O PROTAGONISMO DA CULTURA E A VISÃO
ESTRÁBICA DO GESTOR CULTURAL.
“ O melhor é não juntar pensamentos divergentes,
mas, criar unanimidades burras”
Pawlo
Cidade.
Pawlo Cidade é escritor, produtor e gestor cultural. Autor da cartilha “Como Transformar a Cultura em um bom negócio – 17 perguntas para você se torna um empreendedor cultural”, Editora A5, Itabuna, Bahia, 2014.
Convergente,
divergente e vertical
Outro dia ouvi de
um amigo que era melhor falar por metáforas porque evita dentes quebrados e dor
de cabeça na inteireza. Isto porque as pessoas não estão preparadas para ouvir
críticas ou sugestões sobre o que vem fazendo na vida profissional. O fato
é que, sem tergiversar, vou direto ao ponto: os governos municipais não se dão
conta que colocam na pasta da cultura pessoas com visão estrábica. E, tal qual
o estrabismo – sem nenhuma menção pejorativa nem preconceituosa para quem
possui este problema muitas vezes hereditário – podemos afirmar que a visão
gerencial no campo cultural, de quem está nesta condição, é classificada de
três maneiras:
1. Convergente
– quando o gestor não consegue enxergar que o Conselho de Cultura pode ser um
aliado poderoso na sua gestão. Deste modo, todas as suas atitudes são atitudes
voltadas para dentro de si mesmo;
2. Divergente
– quando o gestor radicaliza suas decisões e se fecha no seu protagonismo
cultural onde só ele é capaz de promover uma determinada ação e
3. Vertical
- quando o gestor planeja sem ouvir as pessoas mais interessadas no Plano de
Ação do órgão máximo da cultura: os artistas.
Política de Balcão
e Pires na Mão
Quase sempre este
tipo de comportamento ocorre quando o gestor traz enraizado em sua experiência
duas práticas: a primeira é a “política de balcão”, do favorecimento, do
clientelismo, do paternalismo, dos critérios obscuros e das motivações
semelhantes como bem diagnostica TURINO (2009): “Um hábito que tanto
infelicitou, e infelicita, nossa prática cultural”. Xô! “Quebrem o balcão!” –
Diziam os cineastas do Estado de Alagoas para o governo alagoano que até 2013
era o único estado nordestino que não possuía uma política cultural de fomento.
A segunda é a
prática do “pires na mão”, cuja origem se diz que surgiu com os prefeitos que
cobram dia-após-dia de seus parlamentares emendas para resolver as cobranças da
população. O ato em si de cobrar não conceitua a expressão “pires na mão,”,
porém, o vai-e-vem à Brasília, a exigência de documentação para liberar a
emenda, a modelagem obrigatória de projetos, estar em dia com o Cadastro Único
para Exigências de Transferências Voluntárias – CAUC - transforma o prefeito
num pedinte de primeira grandeza. Assista ao vídeo “O calvário dos prefeitos para
conseguir recursos – A história do pires na mão”, no Youtube, e verifique.
São estas práticas
do gestor cultural que reduz a Cultura à cereja do bolo. Ou seja, a Cultura
passa a ser vista aqui como a prima pobre, a pasta coitada, a que sempre é
relegada a segundo, terceiro ou décimo plano. O gestor traz consigo a
marca da esfera pedinte, amadora, chata, que é lembrada apenas quando o governo
inaugura alguma coisa.
A situação complica
quando estas três formas são simultâneas e o gestor, perdido, nunca tem certeza
de nada e está sempre ajustando sua prática à prática do outro. Torna-se um
camaleão sem cor, não sabe fundir ideias e propostas, desconhece o conceito de
convergência e acredita que o melhor é não juntar pensamentos divergentes, mas,
criar unanimidades burras.
Para que haja
protagonismo cultural
Para que a Cultura
assuma de vez seu protagonismo no campo das políticas públicas e na gestão
municipal e deixe de “ser vista como acessória no conjunto das políticas
governamentais” (BOTELHO, 2001) é preciso considerar alguns aspectos:
a) O cargo deve ser
técnico. Além de técnico o gestor precisa ser político;
b) Deve possuir
qualificação e experiência - condições indispensáveis;
c) Sem bajulação ou
lisonjeio gozar do apoio do prefeito;
d) Precisa convencer
os companheiros de governo que a Cultura é transversal. Para isso terá que
saber articular as demais esferas do governo como um programa conjunto;
e) Seu plano de
ações deve prever atividades que estimulem o pertencimento junto à comunidade.
Porém, isso só será possível se ele estiver em constante diálogo com ela;
f) Tem que definir
logo no início do seu mandato qual o conceito de Cultura que irá trabalhar;
g) Mapear toda a
comunidade cultural. Na sua sala tem um mapa onde ele pode traçar sua ação, metas
e objetivos já alcançados, identificando grupos, instituições, coletivos no
Município;
h) Quando pensar em
programas e projetos que democratizem o acesso aos bens culturais precisa
primeiro pensar na democracia cultural. Não adianta levar orquestra sinfônica
para a comunidade se a comunidade nem sequer foi ouvida se queria ver uma
orquestra sinfônica;
i) Esquecer de vez
a função de produtora. Um órgão de cultura não pode produzir eventos de todos
os gostos e todos os tipos. Precisa fomentar, criar oportunidades e condições
para que os verdadeiros promotores de eventos desenvolvam seus projetos;
j) No seu
planejamento estratégico não pode faltar programas de formação e capacitação
dos artistas e técnicos. Deve criar objetivo e metas que possam ser alcançados.
Não pode trabalhar de forma empírica e ao sabor do vento. Do vento do
orçamento, do aval do prefeito, da boa vontade da secretaria da fazenda. Se há
planejamento financeiro, há disponibilidade orçamentária. Os imprevistos podem
ser sanados com os parceiros locais. E, os parceiros não podem ser apoiadores
de ocasião, nem amigos afins, mas conectores que acreditam no processo de
transformação através da Cultura;
l) Seu principal
foco deve ser a reterritorialização. “Mesmo no âmbito da cultura global, surgem
espaços destinados aos produtos “típicos”. A reterritorialização contemporânea,
com a emergência cultural das cidades e regiões, tem sido a contrapartida da
globalização cultural. Assim, o panorama atual aponta para um desigual e
combinado processo de globalização” (RUBIM, 2006). Sem valorização do local não
consegue ganhar apoio da comunidade cultural. Fica isolado, desacreditado e dá
a impressão de que não faz nada. E quando faz, passa despercebido;
m) Suas estratégias
devem envolver o Conselho Municipal de Cultura, a captação de recursos para o
Fundo Municipal de Cultura e selar de vez o Sistema Municipal de Cultura;
n) Deve promover a
participação efetiva dos artistas locais em grandes datas comemorativas, a
exemplo do Carnaval, São João, Réveillon, aniversário da Cidade, dando-lhes
condições dignas com camarins próprios, cachês justos e tratamento semelhante
ou melhor do que os artistas visitantes.
Ora, uma ação de
governo que se pretenda progressista, ou transformadora, tem a Cultura como
prioridade, assinala TURINO (2009). Não dá para agir assim se os gestores
culturais continuarem com esta visão estrábica e, também, míope! O que requer é
outro artigo para esclarecer – e convencer – de que um verdadeiro gestor da
cultura tem que ter olho de tandera. Sua capacidade de enxergar tem que ir além
do que está no seu campo de visão.
Sem alinhamento não
há convergência
Se ele consegue
municipalizar a Cultura e ampliar o orçamento vira referência. É copiado,
lembrado e apontado como figura ímpar, e seu nome estará nos anais da história.
Se não conseguir, e nem sequer pensar assim, cada olho – assim como no
estrabismo – irá formar uma imagem diferente do objeto. Afinal, sem
alinhamento, não há convergência. É claro que neste cenário aparentemente
caótico existem bons exemplos que se espalham pelo país, como o Município de
Goiana, em Pernambuco, onde são investidos 2% do orçamento anual em Cultura.
“Estamos escrevendo uma nova página na rica e singular história de Goiana.
Somos hoje a cidade que, além de possuir um tecido cultural diversificado, nos
preocupamos em fomentar e garantir subsídios para que o fazer cultural seja
valorizado”, disse o prefeito Fred Gadelha, em entrevista na página oficial
da prefeitura da cidade.
Imagine um Conselho
de Cultura que não compreende seu papel e sua função. Agora, some-se a isso um
gestor cultural despreparado e divergente. Qual o resultado? Uma política
cultural inexistente e um sistema inoperante.
Todos estes aspectos
aqui elencados devem ser considerados de forma conjunta e nunca isoladamente.
Senão, sua administração recairá em uma ou mais classificações estrábicas.
Porém, se o seu planejamento excluir qualquer forma imediatista, estará
priorizando escolhas de médio e longo prazo, dando a todos a possibilidade de
escolhas e contemplando as várias dimensões da cultura sem nenhum preconceito
ou dirigismo: “O Estado tem de estar a serviço da sociedade e nunca o
contrário” (TURINO 2009). Segundo ele para que a administração pública cresça é
preciso “assumir uma postura mais humilde e menos impositiva quanto à
proposição e execução de programas”. É desta maneira que Estados e Municípios
podem se tornar articuladores, jamais produtores.
Considerações
finais
Afirmar que: os
governos municipais não se dão conta que colocam na pasta da cultura pessoas
com visão estrábica não faz desta sentença uma regra. Afinal, toda regra tem
exceção. Melhor, exceções. E mais, garantir o investimento de 1% - como prevê a
PEC 421 - ou 2% como deseja o Município de Goiana para o fomento, não são
suficientes para a construção de uma política cultural de descentralização de
recursos. Há de se considerar as forças artístico-culturais, organizadas, que
tentarão cooptar o maior número possível de investimentos para suas áreas. E,
se o gestor não tiver a capacidade de saber “dividir o bolo”, controlar os
egos, fortalecer as tradições, impor limites e provocar intervenções,
dificilmente teremos ações estruturantes, projetos sustentáveis e programas de
fortalecimento para a diversidade cultural.
E, quando as forças
organizadas se deslocam como tratores contra os gestores estrábicos, eles,
acuados, sem planejamento, partem para uma política de eventos – imediatista -
na contramão da política cultural, formando “um conjunto de programas isolados
– que não configuram um sistema, não se ligam necessariamente a programas
anteriores nem lançam pontes necessárias para programas futuros – constituídos
por eventos soltos uns em relação aos outros” (COELHO, 2004).
O gestor cultural
precisa pensar localmente, agir globalmente e se fortalecer coletivamente. O
desejo de construir em conjunto, de unir forças não o torna incapaz na condução
de seus trabalhos. Pelo contrário, demonstra liderança, legitimidade, segurança,
competência e capacidade de congregar em um mesmo ambiente, pensamentos
divergentes, ações estruturantes e relações horizontais.
REFERÊNCIA
TURINO, Célio. Uma gestão cultural
transformadora, 2009. Disponível em: http://www.fmauriciograbois.org.br/cultura/index.php?option=com_content&view=article&id=10:gestao Acesso
em: 21 de nov. 2015.
RUBIM, A. A. C. Políticas Culturais
entre o possível e o impossível. In: Encontro de Estudos Multidisciplinares em
Cultura, 2., 2006. Salvador-Bahia.
BOTELHO, Isaura. Dimensões da cultura
e políticas públicas, 2001. Disponível em:http://www.guiacultural.unicamp.br/sites/default/files/botelho_i_dimensoes_da_cultura_e_politicas_publicas.pdfAcesso
em 21 de nov. 2015.
COELHO, Teixeira. Dicionário crítico
de política cultural. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004. 300 p.