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" O DIÁLOGO. É O ELO QUE FALTA "

A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DOS MILITARES E A LÓGICA DA DISTINÇÃO HIERÁRQUICA (ALINE PRADO ATÁSSIO)






Aline Prado Atássio, UESC*

Resumo. O Exército, sob os seus aspectos estruturais, internos, organizacionais ou institucionais, foi e continua sendo objeto legítimo de estudo das ciências humanas. Suas particularidades, seus ritos, a lógica institucional e seus componentes foram abordados sob as mais diversas óticas, gerando significativa bibliografia, contudo, não obstante a relevância de tais trabalhos, a maioria optou pela adoção das linhas de análise norte-americanas. A proposta deste texto é inovar, realizando uma análise da formação dos militares do exército utilizando um aporte teórico francês, especialmente sob a ótica de Pierre Bourdieu. A finalidade deste texto é uma objetivação do campo militar, bem como da incorporação do habitus militar por aqueles que optam pela carreira das armas. Além disso, este artigo busca desvendar o processo de formação de “identidades militares” através das escolas de formação. Para tanto, foram realizadas leituras de textos, artigos, livros e pesquisas de campo na Escola de Sargento das Armas (ESSA).

Palavras-chaves: Exército. Habitus. Militares. Escola de Sargento das Armas.

MILITARY EDUCATION AND THE LOGIC OF HIERARCHICAL DISTINCTION

Abstract. The Brazilian Army is a legitimate subject for social sciences study. Previous studies have been analyzed this institution according to North-American theoretical and methodological approaches. The aim of the currentstudy is to analyze the Brazilian Army according to French theoretical approach. Specifically, we use Pierre Bourdieu’s habitus framework to evaluate the introjection of Army´s ethos and worldview by individuals who choose to engage in military career. In order the achieve this aim, we conducted a fieldwork in to observe and analyze the role of the training process of the Weapons Sergeant School (ESSA) on the formation of a "military identity" in the candidates who undergo the ESSA training.

Keywords: Army. Habitus. Military.Weapons Sergeant School.

Introdução

O Exército, sob os seus aspectos estruturais, internos, organizacionais ou institucionais, foi e continua sendo objeto legítimo de estudo das ciências humanas. Suas particularidades, seus ritos, a lógica institucional e seus componentes foram abordados sob as mais diversas óticas, gerando significativa bibliografia, contudo, não obstante a relevância de tais trabalhos, a maioria optou pela adoção das linhas de análise norte-americanas. A proposta deste texto é inovar, realizando uma análise da formação dos militares do exército utilizando um aporte teórico francês, especialmente sob a ótica de Pierre Bourdieu.
       A finalidade deste texto é uma objetivação do campo militar, bem como da incorporação do habitus militar por aqueles que optam pela carreira das armas. Além disso, este artigo busca desvendar o processo de formação de “identidades militares”.

Pensar as Forças Armadas (FFAA) sob a ótica da teoria de Pierre Bourdieu implica em admitir que tal instituição é uma estrutura organizacional, bem como uma instância reguladora das práticas dos seus agentes. Por isto exerce nestes, através das condições e da disciplina que submete seus agentes, uma ação formadora de disposições duráveis1. Podemos dizer que o Exército impõe a todos aqueles que dele fazem parte um princípio comum de visão e divisão, ou seja, “estruturas cognitivas e avaliativas idênticas” (BOURDIEU, 2001, p. 210).

Os militares, como parte de um mundo social onde há lutas pela diferenciação, compõem o grupo que formará um campo cujo emprego é o exercício da força na defesa externa do Estado2. O lugar destes militares dentro da ordem social é como braço armado do Estado, e apesar da crise de identidade que investiu as Forças Armadas (em especial o Exército) com o fim da Guerra Fria e da ameaça externa pelo comunismo, nenhuma decisão sobre segurança e defesa nacional pode ser tomada sem a participação militar. Nesta nova ordem internacional as
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1 Disposições são aqui entendidas como “atitudes, inclinações para perceber, sentir, fazer pensar, interiorizadas pelos indivíduos em razão de suas condições objetivas de existência e que funcionam então como princípios inconscientes de ação, percepção e reflexão”. (BONNEWITZ,2003, p. 77).
2 Atualmente, de acordo com a lei 142 da Constituição Nacional, as Forças Armadas (FFAA)podem ser convocadas para intervirem no campo interno quando houver ameaça “da lei e da ordem”. Esta utilização das FFAA é questionada pelos militares e por estudiosos, pois implicaum “rebaixamento” das Forças para assunção do papel de polícia. Isso sem contar o despreparo dos militares para agirem em determinadas situações. Ver Santos (2004).

maiores ameaças são terrorismo, tráfico de drogas, pobreza, desigualdade de renda e questões ambientais, ou seja, poucas dizem respeito às Forças Armadas diretamente. Internacionalmente as questões maiores incluem o emprego de militares para integrarem as forças de paz das Nações Unidas e, mais recentemente, para a proteção das fronteiras na região da Amazônia contra o narcotráfico.

Após anos no papel de “poder tutelar” os militares sentem-se desprestigiados pela “falta de função” e aplicabilidade de suas Forças, gerando uma crise de identidade que foi agravada pelos constantes questionamentos do seu papel pela sociedade civil. Todavia, pesquisas realizadas pelo governo federal revelam que o Exército é ainda uma das instituições em que os cidadãos mais confiam, perdendo apenas para os Correios3. A carreira militar ainda atrai jovens de todas as classes4.

A lógica que opera neste campo difere, por princípio, das lógicas dos outros campos, de forma que existem “leis” específicas para o campo militar, e entre elas está a obediência à disciplina, que age como normalizadora dos agentes (como veremos mais claramente no decorrer deste texto) e à hierarquia, que é um dos princípios formadores do habitus coletivo da instituição e estabelece as fronteiras entre os militares e os civis “e estrutura as relações internas dos militares (LEIRNER, 2003, p. 3)5.
O microcosmo social representado pelo campo militar é hierarquicamente dividido, porém não é estático; o tempo, os estudos e a experiência adquiridos no exercício da função, entre outros fatores, fornecem ao agente possibilidade de ascensão social, o que significa não apenas aumento de capital econômico, mas, principalmente, de capital simbólico dentro da instituição. Este é, na realidade, a razão de ser, o sentido da vida de um militar, a consagração do sacrifício supremo que significa a doação de sua vida pela pátria. As medalhas e outros signos que são ostentadas em uniformes de oficiais representam o reconhecimento por esse sacrifício, bem como as trocas de patentes por mérito (ao invés da promoção pelo tempo de serviço), que são vistas como reconhecimento e legitimação pela instituição e seus integrantes da importância daquele que ascende na carreira.

Este capital simbólico age proporcionando benesses para o agente não apenas dentro da caserna como também na sociedade civil, onde a autoridade militar é reconhecida e o individuo portador de uma farda é olhado com admiração e respeito, em especial pelas camadas com menor capital cultural e econômico (PINTO, 1975). Dentre aqueles vindos de famílias de militares, os ganhos adquirem outra dimensão, pois ao seguir a carreira, esses novos militares estão correspondendo às expectativas familiares e ganhando novo status dentro do núcleo familiar.

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3 Para estas estatísticas ver site do Exército ou do Governo Federal.
4 O número de inscritos para os exames de admissão nas Forçar Armadas aumentou significativamente nos últimos 5 anos. Maiores informações no site http://www.exercito.gov.br e links ali postados referentes à diversas academias militares.
5 “De maneira análoga, ela operava ao mesmo tempo na base da organização militar – demarcando a divisão de trabalho; os ganhos salariais subsequentes; a divisão espacial no interior de organizações militares; a divisão temporal durante a carreira; os aspectos cotidianos como moradia, lazer e em grande medida o acesso a casamentos prescritos de acordo com a hierarquia - bem como nas representações coletivas - uma "visão de mundo hierárquica": a percepção do "mundo de fora "seguia critérios homólogos à sua organização interna, como pode ser observado, por exemplo, pelo critério de universidade que eles possuíam.” (LEIRNER, 2003,p. 3).

Contudo, devemos lembrar que após anos de ditadura militar no Brasil, o capital simbólico que investia a profissão foi reduzido, como mostram os depoimentos de cadetes dos anos 30 e 40, hoje oficiais aposentados com longa carreira militar:

 O cadete era bem recebido em qualquer parte do Brasil... nós íamos fardados em todos os lugares – fardados com muito orgulho. Éramos convidados...aquelas festas de fim de ano, formaturas, éramos convidados para tudo. No nosso tempo [...] você saia fardado pra rua, você era respeitado. A menina fazia questão de namorar um cadete. Hoje, se você é cadete, ela te joga pro lado!...Eu peguei ainda a época em que o cadete era muito bem recebido...Agora, o mundo mudou. O mundo mudou (CASTRO,2004, p. 136).

A construção de um estilo de vida próprio através das escolas de formação: o habitus e o ethos militar.

O estilo de vida imposto aos agentes quando ingressam na carreira militar não é incorporado facilmente. É necessário um complexo trabalho que irá formar o habitus e o ethos militar, que possui características específicas da instituição FFAA e foge aos padrões usuais da sociedade civil. Há também uma distinção na formação do habitus e do ethos de oficiais e praças, algo que será refletido na interação destes com a instituição e com o mundo que os rodeia, ou seja, os “defora”.

Ao ingressarem nas fileiras do Exército, os agentes sofrem um choque cultural e passam por um processo de socialização que resultará na incorporação do habitus da classe militar e na produção da filiação dos indivíduos a esta classe.
Dentre aqueles que vêm de família militar o choque é consideravelmente menor pois parte significativa deste habitus já foi incorporada pelo individuo graças ao processo de inculcação familiar e escolar. O conceito de habitus é central nesta discussão por permitir a compreensão da maneira pela qual os indivíduos se tornam agentes sociais. De acordo com Bourdieu (2009, p. 88),

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duradouras e transponíveis, estruturas estruturadas dispostas a funciona como estruturas estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente dos fins e o controle expresso das operações necessárias para atingi-los, objetivamente “reguladas” e “regulares”, sem ser em nada o produto da obediência a regras e sendo tudo isso, coletivamente orquestrada sem ser o produto da ação.

Sendo assim, a socialização se faz efetivamente quando os indivíduos adquirem disposições que passarão a serem compreendidas como evidentes, naturais, fazendo com que os agentes ajam de determinada maneira sem necessidade de lembrar explicitamente das regras que precisam seguir. Num estudo sobre o período de adaptação dos ingressantes na Academia Militar deWest Point, nos EUA, que dura 6 semanas e visa chocar os indivíduos com a vida militar, de forma que só aqueles com certeza de sua decisão de entrar para a vida militar permaneçam na Academia, Masland e Radway (1957, p. 199) afirmaram que

O próprio termo (beast barracks6) sugere que se trata de algo como um tratamento de choque destinado a impressionar o novo cadete com a ruptura que ele efetuou em relação à vida civil, a erradicar quaisquer hábitos desleixados que ele possa ter adquirido, a dar-lhe a confiança que provém do enfrentamento e da conquista de uma dureza apropriada, e a uni-los estreitamente a seus companheiros submetidos à mesma experiência.

Desta forma, só após esse choque cultural o indivíduo é considerado apto para o ingresso na carreira.

O habitus contém em si o ethos, variável importante para compreendermos melhor esse processo de socialização militar, e que corresponde a normas e valores morais que regulam a conduta cotidiana de maneira inconsciente. Dentre os militares do exército podemos afirmar que o ethos sofreu pouquíssimas mudanças com o passar dos anos, demonstrando o conservadorismo da instituição pois este conservadorismo, por sua vez, possui importância na permanência e reprodução da instituição.Uma das características mais acentuadas na instituição neste sentidoé a necessidade da comprovação da virilidade, acompanhada de uma homofobia7, como percebemos na fala de um cadete do 3º ano da AMAN, onde o foco principal do discurso seria a autonomia e desprendimento necessários para que o indivíduo seguisse a carreira militar, mas que aparece investido de uma concepção moral do que é ser militar ou ainda “homem”.

Aqui na academia é lugar para homem, não é lugar para criança, nem viadinho. Então o cara quando vem pra cá...pô, o cara que quer virar homem de qualquer maneira. Eu cheguei aqui acostumado à comidinha da mamãe, roupa passada, roupa lavada...Eu cheguei aqui e tive que me virar, pô, entendeu? (CASTRO, 2004,p. 33).

As divisões entre civis e militares, principal par de oposição dentro da instituição, coloca a homologia apresentada no Quadro 1, na página seguinte, sempre expondo o ethos militar, todos os valores morais da instituição. A hexis corporal do militar (em resumo, as posturas, disposições do corpo e relação com o corpo) é outro ponto importante de atentarmos. Injunções sérias dirigem-se ao corpo, afinal, diferenças entre civis e militares são inscritas nestes,

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6 Em inglês, termo que denomina o período de adaptação.
7 Sobre este tema ver D’Araujo (2003).


de forma que a instituição sente necessidade de ensinar o que é ser um militar,
algo que tem início com a mudança na vestimenta (a adoção da farda), o corte de cabelo (muito curto) e que inclui aprender a ser “homem”, aprender a maneira de falar, de andar, de se comportar e até mesmo de dirigir o olhar a outrem própria do militar.

Dentro do campo dos militares, as disposições corporais são de extrema acuidade. O corpo dos militares é parte dos seus pertences de trabalho, tão importante quanto o seu armamento. O corpo de um militar é sempre passível de exposição, de ser posto em xeque, em perigo e ao risco da morte, motivo pelo qual eles são obrigados a levar o mundo em que vivem (com todos os seus treinamentos e simulações) com seriedade:

Você vai dar um tiro de 13 km, por exemplo. Então, um milionésimo que você altera ali na manivela de direção pode dar uma diferença de 500, mil metros lá na frente. Ou seja, pode errar o tiro ou, o que é pior, acertar em tropas do seu próprio exército (CASTRO, 2004, p. 63).

O corpo do militar está fortemente investido na relação dele com o mundo, de pertencimento ao mundo, sendo obrigado a sofrer modificações em favor desta relação. Os militares aprendem pelo corpo; e por ele é possível enxergarmos a ordem social da qual fazem parte, afinal atributos físicos (e morais) distinguem e tornam reconhecíveis os militares mesmo quando eles não estão fardados, ou seja, mesmo quando estão destituídos da marca mais visível da corporação. A declaração de um cadete da AMAN ilustra com precisão o que pretendemos dizer:

 E a gente tava de férias, eu tava meio barbudo. Tava na estrada há cindo, seis dias e, onde a gente passava, o pessoal: ‘vocês são militares, tão vindo de onde?’. Quer dizer, apesar do cabelo grande e de estar todo desfigurado, de short e suado, a pessoa percebia. É pelo modo de falar, de se trajar, de se postar (CASTRO, 2004, p. 41).

A disciplina, um dos pilares no qual a instituição está firmada, normaliza os agentes, expulsa o ser existente antes naquele corpo para lhe dar uma nova fisionomia: a da instituição. O corpo do militar deve ser útil, submisso, funcional para a instituição a que ele serve.

O soldado é antes de tudo alguém que se reconhece de longe; que leva os sinais naturais de seu vigor e coragem, as marcas também de seu orgulho: seu corpo é o brasão de sua força e de sua valentia; e se é verdade que deve aprender aos poucos o ofício das armas – essencialmente lutando – as manobras como a marcha, as atitudes como o porte da cabeça se originam, em boa parte, de uma retórica corporal da honra. (FOUCAULT, 2002, p. 117).

Para tanto, a disciplina age no corpo físico e no aspecto político, gerando seres que obedecem ao conjunto de regulamentos que regem a conduta do militar, impondo-lhes obrigações, limitações e proibições, dentro da lógica da dominação, já que os corpos disciplinados são submissos e, à medida que as forças físicas aumentam, a política diminui (FOUCAULT, 2002).

As regras de comportamento, inculcada desde a entrada do estudante na academia militar (em alguns casos nos colégios militares), visam formar um saber-fazer próprio das Forças Armadas, onde a utilização da violência é uma das exigências objetivas. Para tanto, as atividades físicas ocupam parte significativa do cotidiano do novo militar, com a realização de exercício, ordens unidas e treinamentos de rituais, em especial daqueles que estão nos primeiros anos da carreira.

Durante a adaptação as aulas ainda não começara e o dia é ocupado com muita “ordem unida” (treinamento coletivo de marchas, continências e posturas militares), educação física, instruções sobre os regulamentos. (CASTRO, 2004, p. 19).

Todavia, devemos lembrar que essa rotina e o enclausuramento8 é também uma tática antideserção; tenta (com sucesso) anular os efeitos da liberdade demasiada que propicia o surgimento de desertores e questionadores, facilitando a “domesticação” através da disciplina. Por isso os indivíduos são sempre monitorados; as presenças e ausências são conhecidas, o comportamento de cada um é detalhadamente reportado em fichas que os acompanharão durante toda a carreira militar; os méritos e deméritos são medidos, a coerção acontece por toda parte, durante toda a vida militar.
Muitos ritos são inseridos no cotidiano do militar, a fim de facilitar o desenvolvimento do habitus próprio, algo indispensável para a existência dentro do campo militar. Estes ritos da instituição

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8 Entre os militares das três Forças é obrigatório a permanência nas Academias durante os quatro ou cinco anos de formação do oficial, sendo liberados apenas os finais de semana e quando não ocorrerem eventualidades. Os alunos do 1º ano passam por um período de adaptação de 1 mês que inclui a permanência na Academia inclusive nos finais de semana. Para os sargentos que estão sendo formados na EsSA, o regime é de internato.



Constituem apenas o limite de todas as ações explícitas pelas quais os grupos trabalham para inculcar os limites sociais, ou, o que dá no mesmo, as classificações sociais, e naturalizá-las sob a forma de divisões corporais, a hexis corporal, as disposições, das quais se sabem serem tão duráveis como as inscrições indeléveis da tatuagem, e os princípios coletivos de visão e de divisão (BOURDIEU, 2001, p. 172).

Dentre os ritos, encontramos aqueles que fazem parte do cotidiano, e outros,trabalhados e ensaiados durante os anos de curso, que servem para simbolizar o fim de um período. Todos os dias os cadetes devem, após o café, às 6:40, estarem prontos para a formatura geral, por exemplo, indicando que o dia começou. Outra solenidade ritual acontece após o período de adaptação e a matrícula, onde os novatos fazem a entrada pelo Portão Monumental (no caso da AMAN), que separa física e simbolicamente a Academia do mundo exterior9. Neste exemplo, o passar pelo portão simboliza a primeira vitória do cadete dentro da instituição, pois apenas os que não desistiram no período de adaptação o transpuseram.
Muitos outros ritos estão presentes no cotidiano militar, entretanto, nas solenidades como eventos de entrega de diplomas, formaturas e mesmo em dias especiais tal qual a proclamação da República, os rituais adquirem novo significado, pois são marcas distintivas da instituição, cada um deles é como um “emblema feito gesto” (PINTO, 1975, p. 20).

A mobilidade social entre os militares do exército: o papel do habitus na reprodução social

 O habitus é um forte fator de reprodução social. Indivíduos portadores do mesmo habitus agem de maneira semelhante mesmo sem perceberem tal fato. Assim, a escolha do cônjuge, da profissão, do carro, do partido político, dentre tantas outras, demonstram um “gosto pessoal” que pouco possui de individual, pois foi “imposto” pelo habitus de classe, reproduzindo, como centenas de indivíduos portadores do mesmo habitus, a ordem social anterior à sua escolha, e garantindo coerência e unidade às práticas coletivas.
Estudos anteriores revelam uma forte tendência de reprodução social entre os militares da patente de oficias, através do recrutamento endógeno no campo. Castro (1993) utilizando arquivos da própria instituição militar, constatou que a quantidade de filhos de militares cursando a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) é alta e vem crescendo (21,2% entre os anos de 1941-3; 34,9% entre 1962-6; 45,4% entre 1987-9).

Mas as estatísticas também revelam uma outra faceta da carreira, que é a possibilidade de ascensão social através do Exército, pela garantia de um serviço público vitalício. Dentre os filhos de militares que ingressaram na carreira das

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9 Do lado de fora do portão está a inscrição “entrada dos novos cadetes” e do lado do oposto, pelo qual os alunos passarão ao terminarem os 4 anos de estudos, está escrito “saída dos novos aspirantes”.



Armas no ano de 1970, 28,5% eram filhos de oficiais superiores e 72,5% eram filhos de oficiais subalternos e praças; em 1985, 31,9% eram filhos de oficiais superiores e 68,1% de oficiais subalternos e praça e, por fim, entre os anos de 200-2002, 41,9% dos ingressantes eram filhos de oficiais superiores e 58,1% de oficiais subalternos e praças. Tais estatísticas indicam uma mudança no perfil já que o recrutamento endógeno ganhou força dentro de uma “casta” (os oficiais) que, pela melhor condição social, optavam por dar aos filhos educação em escolas civis. Entretanto, a mudança não é bem vista pelos oficiais mais velhos, que acreditam ser esta “mistura” de habitus dos oficiais e dos praças, bem como de indivíduos vindos das classes menos abastadas da sociedade, um fator de diminuição do “espírito militar” que podemos entender como do habitus, ethos e hexis militar e ainda, do capital simbólico:

Eu tenho uma dúvida dentro de mim: se essa doutrinação que se faz, se essa educação moral que se prega vai mudar a mentalidade que ele (recém-ingresso não filho de militar e vindo de classe baixa) traz do berço, da formação, de subir de qualquer jeito [...]. Isso pode trazer alguma deturpação nesse espírito que se tenta (CASTRO, 2004, p. 137).

Como notado pela fala acima reproduzida, a “mistura” entre civis e militares não é bem recebida em especial para os militares mais velhos, que batalhampela reprodução do recrutamento endógeno e, portanto, pela manutenção do habitus de classe e da reprodução social. Abaixo o excerto mostra que, mesmo quando recrutados entre os integrantes da instituição – em especial entre praças e oficiais subalternos - há ressalvas, dado o habitus de classe diferenciado, já que estes ocupam o extrato mais baixo na cadeia hierárquica do Exército:
Havia – um conforto para nós – havia muito filho de militar. Mas quando você vai ver, a maioria é filho de oficiais subalternos.. . Então isso é uma preocupação [. . . ] . É uma proletarização violenta...de uma classe que tem que ter um valor moral-ético muito forte. Tem que ser exemplo! [. . . ] (CASTRO, 2004, p. 137).

Por esta maneira de pensar que muitos militares passam a inculcar em seus filhos o “gosto” pela carreira das Armas, desde a mais tenra idade. Assim para muitos destes futuros oficiais, a educação primária, recebida no ambiente familiar, já se encarregou da produção de um habitus primário que corresponderá, em grande medida, ao habitus do campo militar. Os esquemas de percepção e de ações transmitidos pelos pais militares serão reforçados com a entrada do estudante na academia militar. A exterioridade interiorizada pelo convívio familiar é, no mínimo, semelhante à que o cadete encontrará na instituição.

Este fator facilita a adaptação do indivíduo na vida militar e muitas vezes é o que define a escolha profissional do filho de militar, afinal, ele tende a perceber o mundo em função do seu habitus primário, de maneira que as disposições adquiridas em seguida influenciam a aquisição de novas disposições. É desta forma que muitos filhos de militares chegam às academias alegando serem dotados de “vocação” para o exercício militar; “histórias como ‘desde pequenininho sempre gostei dessas coisas’ padronizadas” (CASTRO, 2004, p. 38). Mas existem ainda aqueles que, dada a “ordem ordinária das coisas” impõe esta escolha, seja pelas condições materiais de existência, pela violência simbólica ou pelas “surdas injunções”. O indivíduo é muitas vezes pressionado pela família para seguir o caminho do pai, como exemplifica o excerto retirado do texto de (CASTRO, 2004, p. 38): “não sei se algum cadete já comentou com você. . . a pior pressão é a de casa”.

O habitus escolar, no caso daqueles que tem origem em família militar e cursam o colégio militar, contribuem mais ainda para que a escolha pela profissão seja realizada no seio das Forças Armadas. Podemos dizer que, em tais casos, não há grandes chances de que o indivíduo venha a escolher uma carreira civil, pois o habitus, não obstante ser uma estrutura interna passível de reestruturação, é cumulativo, ou seja, os habitus mais antigos condicionam as aquisições recentes, de forma que cada nova disposição adquirida se soma a um conjunto já existente, gerando um só habitus. Estudos anteriores mostram que 37,3% dos alunos matriculados no primeiro ano do AMAN entre 1980 e 1990 eram oriundos de colégios militares, 46,6% haviam cursado a Escola Preparatória de Cadetes do Exército (ExPCEx), 1,5% vinham do Colégio Naval e da Escola Preparatória de Cadetes das Armas (EPCAr)10.

O habitus passa a impressão de escolha nas representações e práticas (quando na realidade o agente, ao “escolher” está apenas mobilizando o habitus em que foi moldado), de forma que aquilo que muitos dos militares classificam como “vocação” ou livre escolha não deixa de ser habitus de classe incorporado e transformado em prática. O habitus de classe garante, consequentemente, que os indivíduos façam suas escolhas dentro de um leque de opções dado de maneira a garantir a perpetuação das relações objetivas entre as classes. Não obstante as observações acima, devemos lembrar que as práticas e representações dos agentes não são totalmente determinadas pelo habitus, pois eles são capazes de realizarem escolhas, ainda que não totalmente livres, já que estas são orientadas pelo habitus. No caso dos militares, a desistência da carreira após o ingresso é difícil e depende em grande medida da aprovação e apoio familiar, sendo que este apoio nem sempre existe:

É incrível, você chega em casa contando assim: ‘tô pensando em sair, não aguento mais...’, Vem tio, tia, avô, avó, até parente que você quase nunca tá em contato dizer pra você: ‘Não, fica lá que...’. Foi o que aconteceu comigo. Eu realmente tava pensando seriamente em sair (CASTRO, 2004, p. 38).

Portanto, a reprodução social desta elite é desejada pelos próprios agentes da instituição.

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10 A idade média de ingresso nas escolas são, respectivamente, 10-11 anos, nos colégios militares; 14-15 anos nas escolas secundárias (como a ESPCEx) e 17-19 anos na AMAN. Ver Castro (1993).



Considerações Finais

Neste trabalho procuramos mostrar o processo de produção e reprodução do habitus militar, categoricamente importante para a constituição do estilo de vida destes profissionais. Vimos a importância das estruturas familiares e escolares na formação do habitus e como a inculcação das regras da instituição conseguem normalizar os agentes.
As regras do campo militar, dentre as quais destacamos a obediência à hierarquia e à disciplina, agem como formadores do habitus coletivo e distinguem os civis dos militares. A importância do ethos, que institui normas e valores morais é destacada por garantir a regularidade da conduta cotidiana dos militares. Com relação à hexis corporal, tentamos demonstrar como é o processo de sua construção e a importância que ela adquire na vida militar, já que este precisa, logo ao entrar na Academia, aprender a “ser” militar, o que inclui uma maneira específica de andar, falar, se vestir, cortar os cabelos e se dirigir a outrem. Buscamos ainda demonstrar como a reprodução da distinção hierárquica entre oficiais e praças é inserida tanto na formação do habitus quanto do ethos de cada uma destas “castas” e quais são os reflexos desta distinção no estilo de vida de cada um.
A relação dos militares com seu corpo, tido como um instrumento de trabalho, também foi explorada, procurando demonstrar que os habitus se inscrevem também neste corpo que, disciplinado, é útil e valioso, além de ser um distintivo entre eles e os civis. Os ritos aos quais os militares estão sujeitos diariamente, como dito no texto, são tidos como a situação-limite ao qual os limites e as classificações sociais são naturalizados sob forma da hexis corporal, que por sua vez agirá de forma a transformar e naturalizar a visão de mundo dos militares e a divisão entre estes e os civis; além de estabelecerem a distinção, dentro da caserna inclusive, entre os que passaram ou não por ele.
O texto abordou o papel do habitus na reprodução social, que, como vimos, é incitada pelos militares. A vocação, sempre tão aclamada pelos que seguem carreira de nível superior nas Armas acabou revelando-se, afinal, produto de inculcações, disposições adquiridas anteriormente, seja no seio da família ou das escolas, mostrando-nos como o habitus age de forma inconsciente transmitindo a falsa impressão de escolha racional dos indivíduos.
Por fim, concluímos que cada militar, em especial os oficiais, é, na verdade, variante de um habitus de classe que tende a se reproduzir através dos recrutamentos endógenos, o que explica a forma homogênea de agir e pensar de todos os que pertencem (ou pertenceram) a esta classe.

Referências:

BONNEWITZ, P. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Trad. Lucy
BOURDIEU, P. Meditações pascalina. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2001.
. O senso prático. Trad. Maria Ferreira. Petrópolis: Vozes, 2009. CASTRO, C. A origem social dos militares: novos dados para uma antiga discussão. Novos Estudos Cebrap, n. 37, p. 225–231, 1993.
. O espírito militar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. D’ARAUJO, M. C. Pós-modernidade, sexo e gênero nas Forças Armadas. Security and Defense Studies Review, v. 3, n. 1, Spring 2003.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2002.
LEIRNER, P. C. Profissão militar, estado e democracia: uma discussão concietual. In: ANPOCS (Ed.). Anais... Caxambú: ANPOCS, 2003. 27º Encontro Anual da ANPOCS. Disponível em: <http://www.anpocs.org/portal/index.php?option= com_docman&task=doc_download&gid=4257&Itemid=316>. Acesso em: 22 ago. 2014.
MASLAND, J.; RADWAY, L. Soldiers and schools: military educations and national policy. Princenton: PUP, 1957.
PINTO, L. L’armée, le contigente et lês classes sociales. ARSS, n. 3, p. 18–41, 1975.
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