O
que você entende quando alguém diz que “isso é uma norma!” ou que determinada
“norma” deve ser seguida? Sem dúvidas, pensará que alguém quer que outra pessoa
se comporte de dada maneira ou que determinada organização e modo de proceder
sejam adotados, isto é, deduzirá que há uma vontade de influenciar
imediatamente o comportamento alheio ou a ordem das coisas, e que não se trata
de um mero querer, como quem pede e deixa ao critério do outro atender ou não o
pedido, mas que há um poder ou força junto àquela emissão de vontade capaz de
ameaçar ou mesmo constranger o outro a obedecer. E ao pensar dessa maneira, já
se poderá vislumbrar alguns elementos ou características essenciais de qualquer
norma. Com efeito, toda “norma”, por sua própria natureza, traduz-se como
linguagem. Mas não qualquer linguagem, e sim daquela variedade em que predomina
a função apelativa.
Foi
o linguista russo Jakobson quem
enriqueceu a Teoria da Comunicação com a ideia das seis funções essenciais da
linguagem; a de que, em todo ato de comunicação, há fundamentalmente seis
elementos envolvidos: o Emissor (o sujeito ativo, quem emite
a Mensagem), o Receptor (o sujeito passivo, quem recebe a Mensagem), o Canal
de Comunicação (o suporte, mídia ou veículo em que a Mensagem é
transmitida), a Mensagem (o objeto subsistente num conjunto de símbolos que foi
codificado pelo Emissor, através daquele dado Canal, para ser decodificado pelo
Receptor), o Código Linguístico (o sistema de codificação e decodificação
dos símbolos a que o Emissor e o Receptor precisam recorrer para conseguirem
entre si associar dado Significante,
isto é, dada aparência do símbolo, ou dado estímulo sensorial a que se atribui
um valor simbólico, a determinado leque de Significados
possíveis) e o Contexto (a correlação entre a Mensagem e a Realidade,
inclusive quanto às relações e interações do Emissor e do Receptor que são
pressupostas àquela Mensagem, que viabilizará ao Receptor, no seu processo de
interpretação dessa Mensagem, que parte da confrontação dessa Mensagem com o
Código Linguístico adotado, atribuir maior probabilidade a dados Significados
do que a outros possíveis, e eliminar os Significados menos prováveis, até se
decidir por uma significação coerente como sendo o mais provável sentido da
Mensagem).
E
embora todo ato comunicacional apresente sempre esses seis elementos
fundamentais, é também possível enfatizar um deles em detrimento dos demais, o
que faz predominar, naquele caso, determinada função da linguagem: quando se
enfatiza o Emissor, temos o
predomínio da função Expressiva (que consiste na exteriorização dos estados
emocionais do Emissor); quando se enfatiza o Receptor, temos o predomínio da função Apelativa (que
busca influenciar o Receptor, sobretudo em seu comportamento); quando se
enfatiza o Canal de Comunicação,
temos a função Fática (que busca testar o funcionamento adequado do
próprio canal ou se o diálogo está sendo acompanhado pelo outro); quando se
enfatiza a Mensagem em si, temos a função
Estilística (que busca o aformoseamento ou embelezamento da Mensagem
transmitida); quando se enfatiza o Código
Linguístico, temos a função Meta-Linguística (que busca
verificar se o mesmo Código está sendo usado entre o Emissor e o Receptor, ou
esclarecer dúvidas sobre o Código em si, ou sobre algum símbolo ainda
desconhecido); e quando se enfatiza o Contexto,
temos a função Referencial (em que o mais importante é a Denotação ou
Descrição, isto é, a informação transmitida da maneira mais completa, acessível
e imparcial possível). Assim, em uma norma,
mesmo que por vezes seja evidente que há, em boa proporção, outras funções sob
emprego, sobretudo a Referencial ou a Meta-Linguística, usa-se a linguagem
especialmente com vistas a fazer predominar a função Apelativa, pois o que se
quer é preponderantemente afetar o outro.
Ainda
que estejamos no campo puramente ético, em que alguém está só, porém tentado a
fazer ou deixar de fazer algo que contraria a sua própria consciência iluminada
pelos seus melhores valores e ideais, e dirige uma norma a si mesmo, para que
controle o impulso e se mantenha dentro do seu padrão ético ideal, pode-se
vislumbrar, mesmo com essa unilateralidade (pois a pessoa é quem dirige a norma
para si mesma), mesmo com essa interioridade (pois o conflito pode ocorrer
apenas no íntimo da pessoa, sem se exteriozar), mesmo com essa ausência de
coerbilidade ou coercitividade (pois não há outros que estejam diretamente a
ameaçar ou coagir para que a norma seja seguida), que há psicologicamente um Ego em confronto com outras instâncias
intrapsíquicas, sobretudo com o seu Id,
ou Sombra ou Alter-Ego, ao qual o Ego se dirige apelativamente como se fosse um
Tu, alguém diferente dele mesmo. Portanto, o fato de as normas consistirem no
uso da função apelativa da linguagem, que se destina a influenciar diretamente
o outro, não é descaracterizado nem mesmo no caso de normas puramente éticas,
unilaterais, íntimas, pois se houve necessidade de tal norma, por certo há um
conflito interior, e, se há conflito, há lados antagônicos, há Eu e há Tu. As
normas são usos da função Apelativa da linguagem para influenciar diretamente
esse Tu, mesmo que presente apenas nas nossas próprias projeções psicológicas.
Ocorre
que não é qualquer utilização da função apelativa da linguagem aquela que
normalmente identificaríamos com uma “norma”. Oras, uma simples solicitação,
uma petição formal ou não, uma súplica ou exortação, consitem também de
empregos da linguagem na sua função apelativa, e o seu poder próprio enquanto
“pedidos” é o de perturbar o outro para sair de sua inércia e analisar o
petitório que lhe foi dirigido para tomar uma deliberação e assim dar-lhe ou
não o seu atendimento, mas o nível de imperatividade imbuído na linguagem
nessas hipóteses é tão mínimo que raramente alguém pensaria que “isso é uma
norma!”. Muitas vezes, nem mesmo a um conselho, a um parecer ou a uma
recomendação, que também são empregos da linguagem na função apelativa,
inclusive com maior nível de imperatividade que os meros “pedidos”, nós
costumamos reconhecer o caráter de “norma”. Apesar disso, tanto os Pedidos
quanto os Conselhos possuem a mesma natureza das normas: consistem em
sentidos da linguagem na qual há predomínio daquela função que se destina a
influenciar direta e imediatamente o comportamento alheio. Como diria Norberto
Bobbio, são todas proposições prescritivas. Mas costumamos reconhecer aquele
caráter de “norma” apenas àqueles empregos da linguagem predominantemente sob a
função apelativa – ou seja, apenas àquelas proposições prescritivas – que se
apresentem naquele nível máximo de imperatividade, e que, por isso, bem chamaríamos
de Imperativos.
Note-se
que isso não possui necessariamente qualquer relação com a conjugação dos
verbos no modo imperativo, ou com as frases imperativas. Se surge a pergunta
“quer me passar a grana, em silêncio?”, em um beco escuro, de um meliante
armado, para você desprevenido e sozinho, isso não é, de modo algum, uma mera
frase interrogativa, por causa do elemento Contexto, e do processo de
interpretação que deve ser realizado tanto pelo Receptor nessa situação de
assalto, quanto por qualquer um de nós, em tantas outras situações cotidianas.
O sentido que se obtém ao final do processo de interpretação, nesse caso, é
genuinamente o de uma norma, de uma imposição de algo que deve-ser, de um Imperativo.
Por isso, temos desde logo de ficar atentos para a diferença entre o elemento
Mensagem, com o qual nos deparamos, enquanto Receptores, que irá configurar
apenas o ponto de partida, o início, do processo de interpretação, e o que se
obtém lá no final desse processo, o sentido (re)construído após a confrontação
dessa Mensagem com os elementos Código Linguístico e Contexto. É possível que a
Mensagem codificada pelo Emissor para veicular uma norma se apresente sob
qualquer tipo de frase, com os verbos conjugados nos mais variados modos, pois
a norma não está propriamente no elemento Mensagem, mas no sentido que se
(re)constrói ao fim do processo de interpretação, mediante a confrontação do
elemento Mensagem, com o elemento Código Linguístico e com o elemento Contexto.
O
Receptor é o sujeito passivo apenas quando se trata de receber a Mensagem que
veio de algum Emissor distinto dele, mas esse mesmo Receptor é o sujeito ativo
do processo de interpretação, sem o qual não é possível de modo algum entender
o sentido da Mensagem recebida, pois o sentido não é de maneira alguma imanente
ou intrínseco à Mensagem. Enquanto não se possui acesso ao Código Linguístico,
o conjunto de símbolos que constituem o elemento Mensagem não passa de um monte
de Significantes, isto é, de aparências, de estímulos sensoriais, dos quais os
Significados ignoramos. Conhecer o Código Linguístico abre o leque das
possibilidades de significado que se pode atribuir àqueles símbolos, permite
decodificá-los, mas não com certeza – como quem abre um dicionário e encontra
para cada vocábulo uma dúzia de possíveis significados e acaba por ficar em
dúvida de qual desses é o mais adequado para aquela situação específica –, pois
a linguagem nunca é totalmente unívoca, e fenômenos linguísticos como a
polissemia e ambiguidade, que se referem à pluralidade ou à variação de
significados para um mesmo significante, respectivamente, em especial de acordo
com a variação do Contexto, ou como a vagueza, dentre outros, são humanamente
impossíveis de serem erradicados, e, por isso, o sentido desses símbolos em seu
conjunto, o sentido da Mensagem, mesmo com o Código Linguístico já em mãos,
precisa ser ainda definido em face do Contexto, senão, como diria Carlos
Mesters, toda a interpretação daquela Mensagem acaba por virar pretexto. E até
mesmo já de posse do Código Linguístico e do Contexto, a interpretação apenas
nos leva a um sentido mais ou menos provável da Mensagem, que o
Intérprete sempre terá de decidir, em um ato mental híbrido de razão e
de fé, se adota ou não, pois certeza absoluta nunca há nisso.
O
processo de socialização e a repetitividade de certas situações na vida social,
regidas consolidadamente pelas mesmas convenções socio-culturais a que nos
habituamos e que até naturalizamos em nós, acabam por produzir nos Receptores-Intérpretes uma série de automatismos,
em que parece até que certas Mensagens não são interpretadas, pois basta as
recebermos que já entendemos o seu sentido, sem esforço e sem demora alguma,
aparentemente. Mas isso só ocorre porque já recebemos aquela Mensagem, naquele
Código Linguístico, naquele Contexto, tantas e tantas vezes, ou fomos tão bem
ensinados, às vezes até de modo behaivourista,
com estímulo-resposta, sobre como lidar com aquela Mensagem, que o nosso consciente nem se dá mais ao trabalho de
prestar atenção nesse processo de interpretação, o qual, todavia, ainda ocorre,
necessariamente ocorre, todas as vezes, no nosso inconsciente, aonde não mais nos damos conta dele. Mas basta mudar
a forma habitual de codificar a Mensagem, ou mudar o Código Linguístico que
tradicionalmente usamos, ou mudar o Contexto da transmissão dessa Mensagem, que
a ilusão de que não ocorre interpretação desmorona, o nosso consciente precisa prestar atenção novamente, e nos damos conta de
que o processo de interpretação existe sim, toda vez que recebemos qualquer
Mensagem codificada por algum Emissor, e precisamos (re)construir o seu
sentido.
Em
vista dessas considerações, podemos até conceituar a “norma” como “o resultado
do processo de interpretação de um conjunto de símbolos codificado como uma
Mensagem, com predominância da função apelativa da linguagem, no nível máximo
de imperatividade”. A parte mais difícil desse conceito, por incrível que
pareça, não é nem entender a parte da “linguagem em que predomina a função
apelativa”, isto é, a que caracteriza a norma como uma “proposição
prescritiva”, nem a do “nível máximo de imperatividade”, isto é, a que exclui
“pedidos” e “conselhos” e se concentra nos “imperativos”, vale dizer, nos
comandos, ordens, proibições, etc, mas é a parte que gira em torno de entender
a norma, não como um mero “conjunto de símbolos”, não como a Mensagem em si,
mas como um produto do processo de interpretação daqueles símbolos em seu
conjunto, um sentido (re)construído a partir daquela Mensagem, confrontada com
o Código Linguístico e o Contexto.
A
dificuldade de lidar com isso está no grau de abstração. Os símbolos já são uma
abstração, a Mensagem já é algo abstrato. Aqui temos de dar um passo além nessa
abstração, e não nos atermos aos possíveis significados daqueles símbolos
“literalmente”, mas (re)construir o seu sentido como um todo, sobretudo em
função do Contexto, isto é, não só o ambiente físico, mas também histórico,
social, político, cultural, econômico, religioso, jurídico e dos saberes,
relações e interações que são pressupostos entre o Emissor e o Receptor, que
codificam e decodificam aquela Mensagem. Só então conseguiremos entender, para
retomar o exemplo acima, que o sentido da Mensagem “quer me passar a grana, em
silêncio?”, neste Código que é a Língua Portuguesa, naquele Contexto já
mencionado, não é interrogar coisa alguma, não é buscar informação; em vez
disso, é comandar e ordenar; é influir imediatamente sobre o comportamento do
Receptor da Mensagem, com nível máximo de imperatividade (e com ameaça física
até...), e, portanto, trata-se da comunicação de uma “norma”.
Ao
compreendermos dessa maneira o que é uma norma temos de refletir que ela
consiste em uma expressão de poder ou força do Emissor, e que pretende uma
obediência ou submissão do Receptor. É muito diferente de pegar algum guia de
receitas culinárias, ou um manual de instruções para a montagem e/ou operação
de um equipamento complexo, ou ligar o GPS no automóvel em uma viagem cujo
destino só pode ser alcançado por uma via específica, e receber aquelas
“instruções”, que alguns chamam de “normas técnicas”. Prefiro chamá-las mesmo
de “instruções”, pois não temos ali um Emissor que busca submeter um Receptor,
não há o uso da linguagem em sua função apelativa. Simplesmente, se não seguir
o passo a passo do guia culinário, não vou conseguir fazer aquela receita que
queria; se não seguir o que o manual do equipamento instrui, muito
provavelmente não vou conseguir montá-lo, por sua complexidade, menos ainda
adequadamente operá-lo; se não seguir as instruções do GPS, e não tenho
referências na viagem, vou me perder, ou, no mínimo, não vou chegar ao local em
que pretendia. O que temos nessas “instruções” são descrições, e não
prescrições; o que predomina nelas é a função Referencial da linguagem, o
caráter informativo, e não o normativo. Sempre que algo só pode mesmo ser feito
sob poucos ou só um modo, segundo as
leis científicas da Natureza, para se alcançar um dado objetivo ou finalidade,
a mera descrição disso não é uma “norma”, no sentido acima aludido.
Faço
o registro de que a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, em que
pese o nome “normas técnicas”, quando publica suas Normas Regulamentadoras –
NR, sem dúvida alguma, não faz meras “instruções”, mas faz genuinamente
“normas”. Este artigo poderia ter sido feito conforme as normas da ABNT ou de
muitas outras formas, e atingiria a sua finalidade da mesma maneira, que é o de
ser lido e comunicar algo, e formatá-lo assim ou assado, usar esse ou aquele
tipo de citação, dentre outras artificialidades, em nada influi sobre isso;
nada obstante, o padrão da ABNT uniformiza as produções acadêmicas em todo o
Brasil, e não segui-la implica que se está fora do padrão e o trabalho
acadêmico não pode ser oficialmente aceito. É uma sanção, uma penalidade; diferente
de não ser possível atingir, de qualquer outro modo, segundo as leis da
Natureza, a finalidade de escrever um artigo ou monografia inteligível. As
sanções ou penalidades são impostas artificialmente, e se aplicam naquelas
cadeias de ações guiadas pela lógica da
imputação, em que, se não for deliberadamente realizada, a consequência de
uma ação pode jamais chegar. É muito distinto das cadeias de ações e reações
naturais, guiadas pela lógica da
causalidade, em que a consequência de uma ação ocorre naturalmente, sem que
alguém precise intervir. Se realmente, ao não seguir a NR da ABNT um trabalho
acadêmico se tornasse ininteligível, e, de acordo com as leis da Natureza, só
houvesse aquela maneira de fazer aquilo, a NR seria só uma descrição, um uso da
linguagem na função Referencial, com mero caráter informativo, e portanto, não
passaria de uma “Instrução”; mas não é isso; a NR da ABNT é um exercício de
poder, fonte de “normas”, e há sanções ou penalidades para quem não as segue.
Mas
aqui temos de destacar; apesar do nome, a NR da ABNT não é em si a norma; a NR
é um texto, um conjunto de símbolos gráficos, que foi cristalizado sob uma
forma, aquela de sua publicação oficial, e que, até ser alterado, anulado ou
revogado, configura um ponto de partida necessário do processo interpretativo
para se (re)construir aquelas normas emanadas da ABNT; vale dizer, a NR é um
exemplo de elemento Mensagem que foi codificado pelo Emissor ABNT, no âmbito de
sua competência legal, no exercício de seu poder institucional, para comunicar
normas. Mas ao apenas decodificar os símbolos da NR, no início do processo de
sua leitura e interpretação, não está já ali norma alguma pronta, apenas um Texto
Normativo. Esse Texto Normativo é articulado em muitas unidades ou
trechos mais ou menos completos que se pode chamar de Dispositivos, que por
vezes chamamos de alíneas, itens, parágrafos, incisos, artigos, etc. Ao se ler
e interpretar um Texto Normativo, o produto dessa interpretação, o sentido
(re)contruído é que serão as normas. Como Humberto Avila esclarece muito bem,
não há relação biunívoca entre dispositivo e norma. Pode haver um dispositivo,
que está no Texto Normativo, mas a partir dele não se consegue (re)construir
norma alguma. Pode ser que de um só dispositivo se obtenha várias normas. Pode
ser que haja uma norma que não está em dispositivo algum, mas decorra apenas do
sistema interpretado nas normas (re)construídas a partir do(s) Texto(s)
Normativo(s).
Como
a norma não está jamais pronta e nem inteira no Texto Normativo que a comunica,
e depende da interpretação que a (re)constrói, a sua natureza não é objetiva,
nem, em verdade, subjetiva; a norma não é objetiva pois não está apenas no
objeto Mensagem, e não é subjetiva pois não está nem apenas na intenção do
Emissor, e nem apenas nas inferências do Receptor. As normas são algo
intersubjetivo, que pode ser mais ou menos objetivado, e dependem desse jogo
complexo de Hermenêutica (a ciência cujo objeto é o processo de interpretação),
que correlaciona Emissor e Receptor, como sujeitos interlocutores, Mensagem
como objeto, Código Linguístico como sistema social simbólico, e Contexto como
conexão dessas abstrações com o que é mais material na realidade, inclusive as
relações de poder, o horizonte histórico, as questões sociais, culturais,
políticas, econômicas, etc. Todo processo de interpretação possui limites, mas
também possui suas possibilidades. É por isso que quem entende melhor esse
processo consegue, muitas vezes, (re)construir o sentido de um Texto Normativo
de maneira a explorar possibilidades que antes nem se percebia que podiam estar
ali. E é isso o que os pensadores e operadores do Direito costuma fazer de
melhor, pois todo o seu treinamento é para compreender e lidar melhor com isso.
O
Direito, porém, não lida com todo tipo possível de normas, mas apenas aquelas
que possuam algumas características diferenciais. Enquanto a Ética
(a ciência cujo objeto é a Moral) e a Etiqueta (a pseudociência
cujo objeto são as “Boas Maneiras” e demais normas de polidez e “Boa Educação”
para uma convivência social mais amena) se ocupam daquelas normas mais
periféricas, que podem ser formuladas com unilateralidade (o Receptor e o
Emissor sendo a mesma pessoa), com interioridade (sem uma exteriorização do
conflito sobre o qual a norma versa), sem ameaça ou coação, isto é, sem sanção
exterior (sem resposta heterógena à violação da norma) ou com uma mera sanção
difusa, que às vezes não passa de uma repreensão, um mal-estar social, ou
expressões de força não legitimadas pelo Estado (que se tornou em nossas
sociedades ocidentais contemporâneas o pretenso detentor do monopólio da coação
institucional), a exemplo de um linchamento; o Direito se ocupa daquelas
normas tidas como mais centrais para a conservação da própria sociedade, e que,
assim, traçam da maneira mais objetiva possível as fronteiras entre o lícito e
o ilícito (jurídicos).
Quais
serão essas normas jurídicas efetivamente varia nas sociedades de acordo com o
Espaço e o Tempo, mas quando se apresentam, essas normas, com que o Direito
lida, normalmente se afiguram com características de bilateralidade (o Emissor
e o Receptor como pessoas diferentes, e quando o Receptor não cumpre
espontaneamente a norma, há implícita uma autorização para se pedir ao Emissor,
ou quem atue em seu nome, que faça o Receptor cumpri-la, mesmo que use da
coação), de exterioridade, de uma sanção organizada e até pretensamente
monopolizada pelo Estado. Mesmo excluindo da nossa apreciação as normas do
campo da Ética e do âmbito da Etiqueta, cujo descumprimento pode até ser tido
como algo imoral ou mal-educado, mas não confere
legitimidade para se usar da força para coagir os infratores a cumprir tais
normas, nem autoriza quem quer que seja a pedir esse cumprimento forçado (para
não cair no ridículo de uma ação judicial cujos pedidos consistissem em obrigar
alguém a dar “Bom Dia”, “Boa Tarde”, “Boa Noite”, dizer “Por Favor” ou “Muito
Obrigado”, e tomar banho com mais frequência), ainda resta para a seara do
Direito uma miríade de normas, que se podem classificar pelos mais variados
critérios.
Por
exemplo, na hierarquia das normas, que consiste na análise de qual Emissor tem
mais poder, qual deve ser obedecido antes em caso de haver normas conflitantes
entre si, estamos hoje, no Brasil, no estágio civilizatório de declarar que o
Emissor mais poderoso se chama Constituinte Originário. Para o nosso tempo, no
Brasil atual, esse Constituinte Originário foi a Assembleia Nacional
Constituinte de 1987-1988, e a Mensagem oficial que nos deixou foi a
Constituição da República Federativa do Brasil de 05/10/1988, um Texto
Normativo que é formalmente considerado a mais importante e essencial das
fontes imediatas de normas no Ordenamento Jurídico brasileiro; normas essas
chamadas de constitucionais, porque são fundamentais e ao mesmo tempo supremas
no sistema das normas do Direito brasileiro.
Abaixo
desse Emissor soberano, o Constituinte Originário, entidade abstrata que
personifica e ao mesmo tempo exprime ao máximo todo o poder sócio-político que
emana do povo, só mesmo o Constituinte Derivado Revisor ou Reformador, que o
nosso Congresso Nacional se tornou 5 anos após a promulgação da Constituição
Federal, para revisá-la, e que ainda hoje acaba se tornando toda vez em que
aprova Propostas de Emendas Constitucionais – PEC’s, por um quórum qualificado
de 3/5 (três quintos) dos membros de cada Casa do Congresso em nosso sistema
bicameral (formado de Câmara dos Deputados e de Senado Federal), em dois turnos
de votação em cada uma dessas Casas do Congresso Nacional, pois assim pode
mudar formalmente trechos daquela Mensagem oficial que nos foi deixada pelo
Constituinte de 1988, nos limites para esse tipo de alteração formal ditados
por aquele próprio Constituinte Originário (limites esses que impõem, por
exemplo, a todos os Poderes Constituídos e até ao Constituinte Derivado, o
respeito à Cláusulas Pétreas; de modo que, enquanto a Constituição Federal de
1988 for o Texto Normativo basilar do Brasil, não pode valer aqui norma alguma
tendente a abolir a forma federativa do Estado; o voto direto, secreto,
universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias
individuais).
Abaixo
desses Emissores, os Constituintes Derivados Revisor e Reformador, que podem
alterar formalmente dispositivos do Texto Normativo Constitucional Federal de
1988, só mesmo o Constituinte Derivado Decorrente, que, para cada Estado-membro
da Federação brasileira, foi sua Assembleia Legislativa quando, no exercício da
autonomia daquele Estado para se reger, observando os princípios da Constituição
Federal, elaborou a sua própria Constituição Estadual. E assim vamos descendo,
dos Emissores que nos deixam Mensagens para comunicar normas constititucionais, para aqueles cujas Mensagens pretendem
comunicar apenas normas
infra-constitucionais; sejam elas Supra-Legais,
como a dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o Brasil assinou e
ratificou sem seguir o rito próprio das Emendas Constitucionais; sejam elas Legais, como as que, nos três níveis
federativos (federal, estadual e municipal), nossos órgãos do Poder Legislativo
(Casas do Congresso Nacional, Assembleias dos Estados ou do Distrito Federal, e
Câmaras de Vereadores), codificam e formalizam publica e cotidianamente (leis
complementares, leis ordinárias, etc); ou sejam ainda Infra-Legais, como as que nossos órgãos do Poder Executivo
(Presidente e seus Ministros, Governador e seus Secretários Estaduais, e
Prefeito e seus Secretários Municipais) também ordinariamente emitem (decretos,
portarias, regulamentos, etc).
Vivemos
em uma sociedade tão complexa que até um só Município pode abrigar muitas
instâncias, diferentes dos Poderes Públicos, que produzem normas jurídicas: um
grupo de pessoas pretende criar um clube ou associação, então se reúne em uma
Assembleia para deliberar sobre o Estatuto daquela organização, na conformidade
com com as normas do Ordenamento jurídico estatal que condicionam e conformam
esse ato e os subsequentes. Depois de aprovado e registrado na órgão
competente, para os associados ou membros, aquele Estatuto será uma fonte de
normas. Assim também os proprietários de unidades residenciais em um novo
Condomínio, que vão se reunir em Assembleia para aprovar a Convenção do
Condomínio e depois o seu Regimento Interno. Ou uma Igreja, ou escola, ou
empresa, ou outros tipos de organização, que vão estabelecendo suas normas
fundamentais internamente. Ou até mesmo se apenas dois indivíduos que fazem um
negócio, celebrando entre si um contrato. São todos exemplos de autênticas
normas jurídicas que não são emitidas pelo Estado.
Se
não é algo que se poderia relegar tão-somente à esfera pessoal ou íntima de
cada indivíduo, mas que necessariamente afeta o que é essencial daquela
comunidade ou daquela relação interpessoal, exigindo normas com as
características de bilateralidade, exterioridade, sanção organizada, que são
assim estabelecidas, para aquele âmbito privado, mas remetendo, por vezes, em
suas sanções internas até mesmo àquelas medidas próprias dos âmbitos públicos,
pela via, por exemplo, das Autoridades Policiais ou do Poder Judiciário,
teremos certamente ali normas jurídicas extra-estatais, isto é, que não são
produzidas pelo Estado, mas que são reconhecidas e acolhidas pelo Estado, e que
dialogam com as normas jurídicas estatais, assim como os âmbitos privado e
público possuem uma dinâmica dialética, dialogal, até mesmo uma circularidade.
Isso tudo falando apenas do critério hierarquia, que vinculamos ao Emissor da
Mensagem codificada com a pretensão de comunicar normas.
O
Emissor é somente um dos elementos fundamentais de todo ato comunicacional.
Poderíamos falar da classificação das normas jurídicas com base nos critérios
trazidos pelos outros elementos fundamentais da comunicação. A partir da
análise do Código Linguístico se passa a discutir em torno do critério da
existência das normas, se há reunidos os elementos e características mínimas
para inferir que dada utilização da linguagem configura alguma norma, e qual o
âmbito ou disciplina de sua aplicação. Temos, assim, a classificação das normas
em ramos de Direito Público (Constitucional, Penal, Administrativo, etc) e
ramos de Direito Privado (Civil, Empresarial, Bancário, etc), para ficar na
distinção clássica, tão reformulada em razão de fenômenos como a publicização
do Direito Privado, a civilização do Direito Público, e a constitucionalização
de todo o Direito, o que, por sua vez, produz ramos híbridos ou disciplinas
jurídicas integradas, em que público e privado se interpenetram e se tornam
indissociáveis (Direito do Trabalho, Direito do Consumidor, Direito das Famílias,
etc).
Já
com base na análise mais detida do Canal de Comunicação se passa a discutir as
questões concernentes ao critério do Devido Processo (Due Process), isto é, se a norma veio a ser produzida
(processualmente) da maneira adequada, se foi veiculada pela forma adequada, e
se está afinal em conformidade com as disposições das normas superiores que
delimitam formal e materialmente a produção de novas normas (inferiores
àquelas, portanto), ou se isso não foi observado, isto é, a questão da
juridicidade das normas, da validade das normas para o sistema do Direito, o
que hoje é bastante centrado no debate de compatibilidade com os ditames da
Constituição, se a norma passa no controle de constitucionalidade ou se deve
ser declarada inconstitucional. Já com base na análise do Contexto se passa a
discutir acerca do critério da eficácia social das normas, o que também
comporta discussões a respeito do seu vigor e da sua vigência, e, nada
obstante, da sua legitimidade. E com base na análise da Mensagem em si, passa-se
a discutir acerca do critério da eficácia técnica das normas, das qualidades
redacionais na forma como se cristaliza a Mensagem para comunicar a norma,
dentre outras análises das suas configurações linguísticas.
E,
por fim, com base na análise do Receptor, se passa a discutir o que gira em
torno de duas questões: a quem é
dirigida a norma (o sujeito passivo da norma, em sentido estrito), e o quê deve-ser, de acordo com a norma (o
seu objeto, em sentido estrito; a prescrição em si). Da primeira questão,
obteremos a classificação das normas quanto ao critério da identificação dos
seus destinatários, e poderemos formar dois grandes grupos: o das normas individuais, que Bobbio chama
especificamente de “Comandos” (que se destinam cada qual a uma pessoa em particular)
e o das normas gerais (que se referem
a uma classe ou categoria de pessoas). E da segunda questão, obteremos a
classificação das normas quanto ao critério da definição dos tipos de ações
abarcados no conteúdo de tais normas, e também poderemos formar dois grandes
grupos: o das normas concretas, que
Bobbio chama especificamente de “Ordens”, as quais se referem a ações
singulares (que se exaurem com a sua execução) e o das normas abstratas, que se referem a ações universais, que Bobbio
chama de ações-tipo (que não se exaurem na sua execução, mas se repetem no
tempo e valem para todos aqueles comportamentos que podem ser enquadrados na
ação-tipo).
Note-se
que, segundo tal classificação, se alguém recebe sozinho uma norma, dirigida só
a essa pessoa, para fazer ou deixar de fazer uma coisa, pontual e específica, e
nada mais, terá recebido ao mesmo tempo um “Comando” (uma norma individual, ou
só para aquela pessoa e não para outros) e uma “Ordem” (uma norma concreta, ou
só para uma ação, e não para um tipo de ações). Essas normas são muito
frequentes, no dia a dia, mas as vezes não nos damos conta disso, porque elas
são tão circunstaciais e episódicas, que também costumamos aceitá-las mesmo
quando comunicadas por meio de Mensagens transmitidas por um Canal de
Comunicação só oral, até não-verbal, sem um registro formal delas. São as
normas que os pais costumam dirigir aos seus filhos, que os patrões e chefes
costumam dirigir aos seus empregados, e que os comandantes costumam dirigir aos
seus subordinados. Também por costume, mas
com bons fundamentos na necessidade de publicidade e segurança jurídica,
tendemos a só aceitar normas gerais (que tendam à universalidade dos
destinatários) e abstratas (que tendam à universalidade da ação-tipo) quando
essas nos são comunicadas por meio de Mensagens transmitidas por um Canal de
Comunicação oficial, mais formal e solene.
Ao
combinar as duas classificações acima, poderemos ter normas de quatro
modalidades: (1) normas individuais e
concretas, que são as mais pessoais e momentâneas, os Comandos-Ordens,
cujos exemplos mais comuns referimos acima; (2) normas gerais e concretas, que são determinações ainda momentâneas,
mas já mais impessoais, como as que costumam aparecer na parte de Disposições
Transitórias ou Finais de muitos Textos Normativos; (3) normas individuais e abstratas, que são determinações pessoais, mas
ainda assim duradouras, como as que giram em torno da contratação de um
trabalhador para um emprego ou da investidura de um concursado em seu cargo
público; e (4) normas gerais e abstratas,
que são as determinações mais impessoais e duradouras, a que normalmente
chamamos de “leis”. Quaisquer dessas modalidades normativas, que são
eminentemente formais, ainda podem ser materialmente sub-divididas em: compulsivas (quando há a obrigatoriedade
de algum fazer; uma imposição positiva ou dever de ação) ou proibitivas (quando há a obrigatoriedade
de algum não-fazer; uma imposição negativa ou dever de abstenção), facultativas (quando se trata de negar
as imposições positivas ou abrir exceções em normas compulsivas) ou permissivas (quando se trata de negar as
imposições negativas ou abrir exceções em normas proibitivas). E pode-se adotar
ainda novas combinações de critérios e sub-classificações. Então, parece até
que as classificações cobrem todas as possibilidades; que é tudo muito exato e
científico, e, portanto, previsível e controlável.
Mas
essa sensação é ilusória. As normas são tudo, menos exatas; nem poderiam ser
algo assim tão objetivo, considerando que consistem em processos que começam
como linguagem e terminam como interpretação. Ainda assim, no senso comum, por
conta dessa crença na exatidão das normas, costuma-se pensar que o Direito lida
somente com Regras. E o que são Regras?
São uma maneira de compreendermos o resultado do processo de interpretação, em
que o sentido que (re)construímos para a norma busca facilitar a tomada de
decisões, afastar as incertezas, reduzir as arbitrariedades e definir com o
maior rigor, rigidez e objetividade possível a previsão da(s) hipótese(s) de
sua incidência ou aplicação, bem como a determinação mais direta e
imediatamente previsível da(s) conduta(s) ou consequência(s) que deva(m)
decorrer dessa sua incidência ou aplicação. É como dizer, “neste caso X,
deve-ser Y”. Quando lidamos com normas-regras,
as hipóteses (“X”) de incidência ou aplicação da norma devem ser claras e se
ater a um número de situações possíveis bem delimitado, e as condutas ou
consequências (“Y”) que a norma implica, quando incide ou se aplica, também
devem ser claras e bem delimitadas. É como um semáforo de trânsito: no (“X”)
verde, (“Y”) prossiga; no (“X”) amarelo, (“Y”) diminua e redobre a atenção; no
(“X”) vermelho, (“Y”) pare. Quando são Regras conseguimos visualizar com
nitidez em nossa imagem mental, quando a norma se aplica, e o que fazer ou não,
quando ela for aplicável.
Lamentavelmente,
as normas-regras de um modo geral chegam quase sempre com atraso. É incomum que
consigamos prever todas as muitas variáveis que podem se dar durante a
concretização de algo até então hipotético, e isso quer dizer que, normalmente,
só depois que ocorrem os fatos, inclusive aqueles problemáticos ou apenas
imprevistos, é que costumamos disciplinar essas situações. Até as Regras chegarem a valer para nós,
portanto, é muito frequente que haja um lapso temporal, em que, primeiro, os
fatos ocorrem sem maiores regramentos, depois os fatos ocorridos são
analisados, e finalmente se passa à formulação da norma, que se vai buscar
expressar como Mensagem. A depender do Emissor responsável por expedir essa
Mensagem oficialmente, tal processo pode demorar semanas, meses... No Direito,
o normal é que os legisladores só criem leis para disciplinar os fatos depois
de anos que esses começaram a ocorrer
e transformar a realidade social. É muito difícil acompanhar a velocidade das
transformações na sociedade, e, geralmente, os fatos sociais ocorrem primeiro,
e bem depois é que chegamos às normas sobre isso. Por isso, embora fosse
teoricamente mais prático termos normas-regras para disciplinar toda a vida em
sociedade, isso é inviável de se obter na totalidade. Quando todas as
normas-regras para a vida na sociedade medieval finalmente ficaram prontas, já
se estava passando pela renascença para a modernidade. E assim ainda hoje;
nossas leis já nascem velhas, em boa medida. A vida social tende a mudar mais
rápido do que são feitas as novas leis.
E
o que fazer diante desse panorama? Insistir em fazer códices monumentais com
extensos e detalhados Textos Normativos, destinados à normatizar toda a vida
social, mas que, quando finalmente ficam prontos, não conseguem servir de
fontes de normas para uma série crescente de situações? Há algo além das
normas-regras que possa ajudar a não deixar vácuos tão grandes assim,
completamente não normatizados, na vida social? A resposta a esse problema
central na crise que assolou o então dominante positivismo jurídico na primeira
metade do século XX, acabou vindo na forma da redescoberta dos Princípios, já conhecidos na
antiguidade, que, no pós-positivismo que tem predominado desde o fim das
Guerras Mundiais, passaram a ser encarados como uma alternativa complementar às
Regras, uma nova maneira de pensar as normas.
Começou assim a revolução das normas-princípios no universo jurídico.
E
o que são Princípios? São uma maneira de compreendermos o resultado do
processo de interpretação, na qual o sentido que (re)construímos para a norma
busca nos orientar para um dado horizonte, um estado ideal de coisas, em que
dados fins ou valores sejam centrais e plenos nas relações e na ordem das
coisas, sem, contudo, pormenorizar um mapa com todos os passos para se chegar
até lá; sem determinar, previamente, quais os meios para se atingir aqueles
fins e concretizar aqueles valores; sem prever de antemão em detalhes as
hipóteses de incidência ou aplicação, ou as condutas e consequências
decorrentes disso; mas apenas encaminhando os nossos primeiros passos na
direção e sentido daquele horizonte escolhido, com o dever de avançar sempre
mais naquele rumo, ao máximo possível, sem retroceder; indicando apenas as
noções ou linhas-mestras dos comportamentos que devem ser adotados ou que devem
ser evitados para se preservar ou ampliar a concretização daquele estado ideal
de coisas na realidade em que se vive.
Não
foi realmente necessário, nessa mudança de paradigma, redigir os Textos
Normativos de outra forma... Como dissemos acima, o Texto Normativo difere da Norma.
E o Princípio, assim como a Regra, é uma norma. As normas-regras e as normas-princípios possuem algumas
características distintas, porque as suas funções são diferentes, mas essas
diferenças não estão tanto no Texto Normativo, isto é, na maneira como a
linguagem é configurada, no elemento Mensagem, e sim está sobretudo na
diferença de enfoque que se dá no processo de interpretação. Com efeito, de um
mesmo dispositivo a partir do qual
antes se (re)construía uma norma-regra, pode vir a ser (re)construído uma
norma-princípio, e vice-versa. Para
ilustrar, tomemos esses dispositivos
abaixo, que há séculos, ou melhor, há milênios, são bastante conhecidos:
Não
matarás.
Não
cometerás adultério.
Não
roubarás.
Não
levantarás falso testemunho.
(Livro
do Êxodo, cap. 20, vers. 13-16. ou
Livro
do Deuteronômio, cap. 5, vers. 17-20.)
No
processo de interpretação feito a partir desses dispositivos é muito comum até
hoje (re)construir simplesmente normas-regras
de caráter proibitivo, que são
satisfeitos quando se deixa de fazer alguma coisa: “Não matarás” desse ponto de
vista é uma Regra que impõe a obrigatoriedade de se abster de perpetrar assassinatos, tornando ilícitos os atos de
parricídio (assinar o pai), matricídio (assassinar a mãe), fratricídio
(assassinar o irmão), infanticídio (assassinar crianças), o aborto (assassinar
a vida humana intra-uterina), o suicídio (o assassinato de si próprio), o
genocídio (assassinato de um povo ou etnia), a eutanásia, ou qualquer espécie
de homicídio (assassinar alguma pessoa, inclusive, em sentido amplo, o
feminicídio, o assassinato de uma mulher por razões de gênero ou violência
doméstica). Mas esse “Não matarás”, interpretado como uma Regra assim, não
proibe, por exemplo, uma tortura que deixe vivo o torturado, ainda que com
sequelas, ou mesmo uma amputação, nem exige coisa alguma que torne a vida do
outro algo menos miserável. Assim também, o “Não cometerás adultério”,
interpretado como a norma-regra que tradicionalmente pensamos se limitar à
fidelidade conjugal, apenas proibe a um cônjuge trair ao outro com relações
sexuais extra-conjugais. O “Não roubarás”, interpretado como Regra nesse mesma linha,
só me proibe de usurpar um patrimônio que não é meu, isto é, apropriar-me
injustamente dos bens materiais de outrem, mas nada diz sobre buscar reduzir as
desigualdades sociais, incentivar a redistribuição de renda e a partilha dos
bens inclusive imateriais, etc. O “Não levantarás falso testemunho”, nessa
perspectiva, só me obriga a não mentir, mas não é uma norma que, por exemplo,
obrigasse-me a dizer a verdade ou a propagá-la.
O
Texto Normativo não precisa mudar. Ao mudar o processo de interpretação, a
norma que temos como resultado já se torna diferente. Há limites na
interpretação, mas há um vasto campo de possibilidades a ser explorado. Se em
vez de normas-regras meramente
proibitivas, que fixam limites mínimos ou um piso ético-jurídico abaixo do qual
as condutas não devem se situar, passamos a interpretar desses mesmos
dispositivos, para o nosso Contexto atual, normas-princípios
que exigem mais do que um não-fazer, que nos obrigam inclusive a um fazer, por
entendermos que podemos e devemos não nos contentar com o mínimo ou com o piso
que temos hoje estabelecido, mas que é preciso sempre avançar, elevando o nosso
patamar civilizatório, a compreensão e os resultados desse processo
interpretativo mudam substancialmente.
O
“Não matarás” passa a ser interpretado como um Princípio de respeito e proteção
à Vida. Então passa a ser exigido por essa norma-princípio, sem entrar nos
detalhes, tudo o que for humanamente possível de ser feito para nos encaminhar
para mais próximos a um horizonte em que a vida das pessoas e dos demais seres
viventes da Natureza seja dignificada, protegida e respeitada. Dentre muitas
outras situações, isso implica a promoção da saúde, e o combate a tudo o que a
prejudica; a promoção da paz, e o combate às múltiplas formas de violência e
até à guerra; o respeito à biosfera, aos ecossistemas, ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado; o respeito à integridade corporal das pessoas; e
até o respeito aos mortos. Com base nesse mesmo princípio, a depender da
situação, pode-se vislumbrar defender coisas tão diferentes quanto uma
regulamentação mais rigorosa ou restritiva na produção e comércio de
armamentos, ou o incentivo à doação e ao transplante de órgãos e tecidos, o
combate à poluição ou o incentivo ao saneamento básico, se, nessas situações,
tais atitudes colaborarem com uma maior concretização do estado ideal de coisas
que o princípio do respeito e proteção à vida projeta como o horizonte para o
qual busca nos encaminhar.
O
“Não cometerás adultério” se torna uma norma-princípio de respeito e proteção à
vivência e ao pleno desenvolvimento da Sexualidade e da Afetividade, sobretudo
nas Famílias. É este princípio o que situamos por trás da criminalização de
determinadas condutas que ofendem a dignidade sexual das vítimas e a consciência
coletiva da nossa sociedade, como o assédio sexual, o incesto, as variadas
formas de abuso e exploração sexual, em especial de mulheres, crianças e
adolescentes, o estupro, em especial o estupro de vulneráveis, a pedofilia,
etc. Também é o que está na base de ações de planejamento familiar, de
paternidade ou maternidade responsável, de adoção e valorização dos vínculos
sócio-afetivos, e das políticas públicas que permitam à família ter uma melhor
qualidade de vida. O reconhecimento dos efeitos dos vínculos que o amor gera
entre as pessoas e da pluralidade das entidades familiares (como a família
monoparental, a família avoenga, a família anaparental, as famílias recompostas
ou pluriparentais, a família unipessoal, a união civil estável, a família
homoafetiva, etc), está de acordo com este princípio. O que contraria esta
norma-princípio é a liquidez das relações, tratar as pessoas como produtos
descartáveis, trair a confiança das pessoas, agir de má-fé, com deslealdade, não
ser coerente e integro, não respeitar a diversidade humana ou a sua inerente
dignidade e discriminar as pessoas, inclusive em razão de seu gênero ou
orientação sexual, e não se permitir amadurecer na sua inteligência emocional.
O
“Não roubarás” passa ser um Princípio de Justiça e de Solidariedade na Ordem
Social e Econômica. Essa Justiça que este Princípio busca estabelecer
compreende tanto à Justiça comutativa,
que se refere ao equilíbrio nas relações contratuais, à obrigatoriedade de
pagar as próprias dívidas, ao cumprimento das obrigações livre e conscientemente
contraídas, etc, quanto à Justiça legal,
isto é, aquela que se refere ao que os membros devem equitativamente a sua
comunidade, quanto ainda à Justiça
distributiva, ou seja, aquela que se refere ao que a comunidade deve aos
seus membros, proporcionalmente às suas contribuições e às suas necessidades.
Não é compatível com esse Princípio ato algum de fraude, estelionato,
apropriação indébita ou enriquecimento sem causa, em especial por motivo de
desvio de verbas públicas, nem qualquer forma de exclusão injustificada ou de
injustiça social, devendo as desigualdades serem mitigadas, e promovida a
inclusão, para não roubar dos outros as condições e as oportunidades de seu
próprio desenvolvimento. É compatível com essa norma-princípio o direito à
propriedade privada, nos limites da função social da propriedade, bem como a
liberdade de contratar, nos limites da função social dos contratos, pois tal
função social se orienta ao bem comum, e, portanto, ao bem de cada um e de
todos. Está de acordo ainda com este princípio tudo o que concretiza aos
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como tudo o que difunde
a fraternidade entre as pessoas e entre as nações, e tudo aquilo que promove a
responsabilidade sócio-ambiental de todos.
O
“Não levantarás falso testemunho” se torna uma norma-princípio de promoção da
Verdade. Isso inclui a veracidade, também chamada de sinceridade ou franqueza,
isto é, a retidão do agir e da palavra humana, com honestidade, sensatez e
discrição. É este princípio o que situamos por trás da criminalização de
determinadas condutas que ofendem a honra, o nome e a imagem das pessoas, como
a calúnia, a injúria, a difamação, bem como aquelas que giram em torno do
abandono intelectual e da ludibriação; e ainda o que está por trás de variadas
orientações da moralidade para nos afastarmos de bajulações, fanfarronices e
mentiras. Para o nosso tempo, esse Princípio pode ser visualizado no direito à
educação; no direito à informação, inclusive podendo exigir ética e transparência
dos órgãos e agentes públicos, motivação dos atos administrativos e
fundamentação das decisões judiciais sob pena de sua nulidade; no direito ao
acesso e ao exercício de um jornalismo que cumpra seu papel social, buscando
sempre transmitir conteúdos verídicos e relevantes, de forma completa e
imparcial; no direito à inviolabilidade dos sigilos profissionais; no direito à
comunicação e à democratização dos meios de comunicação, em especial os de
massa; à liberdade de pensamento e de expressão, à liberdade de imprensa; no
direito à cultura e à ciência; e tudo o mais o que contribui para o diálogo,
interpessoal e intercultural.
Já
no primeiro século desta era, no tempo das primeiras comunidades cristãs, há
registro nos evangelhos, por exemplo, no capítulo quinto do livro de Mateus, a
partir do versículo vinte e um, de uma reinterpretação desses mandamentos
veterotestamentários que pode ser, em alguma medida, explicada como um esforço
de elevação do patamar ético civilizatório daquela época, e que está de acordo
com o que expusemos sobre a (re)construção das normas-regras, que até então
eram interpretadas a partir daqueles dispositivos do Texto Normativo do
Decálogo judaico, para serem normas-princípios de maior amplitude, com o
intuito de nos encaminhar para um horizonte de maior realização dos valores do
Evangelho. Naquele Contexto, já havia até mesmo a formulação de
Sobre-Princípios, isto é, normas-princípios que albergavam sob o seu
guarda-chuva outras normas-princípios. Os evangelhos referem, por exemplo, que
esses Princípios que mencionamos acima eram reunidos, sintetizados ou regidos
pelo Sobre-Princípio do “Amor ao Próximo”. No nosso Contexto atual, em que
buscamos formular as nossas normas de maneira laica, para que façam sentido a
todas as pessoas, independente de sua religião, ou mesmo se não possuem
referencial religioso, diríamos que essas normas-princípios acima estão
albergados sob o guarda-chuva que é o Sobre-Princípio que designamos como
“Dignidade da Pessoa Humana”. Por ora, o essencial é entender que as
normas-princípios podem se articular em Sobre-Princípios (ou seja, Princípios
conceitualmente mais amplos) e Sub-Princípios (os Princípios menos amplos).
Com
esses exemplos acima, podemos visualizar como a partir de um mesmo dispositivo,
o que era uma norma-regra pode ser (re)construída pelo processo de
interpretação como uma norma-princípio, e vice-versa. Mas após esses exemplos
talvez você se sinta tentado a pensar que os Princípios são melhores que as
Regras, quando, de fato, não existe norma em si melhor ou pior que outra;
existem sim normas que atendem mais (ou menos) às suas finalidades. Os
Princípios são normas mais abertas e flexíveis que as Regras, e isso tem sua
utilidade, sobretudo quando temos campos da vida social muito amplos, complexos
ou mutáveis para serem normatizados, e dispomos de pouco tempo para fazer essa
normatização, ou queremos evitar esse esforço de detalhamento na normatização,
ou precisamos que essas normas unifiquem esse campo, por ser ele até então
regido por sub-sistemas muito heterogêneos, ou ainda quando queremos que as
normas para esse campo sejam mais gerais (e/ou menos casuísticas), precisamente
para que possam se adaptar melhor e cobrir às variadas situações e
transformações que ocorrerem nele e assim possam durar por mais tempo, mas usar
os Princípios também possui suas contra-indicações e efeitos colaterais. Se
queremos agilidade na tomada de decisões, Princípios são pouco práticos se
comparados às Regras. Quando se trata de ter mais segurança jurídica, Princípios
são melhores que não ter norma alguma, mas as Regras ainda são melhores que os
Princípios. Lidar com os Princípios é mais sofisticado e delicado, por isso
mesmo mais perigoso, que lidar com as Regras. Cada uma tem suas vantagens e
desvantagens, pois atendem melhor ou pior a aspectos distintos da normatização,
e são complementares.
Nas
décadas mais recentes, em especial nestes anos do século XXI, tem se tornado
inegável no Brasil a (r)evolução trazida pelo aprofundamento da Hermenêutica, e
pelas normas-princípios no universo jurídico, seguindo as tendências mundiais do
pós-positivismo. E o Judiciário brasileiro, sobretudo nas Altas Cortes, tem se
debruçado cada vez mais sobre essas questões. Basta pensar que temos uma série
de direitos fundamentais em nosso Ordenamento Jurídico – direito à vida,
direito à saúde, direito à liberdade, direito à intimidade, direito ao
trabalho, etc – e cada um desses direitos se operacionaliza como um plexo de
normas-regras dos mais variados graus hierárquicos sob o guarda-chuva de ao
menos uma norma-princípio de hierarquia constitucional que determina que aquele
direito deve ser respeitado e protegido. Não obstante isso, em variados casos
concretos, esses direitos entram em rota de colisão, e é preciso conciliá-los,
e dar uma solução que faça prevalecer a norma-princípio que protege dado
direito fundamental, aquele cuja proteção se conclui que deve preponderar no
caso concreto, sem contudo desconsiderar a norma-princípio que protege o outro
direito, isto é, resguardando ao menos um conteúdo mínimo desse outro direito
fundamental, o que nunca é algo muito claro ou pacífico – qual deve ser, em
cada caso concreto, a medida da concretização do estado ideal de coisas que
dada norma-princípio busca promover. E há muitos outros conflitos entre normas
em que é preciso resolver o choque de Regras com Regras, ou de Princípios com
Princípios, e até de normas-regras com normas-princípios, que não à toa são
chamados de hard cases (“casos
difíceis”).
Para
compreendermos melhor esse drama e essa complexidade, e as suas grandes
repercussões práticas em nossa sociedade, faço referência a alguns casos
recentes e emblemáticos decididos pelo Supremo Tribunal Federal – STF, órgão de
cúpula do Poder Judiciário e também nossa Corte Constitucional brasileira,
sobre as uniões homoafetivas. O Brasil não foi o primeiro país no mundo a
reconhecer juridicamente essas uniões entre pessoas do mesmo sexo; na verdade,
foi o décimo terceiro apenas; mas foi sem dúvidas o primeiro a fazê-lo por meio
do Poder Judiciário, pois os demais países fazem isso por meio do seu Poder
Legislativo. Essa peculiaridade é muito significativa, porque adotamos como um
dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito o Princípio da
“Separação dos Poderes”, que nos encaminha para um horizonte radicalmente
oposto ao do Absolutismo, no qual todo o poder está nas mãos de uma pessoa só,
o déspota, monarca ou ditador, de modo que o poder seja desconcentrado e
compartilhado, e as funções do Estado sejam desempenhadas por agentes e órgãos
distintos, capazes de se fiscalizarem mutuamente, para que nenhum abuse do
poder que lhe foi conferido. E dentro dessa perspectiva, é ao Poder Legislativo
que compete tipicamente produzir normas gerais e abstratas, isto é, leis,
cabendo ao Poder Executivo tipicamente apenas operacionalizar o seu
cumprimento, e ao Poder Judiciário de modo típico apenas intervir se for
provocado em razão de haver algum descumprimento dessas normas ou de não se
reconhecer a sua validade. Ora, para reconhecer as uniões homoafetivas no
Ordenamento Jurídico de um país é preciso fazê-lo por meio de normas gerais e
abstratas! E se não compete ao Poder Judiciário, em vista da Separação dos
Poderes, a função típica de legislar, como ele produziu essas normas gerais e
abstratas para conferir o reconhecimento jurídico a essas uniões?
A
nossa Corte Constitucional só fez uma coisa: interpretou a nossa Constituição.
O que não é simples! Com efeito, no Texto Normativo da nossa Constituição
Federal de 1988, redigida no Código Linguístico que é a nossa Língua
Portuguesa, o Constituinte Originário deixou registrado, e isso jamais foi
alterado desde então, o dispositivo que chamamos de “artigo 226”, o qual, em
seu cabeçalho, traz a seguinte Mensagem: “A família, base da sociedade, tem
especial proteção do Estado”, e, dentro desse artigo 226, existe um dispositivo
que chamamos de “parágrafo 3º”, também emitido pelo Constituinte Originário de
1988, o qual traz a seguinte Mensagem: “Para efeito da proteção do Estado, é
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Historicamente entendendo
que esse dispositivo devia ter seu sentido (re)construído como uma norma-regra
que só conferia reconhecimento jurídico às uniões heteroafetivas (“entre o
homem e a mulher”), nosso Código Civil, um Texto Normativo Infra-constitucional
de hierarquia legal e aplicação nacional, foi promulgado em 2002, normatizando
o instituto da “União Estável”, em seus artigos 1723 a 1727, considerando
apenas as uniões heteroafetivas como juridicamente reconhecidas. Com efeito, o
dispositivo do cabeçalho do artigo 1723 do Código Civil brasileiro de 2002,
traz a Mensagem de que “É reconhecida como entidade familiar a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. E se
interpretava que as normas-regras (re)construídas a partir desses dispositivos
não autorizavam ao reconhecimento das uniões homoafetivas.
Chegaram
duas ações constitucionais no STF, sob as designações de ADIn nº 4277/DF, e
ADPF nº 132/RJ, sobre esse tema do reconhecimento jurídico das uniões
homoafetivas, as quais foram julgadas nos dias 4 e 5 de maio de 2011. No
mérito, foi observado que a Constituição Federal de 1988 dispôs como
fundamentos da República Federativa do Brasil, em seu “artigo 1º”, mais
especificamente em seu “inciso II – a Cidadania”, e em seu “inciso III – a Dignidade
da Pessoa Humana”, e em seu “inciso V – o Pluralismo Político”, e como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, no seu “artigo 3º”,
mais especificamente em seu “inciso IV – promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ademais, dentre os
direitos e garantias fundamentais individuais, a Constituição Federal de 1988,
dispôs em seu “artigo 5º”, logo no cabeçalho, que “todos são iguais perante a
lei, sem distinções de qualquer natureza (...)”, com “(...) direito à
liberdade, à igualdade (...)”, e, dentro desse artigo 5º, dispôs em seu “inciso
II” que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está
juridicamente permitido”, e em seu “inciso X”, dispôs que “são invioláveis a
intimidade, a vida privada (...)”. Esses dispositivos se tornaram pontos de
partida para reconstruir normas-princípios de respeito e proteção à Dignidade
da Pessoa Humana, à Pluralidade sócio-político-cultural, ao direito de os
Cidadãos exercerem a sua autonomia individual, de viverem a sua sexualidade e
afetividade livremente na sua Intimidade, com a devida proteção à inviolabilidade
de sua vida privada, e de receberem um tratamento igualitário nisso e de não
serem discriminados por questões relativas a essa vivência.
Nas
Constituições anteriores à de 1988, no Brasil, só se falava na família “constituída
pelo casamento”, portanto, a “família biparental”, que alguns consideravam
muito matrimonializada e patrimonializada. Mas na Constituição de 1988, a
família pode se apresentar sob a forma de variadas entidades familiares. O
Texto da Constituição refere pelo menos a três dessas entidades familiares: no “artigo
226, parágrafo 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes” há o reconhecimento da “família
monoparental”, e, claro, fala-se das famílias constituídas mediante a “união
estável” e o “casamento”. Portanto, se há várias modalidades de entidades
familiares protegidas pela Constituição, esse rol não deve ser interpretado
como taxativo ou exaustivo, mas como meramente exemplificativo: outros tipos de
família, não mencionados no Texto Constitucional, podem existir e ser
reconhecidos como tal. Ademais, interpretou-se que não existe hierarquia entre
as entidades familiares: família é família, e não existe um tipo juridicamente melhor
que outro. Se dada família recebe determinado tratamento quando é formada por
um casal heterossexual, não pode outra família deixar de receber o mesmo
tratamento isonômico apenas por ser formada por um casal homossexual, por
inexistir juridicamente razão suficiente para o tratamento diferenciado, em
vista daqueles Princípios adotados, e porque as normas-princípios da Constituição
impedem isso, dirigindo para o horizonte de que todos devem ser tratados com igual
dignidade, consideração e respeito.
Também
se anotou naquele julgamento que o dispositivo do “artigo 226, parágrafo 3º”
foi inserido no Texto Constitucional de 1988 para tirar da sombra as uniões
estáveis e incluí-las no conceito de família. Seria perverso conferir à
cristalização dessa pretensão emancipatória uma interpretação restritiva, a
ponto de (re)construir com base na sua literalidade “homem e mulher” uma
norma-regra proibitiva do reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas. Pelo
contrário, em uma interpretação evolutiva e teleológica, viu-se a imperiosidade
de renovar o mesmo espírito emancipatório e estender a garantia institucional
da família também às uniões homoafetivas. O STF entendeu que a homossexualidade
não constitui distúrbio, desvio ou doença mental, mas é uma característica da
personalidade do indivíduo e, como tal, deve ser protegida. A sociedade tem
mudado, e os preconceitos tem sido derrubados, e tem crescido o cosmopolitismo
e, na mesma medida, precisa crescer o respeito à diversidade. Em vista dos
princípios acima aludidos, (re)construídos como resultado de um processo de
interpretação sistemático, além do Princípio da Segurança Jurídica, o STF
assentou que não há, para o Direito brasileiro, qualquer proibição ou inconstitucionalidade
ou ilegalidade no reconhecimento jurídico de uniões homoafetivas. Quando e onde
se afiguram o amor familiar, a comunhão de vidas e a identidade sócio-afetiva
nas relações interpessoais existe, de fato, uma família. Permitir ao indivíduo
identificar-se publicamente, se assim o quiser, como integrante da família que
ele mesmo quis constituir, é atender ao princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. E foi isso o que prevaleceu.
Veja-se
para uma melhor compreensão no link < http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalJurisprudencia&idConteudo=193683 >. Nesse julgamento, sem mudar qualquer Texto Normativo, o
STF deu uma “interpretação conforme a Constituição” e mudou as normas, fazendo
com que qualquer intepretação daqueles dispositivos da Constituição e do Código
Civil que resultasse em normas proibitivas ao reconhecimento jurídico das
uniões homoafetivas fosse declarada inconstitucional, vale dizer, usou uma “declaração
de inconstitucionalidade sem redução do texto”. Perceba que o Supremo Tribunal
Federal não legislou, mas ao interpretar a Constituição acabou por (re)construir,
dentro dos limites da interpretação, as normas gerais e abstratas que regiam a
matéria das uniões estáveis. E fez isso lançando mão de uma hermenêutica
própria para lidar com a jurisdição constitucional, em que se lida muito mais com
as normas-princípios. Não foi um julgamento por razões arbitrárias. Aliás, se
tivesse sido, seria impugnado e anulado. Tudo teve de ser fundamentado, na
Constituição e na realidade. Mas ao lermos aqueles dispositivos de imediato
pensamos que o STF não teria como ir contra aquelas normas. O caso é que, como
dissemos, nos Textos Normativos não está já pronta norma alguma. As normas só existem
após o processo de interpretação. E isso torna tudo muito mais interessante.
Ilhéus/BA, 15 de agosto de 2017.
Marcus Santana <
marcus.antoniosantanasantos@gmail.com >