhos. Para fazer qualquer necessidade, bastava ir até
um riacho de águas cristalinas que corria por ali perto, conforme fora
indicado, sem maiores cerimônias. E nesse ritmo tudo fluiu muito bem. E mesmo
quando a assembleia foi encerrada, as refeições frugais do fim do dia servidas,
os animais e montarias sobrenaturais postos para descansar, cada participante tendia
a seguir em colóquios privados que expandiam certos aspectos das conversações
que tinham ocupado aquele dia tão produtivo. Não conseguiam parar de dialogar
sobre aqueles temas tão caros, que tocavam suas essências, suas identidades e
seu futuro.
Havia aconchegantes redes e
mantas dispostas para todos, mas alguns simplesmente não conseguiam dormir, e
ainda assim se sentiam bem como raras vezes haviam se sentido em todas as suas
longas existências. Assim, vagarosa e progressivamente, despontou no horizonte
um novo dia, primeiramente em tons cinzas sobre um mar escuro-prateado, depois
em tonalidades cada vez mais claras e carmesins, até que, da aurora, ergueu-se
o sol glorioso e fulgurante por sobre o mar, renovando todas as coisas. A luz
quente invadiu em jorros abundantes o mundo inteiro e dispersou as sombras, e
tudo o que ainda dormia naturalmente despertou, o mar, a terra, os ventos, as
matas, tudo estava agora acordado e vivo, em cores renovadas e vívidas.
Passara a madrugada. Chegara
a primeira hora da manhã. O sol se levantava no oriente. As nuvens brancas se
revestiam de raios de luz multicor.
Nhamandu, cerelepe, trouxe
aimpim, que alguns chamam de mandioca ou macaxeira, em generosas porções
cozidas e outras fritas, e também como ingrediente do recheio de muitos bolos
doces saborosos, por vezes misturado com côco ralado ou o seu leite; trouxe
cuscuzes quentinhos de fubá de milho, muitas espigas de milho assadas, bacias
de pipoca, um caldeirão de canjica e outro de mungunzá com milho verde e milho
branco, numerosas bananas da terra tanto cozidas quanto fritas, cumbucas com jenipapo
na forma de bolinhas e fatias docinhas e licores feitos de seu sumo,
biscoiteiras com bolachinhas de polvilho e de goma, travessas de batatas doces,
assadas e fritas, sacos de castanhas de caju torradas, canecos com amendoins
cozidos e outros torrados, pães de batata, de farinha de milho e até de côco, tapiocas,
e uma miríade de outras iguarias, afora os baldes de água de côco, de mel de
cacau, de caldo de cana, e os litros de sucos e as frutas tropicais, mangas,
cajás, acerolas, laranjas, graviolas, melancias, os frutos doirados do
cacaueiro, e muitas outras, tudo tão divinamente preparado, e tão abundante, que
os deuses, em especial os estrangeiros, se refestelaram naquela orgia
gastronômica, e só pararam, um tanto a contra-gosto, porque realmente tinham de
encerrar o Simpósio, para não desperdiçarem o valioso tempo longe de seus
lares.
Após as deliciosas comilanças, os deuses
retornaram para o cume do outeiro, plenos de contentamento e, por incrível que
pareça, também de leveza, sentindo uma mudança interior. Tupã acertara em fazer
questão de que esse Simpósio fosse realizado nesta realidade edênica. Talvez,
em nenhum outro mundo, as coisas pudessem dar tão certo e tudo se acertar entre
sujeitos tão intempestivos e tempestuosos, tão diferentes entre si e difíceis
de dialogar com franqueza e abertura fraternal, de personalidades tão
excêntricas, marcantes e obstinadas, quanto os deuses do Trovão dos variados
panteões do mundo. Felizmente, aqui essa comunhão era possível. E quem sabe,
até em outros lugares menos propícios também fosse possível, com alguma boa
vontade.
Só aquele dia no paraíso
infelizmente lhes custara centenas de dias na realidade central, um tempo
precioso em que muita coisa poderia ter ocorrido... Mas valera à pena. E pelo
menos Tupã se recuperara realmente como se tivesse passado praticamente um ano
inteiro somente a se curar desde que suas forças haviam sido drenadas. Estava
tão jovem quanto realmente era, com todas as suas energias devidamente
reabastecidas. Tupã, jovem-adulto, de pé, na assembleia dos deuses, reabriu os
trabalhos com satisfação e falou:
– Quero agradecer a todos vocês,
que se permitiram chegar até aqui e que se abriram à mudança, certamente para a
melhor, porque capaz de nos colocar no mesmo ritmo, no mesmo compasso e
sintonia ditados pelo espírito do tempo na realidade em que vivemos, e também capaz
de nos harmonizar entre nós mesmos. E até aos que provavelmente não integrarão
a nossa Unidade Arquetípica, como Oyá, e algumas outras deusas aqui presentes,
que me parecem estar mais inclinadas a se unir às Deusas-Mães, ou ainda tal
qual Zeus, Pai dos deuses olímpicos, e Perun, Pai dos deuses eslavos, e meu
pai, Nhamandu, chefe do nosso panteão tupi-guarani, e se houver mais algum
líder de Panteão aqui, que eu esteja a me esquecer, perdão, que vão provavelmente
continuar junto à Unidade dos Pais Celestiais, quero agradecer, de coração,
pelas valiosas contribuições, pela colaboração. A todos, muito obrigado! Sem o
esforço de cada um, de sair de suas pátrias, de quererem dialogar com outras
culturas por vezes tão estranhas para nós, de se disporem a fazer essa jornada
de alteridade e encontro, nada disso seria possível. Gratíssimo, a todos!
– Nesta conclusão dos nossos trabalhos, é
preciso ressaltar que o juramento com o qual nos comprometemos reciprocamente
ontem durante a passagem da tarde para a noite, no crepúsculo, com magia poderosa
e afetos profundos, nos une a todos em torno do Arquétipo do deus do Trovão.
Ficou muito forte para mim, depois de ontem, e creio que para vocês também, que
o nosso papel nestes novos tempos não é mais servir de ponto de imputação às
mistificações sobre as descargas elétricas, sobretudo as que clareiam a noite,
durante as tormentas. Os mortais já encontraram explicações para isso de formas
que lhes servem melhor do que crer que estamos martelando, tocando tambor, ou
semelhante, lá nos céus. E se precisam de energia elétrica, eles ligam o
interruptor, põem o carregador na tomada, fazem usinas hidrelétricas, e por aí
vai. Portanto, não temos mais como insistir só nessa via tradicionalista.
– Pelo contrário, o que os mortais muito
anseiam e nós, enquanto mitos reunidos no Arquétipo do deus do Trovão, podemos
oferecer é um simbolismo forte, com rica significação e profundidade, para lidar
melhor com seus próprios conflitos intrapsíquicos e interpessoais. A noite
destes tempos pós-modernos não é mais a mera falta de luz, é sim a
desesperança, o niilismo, ou por vezes a ignorância, o medo do desconhecido, e
até mesmo o fanatismo. Assim como o raio rasga essa escuridão da noite em um
clarão que ilumina o céu inteiro, mesmo que por um só instante, nosso
simbolismo pode ajudar as pessoas a perceberem que nem tudo está perdido, que
ainda há luz, há esperança, há um sentido para a vida! Que sempre será possível
se lançar, e sair de si, e ir ao encontro do outro, não com uma fé cega, mas com
uma fé purificada pela luz da razão. Nosso Arquétipo tem o caráter viril e
fecundo de não se acovardar, não se ensimesmar, mas enfrentar essa escuridão da
noite do mundo, por vezes dando um choque de realidade, uma sacolejada, um
despertar, de modo enérgico, contagiante, para produzir algo bom, para vencer
as trevas.
– A grande tempestade destes
tempos sombrios não é mais exterior, mas interior. As pessoas vivem conturbadas
psiquicamente, sem inteligência emocional ou relacional para lidar com seus
problemas, sem paz interior, sem abertura, fechados em si mesmos, na tempestade
em seus copinhos d’água, sem auto-controle, sem auto-determinação, sem
auto-confiança, sem uma auto-estima mais sólida. E nosso Arquétipo de deus do
Trovão carrega esse simbolismo de dominar as tempestades. Portanto, podemos
ajudar as pessoas a entender que não é o fim se tudo estiver tempestuoso em seu
íntimo, em suas relações, em sua vida. Isso passa! A tormenta passa! Após a
tempestade, vem a bonança! É preciso serenidade para enfrentar as horas de
maior instabilidade e caos, e firmeza para seguir adiante. Podemos subjugar
qualquer tempestade e reparar os seus efeitos, por mais desastrosos que sejam,
em especial se fazemos isso com a colaboração dos outros. Não somos senhores
absolutos de nós mesmos, mas podemos exercer ao menos o senhorio sobre as
nossas próprias tempestades. Nenhum problema é maior que nós mesmos. Somos
muito maiores que qualquer tempestade ou tormenta que nos vier!
– Nosso papel, meus caros deuses do Trovão, é
inspirar as pessoas a serem heróis em seus cotidianos! E quando elas acreditarem
que a sua noite não precisa ter escuridão, que elas podem irradiar e eletrizar
umas às outras, que elas possuem em si toda essa energia chocante e que podem
disparar raios para fulminar as trevas espirituais, psíquicas e sociais aonde
estiverem, para dissipar quaisquer que sejam as tempestades em suas mentes e em
seus corações, em suas relações e em seus ambientes, e que vale à pena se
lançar, encarar o desconhecido, dialogar com o outro, se permitir experimentar
a fundo a aventura da própria vida com a luz, a energia, o vigor, a paixão, e a
vontade de lutar por aquilo que ama, com a coragem, com a determinação, de um
deus do Trovão, por certo as energias mobilizadas por essas crenças
maravilhosas vão ser coletadas pela rede gerada pela nossa Unidade Arquetípica,
e vamos todos nos beneficiar disso, e vamos todos poder compartilhar disso tudo.
A isso, todos os deuses ali
presentes se levantaram e aplaudiram de pé.
Muitos estavam emocionados,
em especial os mais velhos. Sentiam que algo velho havia acabado e algo novo
começava ali. Algo capaz de abalar os fundamentos da realidade. Capaz de
recriar o mundo. Pela primeira vez em muito, muito tempo, aqueles deuses
acreditavam em si mesmos, e tinham fé na humanidade. Genuinamente, sentiam que
o impossível agora era possível.
Tupã foi ainda longamente ovacionado.
* * * * * * * * *
No encerramento do Simpósio do Trovão, Nhamandu
revelou algumas últimas dádivas aos deuses que se preparavam para partir. Primeiro,
lhes disse que estocara no drakkar
bastante comida e bebida para a viagem de todos de volta, e até para eles levarem
às suas casas, e compartilharem com quem desejassem, pois havia tudo em abundância.
E já essa notícia foi recebida com muita alegria. Depois, o que era ainda melhor,
Nhamandu disse aos deuses do Trovão que eles não precisariam voltar com suas
próprias energias para a realidade central, pois ele lhes daria uma relíquia.
Era, na verdade, um côco de tucumã, lacrado com cera de abelha e outras
resinas, do qual saia um zumbido constante, que combinava os ruídos noturnos de
cigarras, sapos e grilos. Mas ao derreter a cera e as resinas, de dentro do
côco de tucumã seria liberado um redemoinho de poder que levaria instantaneamente
o navio-dragão, com todos os seus tripulantes, de volta para a sua realidade de
origem. Era um dos últimos que Nhamandu e a Cobra Grande haviam fabricado,
muito tempo atrás.
A notícia de que não seria necessário aquele
dispêndio de energia de cada um foi festejada, e Tupã e Nhamandu foram
celebrados como grandes anfitriões. De fato, fora tudo um sucesso. Tudo
transcorrera da melhor maneira. E quem não veio, perdera. Poderia ouvir os
relatos depois, entusiasticamente contados pelos participantes do Simpósio, e,
se quisesse, até aderir ao pacto e passar a integrar a Unidade. Mas essa
experiência que ali se dera fora única, e jamais poderia ser repetida
exatamente da maneira como acontecera, com cada um daqueles que ali estiveram
reunidos. Todos estavam tão felizes e agradecidos uns aos outros, e se sentiam
tão próximos uns dos outros por laços tecidos com tanta leveza, bem como tão
indestrutíveis, que se poderia dizer que fora vivenciada ali realmente uma
experiência religiosa, o que, por incrível que pareça, era algo extremamente
raro de ser vivido entre os deuses. Todo o esforço valera à pena. Todo o
planejamento. Tudo. Houve variados agradecimentos pessoais de congressistas a
Tupã e a Nhamandu, e Tupã também agradeceu de maneira especial aos que
estiveram com ele desde o início, ajudando-o, como Thor e Zeus. Logo que pudesse iria
agradecer a Ogum também.
Após arrumarem as montarias e demais criaturas sobrenaturais de companhia, ajeitarem os
últimos preparativos, embarcarem todos no drakkar,
antes que o sol estivesse a pino no céu, os deuses do Trovão que vieram, com
exceção de Tupã, que ficara na praia ao lado de Nhamandu, abriram o côco de
tucumã no meio do navio-dragão, e foi como se a embarcação e todos os que nela
estavam fossem envolvidos por um manto de escuridão e logo em seguida
desaparecessem daquele paraíso. Eles saíram da sintonia com os padrões
vibro-energético-informacionais daquela realidade circundante paradisíaca, e
voltaram a se sintonizar e a se inserir na realidade central da qual haviam antes
partido, embora, por prudência, em seu Imanifesto,
pois se aparecessem no mundo dos humanos acima do Limiar das Manifestações, nos
Aspectos Manifestos da realidade, seria muito complicado explicar tudo aquilo e
por certos muita gente iria simplesmente surtar.
Era noite novamente, mas, na cronologia
própria daquele mundo central, já se estava em meados de setembro do ano
seguinte ao qual haviam partido. Sem demora, o drakkar começou a velejar para fora da pequena baía. Dessa vez, o
navio-dragão iria fazer o trajeto mais longo, e deixar todos em seus lares. Thor
no remo-leme, degustava um cantil de licor de jenipapo, com o qual se encantara,
enquanto dirigia sua nau. Zeus na proa gargalhava com Iansã e Xangô. Hinon
descobrira em Lei Gong e Dianmu um parentesco distante. Raijuu, a fera de
Raijin, irmanara-se às montarias de Catequil, Intillapa e seus filhos. Taranis
e Tuireann contavam lorotas, enquanto remavam, junto com os polinésios e demais
deuses. Aos poucos, uma tempestade elétrica se formava atrás da nau e começava
a seguí-la e a se expandir, como efeito colateral da presença de tantos deuses
do Trovão juntos em uma realidade que não era perfeita, mas acolhia de tudo, o
bom e o ruim, o belo e o feio, o paraíso e o inferno, em todos as suas
incontáveis gradações e matizes.
Mas, pelo menos, não era mais uma tempestade
raivosa.
Era, sim, um temporal de esperanças.
* * * * * * * * *
Cavalgando pelos céus por sobre a cidade,
vendo aquela cena, estava Ogum, o orixá que ingressara na cavalaria santa, por
sobre seu corcel, Embarr.
– Demorou, mas saiu... Aleluia! – Estava
feliz pois seu amigo, Tupã, conseguira o que tanto almejava, e isso faria bem a
um número incontável de pessoas – Vamos, Embarr, temos de reportar logo essas
boas novas e ainda temos muito o que fazer! Quando os Céus souberem disso, será
uma festa!
E, assim, os sagrados cavalo
e cavaleiro partiram rumo ao Infinito. Para muito além desta Dimensão e de suas
realidades.
Entraram no mistério e sumiram.
Por um tempo.
* * * * * * * * *
Nas praias ensolaradas do paraíso, Nhamandu e
Tupã, pai e filho, a sós.
– Que provação encaraste, Tupã! Que rito
iniciático difícil e ao mesmo tempo tão digna e magnificamente bem vivenciado
por ti, meu filho! – Disse Nhamandu, simplesmente realizado – Você será um
grande líder! Já é um!
– Graças a ti, pai – Retribuiu Tupã, afetuoso
– E agora poderemos até ajudar outros deuses! Tenho certeza que as divindades
solares, os deuses da morte e do renascimento, embora sempre tenham tido boas
relações informais entre si, e com todos, ainda não formalizaram a sua Unidade Arquetípica!
Se os Tricksters, aquelas divindades
trapaceiras, já fizeram a sua Unidade, como eu acredito que sim, dado que tudo
está tão bagunçado nas sociedades humanas, na Política, na Economia, no Direito,
etc, essa seria a melhor forma de combater os efeitos nefastos e as
consequências disso...
Nhamandu riu. Uma risada
leve e gostosa.
Tupã apesar de tudo ainda
era jovem. Tinha muito a amadurecer.
– Ah, Tupã... O que fizeste com os deuses do
Trovão foi realmente maravilhoso, e é uma resposta bastante adequada ao que a
conjuntura pedia que fosse feito. Antes
as divindades isoladas em seus panteões e fechadas em suas próprias mitologias;
agora os Arquétipos, o diálogo de alteridade intercultural, e a unidade na
diversidade... – Disse Nhamandu – Realmente é algo muito positivo perante o
nosso contexto atual... Não pense, porém, que essa é a resposta definitiva para
todos os problemas do mundo! Talvez ajude, no atual contexto, em alguns
aspectos... Mas tudo o que está no palco do Espaço e do Tempo, tudo nos
Aspectos Manifestos de cada realidade, e até boa parcela do que transita pelo
seu Imanifesto, é efêmero. Quando
esse contexto atual mudar, haverá novos aspectos, que suscitarão novos
conflitos, e a nova conjuntura demandará soluções novas. Enquanto o mundo for
mundo, e estiver neste estado de caminhada, essa será a sua permanente dinâmica.
Sempre haverá mais problemas para resolver, maiores ou menores. Não temos como
forçar que tudo se resolva como julgamos que deve ser. E, de qualquer modo, o
sentido não é resolver todos esses problemas do mundo de uma só vez para
sempre, mesmo que isso fosse possível, e não é. Nós só temos de saber lidar com
aquilo que nos chega, enquanto estamos neste mundo, pensando, sem dúvidas,
naqueles que poderão vir depois de nós. Afinal, não ficaremos por aqui para
sempre... Nem os mortais... Nem mesmo os deuses...
– Pai..? – Tupã olhou
intrigado para Nhamandu – O que queres dizer..?
– Não só quero dizer, mas
digo, efetivamente, Tupã, meu filho. – Falou Nhamandu – Sabe? A verdade sobre a
consciência que tenho de mim mesmo é que me sinto muito velho... Sou muito mais
antigo do que pensais; minha idade não se mede em anos, nem em décadas ou
séculos, mas em milênios, muitos milhares de anos... E sobretudo sinto que já
participei o bastante deste processo de ser-no-mundo; já dei a minha parcela de
colaboração nas tramas das realidades por onde passei; cometi meus erros e
acertos, tantos e tantos, pequenos e grandes, que nem sei mais, nem tenho mais
razão ou ânimo de prosseguir; joguei o jogo tempo demais, filho; já insisti, me corrigi, me renovei, o máximo de
vezes que consegui, até me superei nisso; agora me esqueci até de como tudo
começou, e de boa parte dos caminhos por onde passei. E neste exato instante sinto
que não preciso mais continuar esta peregrinação.
– Queria há muito descansar...
Este peregrinar vinha perdendo para mim gradativamente os seus atrativos e
sentidos, mas, em última instância, não podia parar ainda, pois a minha missão
não estava completa, já que o nosso panteão precisava de um líder, e eu não
havia formado sucessores. Agora, vejo bem diante de mim esse novo líder. És tu,
filho: Tupã, o novo campeão da história, o herói divino que personifica como
nenhum outro o melhor no espírito dos povos do Brasil. Estás tão preparado
quanto poderias estar para encarar seu destino. Tens bom ânimo e estás pronto
para guiar tua família, nossa gente, e no desempenhar desse teu papel cometer
teus próprios acertos e erros, trilhar teus próprios caminhos, e seguir adiante.
Sei que farás tudo isso muito bem. Eu já não preciso mais prosseguir. Minha
jornada está completa, pois me trouxe até aqui, onde e quando posso te passar o
bastão, para que comeces a tua jornada. A minha realização é poder partir,
sabendo que ficas para continuar esta missão de maneira renovada, do seu próprio
modo, e que te preparei para encará-la tão bem quanto pude, e que já és neste
teu começo muito melhor do que eu era quando comecei. Neste presente em que
estamos tenho bem claro que sou apenas o passado, filho, mas você é o futuro.
Tupã sentia os olhos
marejados. Nhamandu olhava-o docemente.
– Mas pai... – Disse Tupã,
com a voz embargada – Para onde vais?
– Sinceramente não sei,
filho; talvez nem os grandes Poderes Cósmicos saibam. Se eu fosse apenas um
ente mortal, quem sabe fosse mais simples de responder isso, mas como já sou
uma entidade mística-espiritual tudo fica mais complexo; não existem certezas
metafísicas absolutas sobre o que há depois da morte, nem para os deuses –
Respondeu Nhamandu – Mas diria, com as palavras mais simples que posso, que vou
apenas dispersar o que em mim está agora condensado, e deixar minha essência
fluir, junto aos grandes fluxos das energias imanifestas do Multiverso. Talvez
eu não esteja mais realmente nem em lugar nem em momento algum, depois disso;
talvez de algum modo novo, misterioso e radicalmente diferente do atual, passe
a estar presente em toda parte, em todo tempo... Não sei mesmo... Mas isso não
é importante. O que realmente importa é que enquanto viveres, tudo o que era
essencial e bom em mim estará presente em tua vida, em ti e através de ti. E sempre
estarei contigo quando quiseres ou precisar, filho, em tua memória e em teu
coração.
Houve lágrimas.
E um caloroso abraço, que durou
uma eternidade. Pois o que é eterno não se mede por sua extensão, mas por sua
intensidade.
Para sempre, em especial
naquele eterno abraço, o pai viveria no filho.
Nhamandu lentamente foi se
tornando invisível e intangível. E quando Tupã se apercebeu, tornara-se o novo
Pai Celestial tupi-guarani.
As ondas do mar
verde-azulado irradiado de sol batiam na areia.
Houve uma tarde, e uma
manhã.
Um novo dia.