Aline Prado Atássio, UESC*
Resumo. O Exército, sob
os seus aspectos estruturais, internos, organizacionais ou institucionais, foi
e continua sendo objeto legítimo de estudo das ciências humanas. Suas
particularidades, seus ritos, a lógica institucional e seus componentes foram
abordados sob as mais diversas óticas, gerando significativa bibliografia,
contudo, não obstante a relevância de tais trabalhos, a maioria optou pela
adoção das linhas de análise norte-americanas. A proposta deste texto é inovar,
realizando uma análise da formação dos militares do exército utilizando um
aporte teórico francês, especialmente sob a ótica de Pierre Bourdieu. A
finalidade deste texto é uma objetivação do campo militar, bem como da
incorporação do habitus militar por aqueles que optam pela carreira das armas.
Além disso, este artigo busca desvendar o processo de formação de “identidades
militares” através das escolas de formação. Para tanto, foram realizadas
leituras de textos, artigos, livros e pesquisas de campo na Escola de Sargento
das Armas (ESSA).
Palavras-chaves: Exército. Habitus. Militares. Escola
de Sargento das Armas.
MILITARY EDUCATION AND THE LOGIC OF
HIERARCHICAL DISTINCTION
Abstract. The
Brazilian Army is a legitimate subject for social sciences study. Previous
studies have been analyzed this institution according to North-American
theoretical and methodological approaches. The aim of the currentstudy is to
analyze the Brazilian Army according to French theoretical approach. Specifically,
we use Pierre Bourdieu’s habitus framework to evaluate the introjection of
Army´s ethos and worldview by individuals who choose to engage in military
career. In order the achieve this aim, we conducted a fieldwork in to observe
and analyze the role of the training process of the Weapons Sergeant School (ESSA) on the formation of a
"military identity" in the candidates who undergo the ESSA training.
Keywords: Army. Habitus. Military.Weapons
Sergeant School.
Introdução
O Exército, sob os seus aspectos estruturais,
internos, organizacionais ou institucionais, foi e continua sendo objeto legítimo
de estudo das ciências humanas. Suas particularidades, seus ritos, a lógica
institucional e seus componentes foram abordados sob as mais diversas óticas,
gerando significativa bibliografia, contudo, não obstante a relevância de tais
trabalhos, a maioria optou pela adoção das linhas de análise norte-americanas.
A proposta deste texto é inovar, realizando uma análise da formação dos
militares do exército utilizando um aporte teórico francês, especialmente sob a
ótica de Pierre Bourdieu.
A
finalidade deste texto é uma objetivação do campo militar, bem como da
incorporação do habitus militar por aqueles que optam pela carreira das armas.
Além disso, este artigo busca desvendar o processo de formação de “identidades
militares”.
Pensar as Forças Armadas (FFAA) sob a ótica da
teoria de Pierre Bourdieu implica em admitir que tal instituição é uma
estrutura organizacional, bem como uma instância reguladora das práticas dos
seus agentes. Por isto exerce nestes, através das condições e da disciplina que
submete seus agentes, uma ação formadora de disposições duráveis1. Podemos
dizer que o Exército impõe a todos aqueles que dele fazem parte um princípio
comum de visão e divisão, ou seja, “estruturas cognitivas e avaliativas
idênticas” (BOURDIEU, 2001, p. 210).
Os militares, como parte de um mundo social onde há
lutas pela diferenciação, compõem o grupo que formará um campo cujo emprego é o
exercício da força na defesa externa do Estado2. O lugar destes militares
dentro da ordem social é como braço armado do Estado, e apesar da crise de
identidade que investiu as Forças Armadas (em especial o Exército) com o fim da
Guerra Fria e da ameaça externa pelo comunismo, nenhuma decisão sobre segurança
e defesa nacional pode ser tomada sem a participação militar. Nesta nova ordem
internacional as
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1 Disposições
são aqui entendidas como “atitudes, inclinações para perceber, sentir, fazer
pensar, interiorizadas pelos indivíduos em razão de suas condições objetivas de
existência e que funcionam então como princípios inconscientes de ação,
percepção e reflexão”. (BONNEWITZ,2003, p. 77).
2 Atualmente, de
acordo com a lei 142 da Constituição Nacional, as Forças Armadas (FFAA)podem
ser convocadas para intervirem no campo interno quando houver ameaça “da lei e
da ordem”. Esta utilização das FFAA é questionada pelos militares e por
estudiosos, pois implicaum “rebaixamento” das Forças para assunção do papel de
polícia. Isso sem contar o despreparo dos militares para agirem em determinadas
situações. Ver Santos (2004).
maiores
ameaças são terrorismo, tráfico de drogas, pobreza, desigualdade de renda e
questões ambientais, ou seja, poucas dizem respeito às Forças Armadas diretamente.
Internacionalmente as questões maiores incluem o emprego de militares para
integrarem as forças de paz das Nações Unidas e, mais recentemente, para a
proteção das fronteiras na região da Amazônia contra o narcotráfico.
Após anos no papel de “poder tutelar” os militares
sentem-se desprestigiados pela “falta de função” e aplicabilidade de suas Forças,
gerando uma crise de identidade que foi agravada pelos constantes questionamentos
do seu papel pela sociedade civil. Todavia, pesquisas realizadas pelo governo
federal revelam que o Exército é ainda uma das instituições em que os cidadãos
mais confiam, perdendo apenas para os Correios3. A carreira militar ainda atrai
jovens de todas as classes4.
A lógica que opera neste campo difere, por princípio,
das lógicas dos outros campos, de forma que existem “leis” específicas para o
campo militar, e entre elas está a obediência à disciplina, que age como
normalizadora dos agentes (como veremos mais claramente no decorrer deste
texto) e à hierarquia, que é um dos princípios formadores do habitus coletivo
da instituição e estabelece as fronteiras entre os militares e os civis “e
estrutura as relações internas dos militares (LEIRNER, 2003, p. 3)5.
O microcosmo social representado pelo campo militar
é hierarquicamente dividido, porém não é estático; o tempo, os estudos e a
experiência adquiridos no exercício da função, entre outros fatores, fornecem
ao agente possibilidade de ascensão social, o que significa não apenas aumento
de capital econômico, mas, principalmente, de capital simbólico dentro da
instituição. Este é, na realidade, a razão de ser, o sentido da vida de um
militar, a consagração do sacrifício supremo que significa a doação de sua vida
pela pátria. As medalhas e outros signos que são ostentadas em uniformes de
oficiais representam o reconhecimento por esse sacrifício, bem como as trocas
de patentes por mérito (ao invés da promoção pelo tempo de serviço), que são
vistas como reconhecimento e legitimação pela instituição e seus integrantes da
importância daquele que ascende na carreira.
Este capital simbólico age proporcionando benesses
para o agente não apenas dentro da caserna como também na sociedade civil, onde
a autoridade militar é reconhecida e o individuo portador de uma farda é olhado
com admiração e respeito, em especial pelas camadas com menor capital cultural
e econômico (PINTO, 1975). Dentre aqueles vindos de famílias de militares, os
ganhos adquirem outra dimensão, pois ao seguir a carreira, esses novos
militares estão correspondendo às expectativas familiares e ganhando novo
status dentro do núcleo familiar.
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3 Para estas
estatísticas ver site do Exército ou do Governo Federal.
4 O número de
inscritos para os exames de admissão nas Forçar Armadas aumentou
significativamente nos últimos 5 anos. Maiores informações no site
http://www.exercito.gov.br e links ali postados referentes à diversas academias
militares.
5 “De maneira
análoga, ela operava ao mesmo tempo na base da organização militar – demarcando
a divisão de trabalho; os ganhos salariais subsequentes; a divisão espacial no
interior de organizações militares; a divisão temporal durante a carreira; os
aspectos cotidianos como moradia, lazer e em grande medida o acesso a
casamentos prescritos de acordo com a hierarquia - bem como nas representações
coletivas - uma "visão de mundo hierárquica": a percepção do
"mundo de fora "seguia critérios homólogos à sua organização interna,
como pode ser observado, por exemplo, pelo critério de universidade que eles
possuíam.” (LEIRNER, 2003,p. 3).
Contudo, devemos lembrar que após anos
de ditadura militar no Brasil, o capital simbólico que investia a profissão foi
reduzido, como mostram os depoimentos de cadetes dos anos 30 e 40, hoje
oficiais aposentados com longa carreira militar:
O cadete era bem recebido em qualquer parte do
Brasil... nós íamos fardados em todos os lugares – fardados com muito orgulho.
Éramos convidados...aquelas festas de fim de ano, formaturas, éramos convidados
para tudo. No nosso tempo [...] você saia fardado pra rua, você era respeitado.
A menina fazia questão de namorar um cadete. Hoje, se você é cadete, ela te
joga pro lado!...Eu peguei ainda a época em que o cadete era muito bem
recebido...Agora, o mundo mudou. O mundo mudou (CASTRO,2004, p. 136).
A construção de
um estilo de vida próprio através das escolas de formação: o habitus e o ethos
militar.
O estilo de vida imposto aos agentes quando
ingressam na carreira militar não é incorporado facilmente. É necessário um complexo
trabalho que irá formar o habitus e o ethos militar, que possui características
específicas da instituição FFAA e foge aos padrões usuais da sociedade civil.
Há também uma distinção na formação do habitus e do ethos de oficiais e praças,
algo que será refletido na interação destes com a instituição e com o mundo que
os rodeia, ou seja, os “defora”.
Ao ingressarem nas fileiras do Exército, os agentes
sofrem um choque cultural e passam por um processo de socialização que
resultará na incorporação do habitus da classe militar e na produção da
filiação dos indivíduos a esta classe.
Dentre
aqueles que vêm de família militar o choque é consideravelmente menor pois
parte significativa deste habitus já foi incorporada pelo individuo graças ao processo
de inculcação familiar e escolar. O conceito de habitus é central nesta discussão
por permitir a compreensão da maneira pela qual os indivíduos se tornam agentes
sociais. De acordo com Bourdieu (2009, p. 88),
Os condicionamentos associados a uma classe
particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições
duradouras e transponíveis, estruturas estruturadas dispostas a funciona como
estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de
práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo
sem supor a visada consciente dos fins e o controle expresso das operações necessárias
para atingi-los, objetivamente “reguladas” e “regulares”, sem ser em nada o
produto da obediência a regras e sendo tudo isso, coletivamente orquestrada sem
ser o produto da ação.
Sendo assim, a socialização se faz efetivamente
quando os indivíduos adquirem disposições que passarão a serem compreendidas
como evidentes, naturais, fazendo com que os agentes ajam de determinada
maneira sem necessidade de lembrar explicitamente das regras que precisam
seguir. Num estudo sobre o período de adaptação dos ingressantes na Academia Militar
deWest Point, nos EUA, que dura 6 semanas e visa chocar os indivíduos com a
vida militar, de forma que só aqueles com certeza de sua decisão de entrar para
a vida militar permaneçam na Academia, Masland e Radway (1957, p. 199)
afirmaram que
O próprio termo (beast barracks6) sugere que se
trata de algo como um tratamento de choque destinado a impressionar o novo
cadete com a ruptura que ele efetuou em relação à vida civil, a erradicar
quaisquer hábitos desleixados que ele possa ter adquirido, a dar-lhe a
confiança que provém do enfrentamento e da conquista de uma dureza apropriada,
e a uni-los estreitamente a seus companheiros submetidos à mesma experiência.
Desta forma, só após esse choque cultural o
indivíduo é considerado apto para o ingresso na carreira.
O habitus contém em si o ethos, variável importante
para compreendermos melhor esse processo de socialização militar, e que
corresponde a normas e valores morais que regulam a conduta cotidiana de
maneira inconsciente. Dentre os militares do exército podemos afirmar que o ethos
sofreu pouquíssimas mudanças com o passar dos anos, demonstrando o
conservadorismo da instituição pois este conservadorismo, por sua vez, possui
importância na permanência e reprodução da instituição.Uma das características
mais acentuadas na instituição neste sentidoé a necessidade da comprovação da
virilidade, acompanhada de uma homofobia7, como percebemos na fala de um cadete
do 3º ano da AMAN, onde o foco principal do discurso seria a autonomia e
desprendimento necessários para que o indivíduo seguisse a carreira militar,
mas que aparece investido de uma concepção moral do que é ser militar ou ainda
“homem”.
Aqui na academia é lugar para
homem, não é lugar para criança, nem viadinho. Então o cara quando vem pra
cá...pô, o cara que quer virar homem de qualquer maneira. Eu cheguei aqui
acostumado à comidinha da mamãe, roupa passada, roupa lavada...Eu cheguei aqui
e tive que me virar, pô, entendeu? (CASTRO, 2004,p. 33).
As divisões entre civis e militares, principal par
de oposição dentro da instituição, coloca a homologia apresentada no Quadro 1,
na página seguinte, sempre expondo o ethos militar, todos os valores morais da
instituição. A hexis corporal do militar (em resumo, as posturas, disposições
do corpo e relação com o corpo) é outro ponto importante de atentarmos.
Injunções sérias dirigem-se ao corpo, afinal, diferenças entre civis e
militares são inscritas nestes,
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6 Em inglês,
termo que denomina o período de adaptação.
7 Sobre este
tema ver D’Araujo (2003).
de forma que a instituição sente
necessidade de ensinar o que é ser um militar,
algo que tem início com a mudança na
vestimenta (a adoção da farda), o corte de cabelo (muito curto) e que inclui
aprender a ser “homem”, aprender a maneira de falar, de andar, de se comportar
e até mesmo de dirigir o olhar a outrem própria do militar.
Dentro do campo dos
militares, as disposições corporais são de extrema acuidade. O corpo dos
militares é parte dos seus pertences de trabalho, tão importante quanto o seu
armamento. O corpo de um militar é sempre passível de exposição, de ser posto
em xeque, em perigo e ao risco da morte, motivo pelo qual eles são obrigados a
levar o mundo em que vivem (com todos os seus treinamentos e simulações) com
seriedade:
Você vai dar um tiro de 13 km,
por exemplo. Então, um milionésimo que você altera ali na manivela de direção
pode dar uma diferença de 500, mil metros lá na frente. Ou seja, pode errar o tiro
ou, o que é pior, acertar em tropas do seu próprio exército (CASTRO, 2004, p.
63).
O corpo do militar está fortemente investido na
relação dele com o mundo, de pertencimento ao mundo, sendo obrigado a sofrer
modificações em favor desta relação. Os militares aprendem pelo corpo; e por
ele é possível enxergarmos a ordem social da qual fazem parte, afinal atributos
físicos (e morais) distinguem e tornam reconhecíveis os militares mesmo quando
eles não estão fardados, ou seja, mesmo quando estão destituídos da marca mais
visível da corporação. A declaração de um cadete da AMAN ilustra com precisão o
que pretendemos dizer:
E a gente tava de férias, eu tava meio
barbudo. Tava na estrada há cindo, seis dias e, onde a gente passava, o
pessoal: ‘vocês são militares, tão vindo de onde?’. Quer dizer, apesar do
cabelo grande e de estar todo desfigurado, de short e suado, a pessoa percebia.
É pelo modo de falar, de se trajar, de se postar (CASTRO, 2004, p. 41).
A disciplina, um dos pilares no qual a instituição
está firmada, normaliza os agentes, expulsa o ser existente antes naquele corpo
para lhe dar uma nova fisionomia: a da instituição. O corpo do militar deve ser
útil, submisso, funcional para a instituição a que ele serve.
O soldado é antes de tudo alguém
que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem,
as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua
valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas –
essencialmente lutando – as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da
cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal da honra. (FOUCAULT,
2002, p. 117).
Para tanto, a disciplina age no corpo físico e no
aspecto político, gerando seres que obedecem ao conjunto de regulamentos que
regem a conduta do militar, impondo-lhes obrigações, limitações e proibições,
dentro da lógica da dominação, já que os corpos disciplinados são submissos e,
à medida que as forças físicas aumentam, a política diminui (FOUCAULT, 2002).
As regras de comportamento, inculcada desde a
entrada do estudante na academia militar (em alguns casos nos colégios
militares), visam formar um saber-fazer próprio das Forças Armadas, onde a
utilização da violência é uma das exigências objetivas. Para tanto, as
atividades físicas ocupam parte significativa do cotidiano do novo militar, com
a realização de exercício, ordens unidas e treinamentos de rituais, em especial
daqueles que estão nos primeiros anos da carreira.
Durante a
adaptação as aulas ainda não começara e o dia é ocupado com muita “ordem unida”
(treinamento coletivo de marchas, continências e posturas militares), educação
física, instruções sobre os regulamentos. (CASTRO, 2004, p. 19).
Todavia, devemos lembrar que essa rotina e o
enclausuramento8 é também uma tática antideserção; tenta (com sucesso) anular
os efeitos da liberdade demasiada que propicia o surgimento de desertores e
questionadores, facilitando a “domesticação” através da disciplina. Por isso os
indivíduos são sempre monitorados; as presenças e ausências são conhecidas, o
comportamento de cada um é detalhadamente reportado em fichas que os
acompanharão durante toda a carreira militar; os méritos e deméritos são medidos,
a coerção acontece por toda parte, durante toda a vida militar.
Muitos ritos são inseridos no cotidiano do militar,
a fim de facilitar o desenvolvimento do habitus próprio, algo indispensável
para a existência dentro do campo militar. Estes ritos da instituição
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8 Entre os
militares das três Forças é obrigatório a permanência nas Academias durante os
quatro ou cinco anos de formação do oficial, sendo liberados apenas os finais
de semana e quando não ocorrerem eventualidades. Os alunos do 1º ano passam por
um período de adaptação de 1 mês que inclui a permanência na Academia inclusive
nos finais de semana. Para os sargentos que estão sendo formados na EsSA, o
regime é de internato.
Constituem
apenas o limite de todas as ações explícitas pelas quais os grupos trabalham
para inculcar os limites sociais, ou, o que dá no mesmo, as classificações
sociais, e naturalizá-las sob a forma de divisões corporais, a hexis corporal,
as disposições, das quais se sabem serem tão duráveis como as inscrições
indeléveis da tatuagem, e os princípios coletivos de visão e de divisão (BOURDIEU,
2001, p. 172).
Dentre os ritos, encontramos aqueles que fazem parte
do cotidiano, e outros,trabalhados e ensaiados durante os anos de curso, que
servem para simbolizar o fim de um período. Todos os dias os cadetes devem,
após o café, às 6:40, estarem prontos para a formatura geral, por exemplo, indicando
que o dia começou. Outra solenidade ritual acontece após o período de adaptação
e a matrícula, onde os novatos fazem a entrada pelo Portão Monumental (no caso
da AMAN), que separa física e simbolicamente a Academia do mundo exterior9.
Neste exemplo, o passar pelo portão simboliza a primeira vitória do cadete
dentro da instituição, pois apenas os que não desistiram no período de
adaptação o transpuseram.
Muitos outros ritos estão presentes no cotidiano
militar, entretanto, nas solenidades como eventos de entrega de diplomas,
formaturas e mesmo em dias
especiais tal qual a proclamação da República, os rituais adquirem novo significado,
pois são marcas distintivas da instituição, cada um deles é como um “emblema
feito gesto” (PINTO, 1975, p. 20).
A
mobilidade social entre os militares do exército: o papel do habitus na
reprodução social
O habitus é
um forte fator de reprodução social. Indivíduos portadores do mesmo habitus agem
de maneira semelhante mesmo sem perceberem tal fato. Assim, a escolha do
cônjuge, da profissão, do carro, do partido político, dentre tantas outras,
demonstram um “gosto pessoal” que pouco possui de individual, pois foi
“imposto” pelo habitus de classe, reproduzindo, como centenas de indivíduos portadores
do mesmo habitus, a ordem social anterior à sua escolha, e garantindo coerência
e unidade às práticas coletivas.
Estudos anteriores revelam uma forte tendência de
reprodução social entre os militares da patente de oficias, através do recrutamento
endógeno no campo. Castro (1993) utilizando arquivos da própria instituição
militar, constatou que a quantidade de filhos de militares cursando a Academia
Militar das Agulhas Negras (AMAN) é alta e vem crescendo (21,2% entre os anos
de 1941-3; 34,9% entre 1962-6; 45,4% entre 1987-9).
Mas as estatísticas também revelam uma outra faceta
da carreira, que é a possibilidade de ascensão social através do Exército, pela
garantia de um serviço público vitalício. Dentre os filhos de militares que
ingressaram na carreira das
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9 Do lado de
fora do portão está a inscrição “entrada dos novos cadetes” e do lado do
oposto, pelo qual os alunos passarão ao terminarem os 4 anos de estudos, está
escrito “saída dos novos aspirantes”.
Armas no ano de 1970, 28,5% eram filhos de oficiais
superiores e 72,5% eram filhos de oficiais subalternos e praças; em 1985, 31,9%
eram filhos de oficiais superiores e 68,1% de oficiais subalternos e praça e,
por fim, entre os anos de 200-2002, 41,9% dos ingressantes eram filhos de
oficiais superiores e 58,1% de oficiais subalternos e praças. Tais estatísticas
indicam uma mudança no perfil já que o recrutamento endógeno ganhou força
dentro de uma “casta” (os oficiais) que, pela melhor condição social, optavam
por dar aos filhos educação em escolas civis. Entretanto, a mudança não é bem
vista pelos oficiais mais velhos, que acreditam ser esta “mistura” de habitus
dos oficiais e dos praças, bem como de indivíduos vindos das classes menos
abastadas da sociedade, um fator de diminuição do “espírito militar” que
podemos entender como do habitus, ethos e hexis militar e ainda, do capital
simbólico:
Eu tenho uma dúvida dentro de mim:
se essa doutrinação que se faz, se essa educação moral que se prega vai mudar a
mentalidade que ele (recém-ingresso não filho de militar e vindo de classe baixa)
traz do berço, da formação, de subir de qualquer jeito [...]. Isso pode trazer
alguma deturpação nesse espírito que se tenta (CASTRO, 2004, p. 137).
Como notado pela fala acima reproduzida, a “mistura”
entre civis e militares não é bem recebida em especial para os militares mais
velhos, que batalhampela reprodução do recrutamento endógeno e, portanto, pela
manutenção do habitus de classe e da reprodução social. Abaixo o excerto mostra
que, mesmo quando recrutados entre os integrantes da instituição – em especial
entre praças e oficiais subalternos - há ressalvas, dado o habitus de classe
diferenciado, já que estes ocupam o extrato mais baixo na cadeia hierárquica do
Exército:
Havia – um
conforto para nós – havia muito filho de militar. Mas quando você vai ver, a
maioria é filho de oficiais subalternos.. . Então isso é uma preocupação [. . .
] . É uma proletarização violenta...de uma classe que tem que ter um valor
moral-ético muito forte. Tem que ser exemplo! [. . . ] (CASTRO, 2004, p. 137).
Por esta maneira de pensar que muitos militares
passam a inculcar em seus filhos o “gosto” pela carreira das Armas, desde a
mais tenra idade. Assim para muitos destes futuros oficiais, a educação
primária, recebida no ambiente familiar, já se encarregou da produção de um habitus
primário que corresponderá, em grande medida, ao habitus do campo militar. Os esquemas
de percepção e de ações transmitidos pelos pais militares serão reforçados com
a entrada do estudante na academia militar. A exterioridade interiorizada pelo
convívio familiar é, no mínimo, semelhante à que o cadete encontrará na
instituição.
Este fator facilita a adaptação do indivíduo na vida
militar e muitas vezes é
o que define a escolha profissional do filho de militar, afinal, ele tende a
perceber o mundo em função do seu habitus primário, de maneira que as
disposições adquiridas em seguida influenciam a aquisição de novas disposições.
É desta forma que muitos filhos de militares chegam às academias alegando serem
dotados de “vocação” para o exercício militar; “histórias como ‘desde
pequenininho sempre
gostei dessas coisas’ padronizadas” (CASTRO, 2004, p. 38). Mas existem ainda aqueles
que, dada a “ordem ordinária das coisas” impõe esta escolha, seja pelas condições
materiais de existência, pela violência simbólica ou pelas “surdas injunções”. O
indivíduo é muitas vezes pressionado pela família para seguir o caminho do pai,
como exemplifica o excerto retirado do texto de (CASTRO, 2004, p. 38): “não sei
se algum cadete já comentou com você. . . a pior pressão é a de casa”.
O habitus escolar, no caso daqueles que tem origem
em família militar e cursam o colégio militar, contribuem mais ainda para que a
escolha pela profissão seja realizada no seio das Forças Armadas. Podemos dizer
que, em tais casos, não há grandes chances de que o indivíduo venha a escolher
uma carreira civil, pois o habitus, não obstante ser uma estrutura interna
passível de reestruturação, é cumulativo, ou seja, os habitus mais antigos condicionam
as aquisições recentes, de forma que cada nova disposição adquirida se soma a
um conjunto já existente, gerando um só habitus. Estudos anteriores mostram que
37,3% dos alunos matriculados no primeiro ano do AMAN entre 1980 e 1990 eram
oriundos de colégios militares, 46,6% haviam cursado a Escola Preparatória de
Cadetes do Exército (ExPCEx), 1,5% vinham do Colégio Naval e da Escola
Preparatória de Cadetes das Armas (EPCAr)10.
O habitus passa a impressão de escolha nas
representações e práticas (quando na realidade o agente, ao “escolher” está apenas
mobilizando o habitus em que foi moldado), de forma que aquilo que muitos dos
militares classificam como “vocação” ou livre escolha não deixa de ser habitus
de classe incorporado e transformado em prática. O habitus de classe garante,
consequentemente, que os indivíduos façam suas escolhas dentro de um leque de
opções dado de maneira a garantir a perpetuação das relações objetivas entre as
classes. Não obstante as observações acima, devemos lembrar que as práticas e representações
dos agentes não são totalmente determinadas pelo habitus, pois eles são capazes
de realizarem escolhas, ainda que não totalmente livres, já que estas são
orientadas pelo habitus. No caso dos militares, a desistência da carreira após o
ingresso é difícil e depende em grande medida da aprovação e apoio familiar, sendo
que este apoio nem sempre existe:
É incrível, você chega em casa
contando assim: ‘tô pensando em sair, não aguento mais...’, Vem tio, tia, avô,
avó, até parente que você quase nunca tá em contato dizer pra você: ‘Não, fica
lá que...’. Foi o que aconteceu comigo. Eu realmente tava pensando seriamente
em sair (CASTRO, 2004, p. 38).
Portanto, a
reprodução social desta elite é desejada pelos próprios agentes da instituição.
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10 A idade média
de ingresso nas escolas são, respectivamente, 10-11 anos, nos colégios
militares; 14-15 anos nas escolas secundárias (como a ESPCEx) e 17-19 anos na
AMAN. Ver Castro (1993).
Considerações Finais
Neste trabalho procuramos mostrar o processo de produção
e reprodução do habitus militar, categoricamente importante para a constituição
do estilo de vida destes profissionais. Vimos a importância das estruturas
familiares e escolares na formação do habitus e como a inculcação das regras da
instituição conseguem normalizar os agentes.
As regras do campo militar, dentre as quais
destacamos a obediência à hierarquia e à disciplina, agem como formadores do habitus
coletivo e distinguem os civis dos militares. A importância do ethos, que institui
normas e valores morais é destacada por garantir a regularidade da conduta
cotidiana dos militares. Com relação à hexis corporal, tentamos demonstrar como
é o processo de sua construção e a importância que ela adquire na vida militar,
já que este precisa, logo ao entrar na Academia, aprender a “ser” militar, o
que inclui uma maneira específica de andar, falar, se vestir, cortar os cabelos
e se dirigir a outrem. Buscamos ainda demonstrar como a reprodução da distinção
hierárquica entre oficiais e praças é inserida tanto na formação do habitus quanto
do ethos de cada uma destas “castas” e quais são os reflexos desta distinção no
estilo de vida de cada um.
A relação dos militares com seu corpo, tido como um
instrumento de trabalho, também foi explorada, procurando demonstrar que os habitus
se inscrevem também neste corpo que, disciplinado, é útil e valioso, além de
ser um distintivo entre eles e os civis. Os ritos aos quais os militares estão
sujeitos diariamente, como dito no texto, são tidos como a situação-limite ao
qual os limites e as classificações sociais são naturalizados sob forma da hexis
corporal, que por sua vez agirá de forma a transformar e naturalizar a visão de
mundo dos militares e a divisão entre estes e os civis; além de estabelecerem a
distinção, dentro da caserna inclusive, entre os que passaram ou não por ele.
O texto abordou o papel do habitus na reprodução
social, que, como vimos, é incitada pelos militares. A vocação, sempre tão
aclamada pelos que seguem carreira de nível superior nas Armas acabou revelando-se,
afinal, produto de inculcações, disposições adquiridas anteriormente, seja no
seio da família ou das escolas, mostrando-nos como o habitus age de forma
inconsciente transmitindo a falsa impressão de escolha racional dos indivíduos.
Por fim, concluímos que cada militar, em especial os
oficiais, é, na verdade, variante de um habitus de classe que tende a se reproduzir
através dos recrutamentos endógenos, o que explica a forma homogênea de agir e
pensar de todos os que pertencem (ou pertenceram) a esta classe.
Referências:
BONNEWITZ, P. Primeiras
lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Trad. Lucy
BOURDIEU, P. Meditações
pascalina. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2001.
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